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ASPECTOS HISTÓRICOS DAS TRADIÇÕES AYAHUASQUEIRAS

1.4 As comunidades religiosas do Alto Santo hoje

Na localidade conhecida como Alto Santo, no município de Rio Branco, estão localizados quatro centros religiosos, herdeiros da tradição daimista de Mestre Irineu. O Centro de origem, CICLU, liderado pela dignitária Peregrina Gomes Serra. Após a morte do fundador, o grupo original passou por alguns desdobramentos, entre estes, CICLUJUR (Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Juramidã), dirigido por Ladislau Nogueira; CRF (Centro Rainha da Floresta), dirigido por João Rodrigues Facundes; CEFLIMAVI (Centro Eclético Flor do Lótus Iluminado Maria Marques Vieira), dirigido por José Souza. Aqui, vamos considerar como centros tradicionais os grupos provenientes do CICLU (ALTO SANTO) que permanecem com o mesmo ritual e a mesma linha de trabalho deixados por Mestre Irineu, mesmo que não permaneçam na localidade do Alto Santo, como é o caso do Centro Livre Caminho do Sol – CELIVRE, presidido por Adália Gomes Grangeiro, e o Centro Eclético Flor do Lótus Iluminado – CEFLI, de Luiz Mendes, e ainda o CLFRF (Centro

de Iluminação Cristã Luz Divina Raimundo Ferreira), dirigido por Reginaldo Ferreira Monteiro.

Atualmente, o local da comunidade do Alto Santo tornou-se um bairro ou vila Raimundo Irineu Serra, que possui uma Associação de Moradores e constitui uma Área de Proteção Ambiental (APA). As comunidades ayahuasqueiras também estão representadas na Câmara Temática. Parte das terras cedidas anteriormente às famílias por Mestre Irineu foram cadastradas e vendidas, e uma pequena parte ainda pertence à Madrinha Peregrina Serra. O túmulo de Mestre Irineu é um local de peregrinação dos fiéis e fica situado ao lado da antiga casa de Leôncio Gomes, que jaz ao lado do túmulo de Mestre Irineu, assim como também José das Neves. Na Sede do CICLU, na entrada, está enterrado Raimundo Gomes.

O Alto Santo é um local comum em que ocorrem os trabalhos espirituais e são mantidos os laços de solidariedade entre as famílias dos diversos centros ali localizados. A própria organização social é um reflexo da experiência religiosa e da permanente presença de Mestre Irineu. Certos valores essencialmente religiosos, no tempo e no espaço do sagrado, são absorvidos pelo cotidiano coletivo. Há um processo de sacralização do profano que determina as práticas religiosas, as relações sociais, familiares e comunitárias, constituindo um habitus.

Algumas características são peculiares à comunidade do Alto Santo (que inclui a irmandade do Alto Santo e pessoas que moram na cidade de Rio Branco), o primeiro grupo a utilizar a ayahuasca sob a denominação de daime, e que forma o campo tradicional ou tradicionalista. Isso nos leva a refletir sobre uma identidade cultural acreana a partir de suas raízes antropológicas, de um processo histórico, determinado pelas condições sociais, políticas e econômicas da região63.

Nessa perspectiva, define-se como comunidade um grupo que viva de acordo com um sistema de crenças e de relações sociais, possuindo por base a ordem estabelecida pelo

―líder‖, pelo ―mestre‖. São usuais na comunidade as expressões disciplina, obedecer, preleção etc. significando, nos termos de Weber (1991), a vigência de uma dominação tradicional e carismática. A comunidade vai se ampliando pela chegada de novas pessoas. Os visitantes chegam em busca de conhecer ou em busca de alguma ajuda espiritual ou cura física, motivados pelos boatos, que ultrapassam as fronteiras do país, de que o daime cura tudo.

Atualmente, é mais frequente na comunidade a presença de pessoas que vêm de fora e que,

63 Bourdieu (1989), ao partir de uma visão não consensualista e não universalista do objeto de estudo, nos possibilita aplicar as noções de campo e poder simbólico.

após certo período de permanência, são integradas ao trabalho espiritual e ao convívio comunitário.

No espaço social, assim como no espaço religioso, observamos uma estrutura hierárquica. Os personagens que ocupam lugares importantes no ritual exercem papel de liderança na comunidade. Todos os centros têm seu presidente, seu estatuto, seu decreto de serviço. A maioria participa do ato oficial sem status ritual específico, colaborando para o bem-estar de todos os participantes.

O formato social das tradições daimistas começa a se delinear a partir de um contexto social místico e religioso64. É essencial considerar a importância da adoção de valores e costumes indígenas caracterizando um folk rural e um continum urbano em permanente crítica, conservando e recriando valores culturais importados. Nesse cenário, os efeitos do processo de ressignificação foram marcados pela entrada em cena de Mestre Irineu no campo dos originários e manifestam-se na formação da doutrina por meio de valores culturais herdados de sua história de vida. Ele era herdeiro da religião católica e das manifestações de danças folclóricas, e a cristandade do jovem maranhense destaca-se na liturgia religiosa ao lado dos hinos como ―Chamo a Força‖, ―A linha do Tucum‖; ―Sete-Estrela‖, na nomeação dos Seres Divinos como divindades do reino da floresta, consagrando a Rainha da Floresta, a Rainha do Mar, Jesus Cristo, e seres como Juramidã, Tuperci, Ripi Ripi Iaiá, Cires Midã, Currupipiraquá, Tucum, Marachimbé, São João, São José e Todos os Santos.

A cultura maranhense é repleta de festas folclóricas e religiosas (Bumba-meu-boi, o Tambor-de-Crioula, o Baile de São Gonçalo e os festejos do Divino Espírito Santo) que estão presentes na formação religiosa de Mestre Irineu sob diversas formas e se projetam na constituição do ritual do daime. No Maranhão, o culto ao Divino Espirito Santo, a dança do Tambor-de-Crioula e do Tambor de Mina revelam uma continuidade entre diferentes práticas culturais, folclóricas e religiosas que retratam suas interrelações sociais.

As matrizes culturais maranhenses foram mostradas por Labate e Pacheco (2002) como presentes no ritual do daime. Também Oliveira (2007) analisou as festas citadas, destacando, seus elementos comuns, dentre estes: os cânticos entoados e os louvores e rezas ao Divino Espírito Santo ao som do rufar de caixas, sobressaindo o trabalho das caixeiras, mulheres negras, humildes e sábias do Maranhão. A festa do Divino, apesar de ter um conteúdo cristão, não é um festejo exclusivamente católico, acontecendo muito comumente

64 Caracterizado pelos componentes doutrinários outorgados a uma memória religiosa, como podemos perceber nas diversas narrativas e análises das relações sociais intra e intercomunitárias.

nos cultos do Tambor de Mina. É notório que, dentre os elementos constitutivos do imaginário simbólico daimista, está implícita a influência do culto maranhense ao Divino Espírito Santo, em termos igualmente utilizados como ―coroa‖, ―príncipes e princesas‖,

―trono imperial‖, ―reinado‖, ―reino encantado‖, ―corte celestial‖, ―Império‖ e, decorrente daí, a ideia de Império Juramidã e Rei Juramidã. Essas expressões são encontradas na liturgia dos hinos da doutrina, no decreto de serviço e no discurso daimista em geral. Outro elemento importante do culto é a presença e o louvor a Nossa Senhora da Conceição, como a dona da missão, a dona dos festejos, Soberana Mãe e Rainha da Floresta. Oliveira destaca que um dos principais elementos da festa do Divino Espírito Santo no Maranhão:

[...] é a presença de um Império, qual seja, um conjunto de crianças caracterizadas com roupas que fazem alusão às vestimentas usadas pelos nobres da Corte Portuguesa. O grupo é responsável por carregar a Santa Croa, como os maranhenses chamam a coroa que representa a presença do Divino Espírito Santo no festejo. No Santo Daime, essa imagem está presente, por exemplo, na expressão ―Mestre Império Juramidam‖ ou ―Chefe Império Juramidam‖, que é uma frase usada no encerramento dos rituais da religião e que se refere à pessoa de Mestre Irineu [...] Os adeptos percebem a religião como a revelação do Espirito Santo. Nesse sentido, todas as práticas do Santo Daime podem ser consideradas festejos ao Divino Espirito Santo (OLIVEIRA, 2007, p. 114).

No universo de ―encantaria maranhense‖, Labate e Pacheco (2002) observam que há muitos outros termos utilizados no imaginário daimista, como o próprio termo doutrina, cura e outros. Também Sérgio Ferretti no texto Uma Visão Maranhense, prefácio do livro Eu venho de longe (MOREIRA & MACRAE, 2011, pp.38-39) comparou o ritual do daime com as festas maranhenses e observou semelhanças com o Baile de São Gonçalo no Maranhão, além dos toques de Tambor de Mina.

[...] É um ritual do catolicismo popular, uma forma de pagamento de promessa, de origem portuguesa, provavelmente trazida por açorianos e muito comum na região dos lagos de Viana da Baixada Maranhense. Os brincantes dançam em filas, vestidos com roupas parecidas às vestimentas do Daime, todos de branco usando fitas coloridas, as mulheres com coroas ou grinaldas na cabeça e os homens com chapéu de veludo bordado. [...] O ritual do Santo Daime lembra também aspectos dos toques de Tambor de Mina, religião afro-brasileira do Maranhão em que cânticos ou doutrinas entoados são repetidos várias vezes pelo coro. Tem também relações com a Pajelança ou Cura, que se inclui no universo da religiosidade popular afro-indígena maranhense. Possui elementos da Festa do Divino, como comentam Labate e Pacheco (Ibid.).

Oliveira (2007, p.121) destaca que, na década de 1950, essas manifestações folclóricas eram marginalizadas pelos grupos hegemônicos e proibidas pela polícia, cita a antropóloga Mundicarmo Ferretti para quem esse fato remonta ao período colonial, momento marcado

pela intolerância religiosa que atingia tanto aos colonos portugueses como aos índios e negros.

Outros aspectos que observamos são a permanência do sistema de parentesco, acrescido da noção de família espiritual ou família de Juramidã; a importância carismática do Mestre, chamado padrinho, unindo a todos; a tradição cultural oral; os trabalhos dos membros da comunidade para a comunidade, como trabalhos de mutirão, ensaios, feitura dos cadernos de hinários65. Também é notório o destaque de líderes de personalidade marcante, aliado a uma concepção política de comunidade. É possível também observar a linha kardecista em meio a este misto de esoterismo que dá uma configuração de sistema religioso, cultural, social, com raízes no uso de uma bebida usada pelos índios da região amazônica ocidental (depois de uma fase pré-colombiana ligada ao império dos incas).

Nos centros do Alto Santo, destaca-se atualmente a filiação de membros pertencentes a diversas camadas da sociedade de Rio Branco (professores, jornalistas, médicos, advogados, juízes, promotores, agentes da Polícia Federal e outros, que comungam do mesmo ―habitus‖).

Procuramos entender a redescoberta da cultura mágica religiosa dos índios da Amazônia ocidental por Mestre Irineu como uma metamorfose. Ele criou uma espécie de nova roupagem parcialmente cristã, conservando as origens das duas camadas da população que resistiam ao processo de invasão cultural pelo sul do país. Nesse sentido, a contribuição dessas comunidades ultrapassa a simples caracterização de movimento religioso, configurando um sistema cultural que indica possível acomodação entre o indígena e o civilizado. Foi desenvolvido um conjunto de valores ecológicos que receberam sentido religioso, interligados pelo culto à Rainha da Floresta, a Jesus Cristo Redentor e a elementos da natureza: Sol, Lua, Estrelas, Terra, Vento, Mar; o Cipó, a Folha, a Água66.