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3 PROVA BRASIL E CURRÍCULO MUNICIPAL DE CASCAVEL-PR:

3.4 As concepções de avaliação no Currículo de Cascavel-PR e na Prova Brasil

A avaliação é concebida, a partir do Currículo de Cascavel-PR, como um processo diagnóstico, processual e como critério para a progressão de estudos (CASCAVEL, 2008a). Sendo assim, mais do que produzir um código ou um número, a avaliação permite demonstrar de quais conteúdos o aluno se apropriou durante a progressão de estudos, envolvendo elementos que estão para além do preenchimento de instrumentos avaliativos (MATOS, N. 2017).

Concernente aos instrumentos, por meio dos quais se verifica a apropriação de conhecimentos, o currículo não apresenta nenhuma orientação mais objetiva; ao contrário, abre precedente para que o professor faça a opção que considerar mais pertinente: “Com esse entendimento, a diversificação dos instrumentos avaliativos por parte do professor subsidia e viabiliza um número maior de dados sobre o trabalho docente e o processo de aprendizagem do aluno” (CASCAVEL, 2008a, p. 52).

Por outro lado, o documento também concebe que as avaliações cumprem com funções que estão além de verificar a apropriação de conhecimentos por parte do aluno: elas servem também para o professor realizar a sua autoavaliação, numa dimensão formativa. Concebe-se a avaliação como cumprindo uma função diagnóstica, capaz de “detectar os níveis de apropriação alcançados pelos alunos, de modo a subsidiar e orientar o professor na continuidade do trabalho pedagógico, com a preocupação de possibilitar a apreensão sólida dos conteúdos trabalhados” (CASCAVEL, 2008a, p. 52).

Tais definições estão em consonância com a LDB 9394/96, Art. 24, que, no inciso V, determina que as avaliações cumpram a função de verificar o rendimento escolar, de forma contínua e cumulativa, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos, bem como dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais (BRASIL, 1996).

No contexto do currículo municipal, as avaliações escolares são compreendidas como processos socialmente influenciados:

A sociedade capitalista - marcada pelas desigualdades sociais resultantes da exploração da força de trabalho e da apropriação privada dos bens materiais produzidos coletivamente - pressupõe um modelo de avaliação caracterizada como instrumento de discriminação e exclusão social (CASCAVEL, 2008a, p. 47).

Se, em um sentido, as relações sociais, a prática escolar e as interações que ocorrem dentro da escola acabam sendo inerentes ao modelo econômico-social vigente, por outro lado, sociedade e escola são também espaços de contradição, razão pela qual se busca atribuir à avaliação novos sentidos processuais, diagnósticos e coerentes com as práticas pedagógicas dos professores, inclusive para auxiliar no redimensionamento do ensino. Partindo destes princípios, o currículo compreende que os critérios de avaliação estejam pautados em:

instrumentos e procedimentos de observação, de registro e de reflexão constante do processo ensino-aprendizagem. Portanto, é necessário que o professor não encare a avaliação como um momento estanque, pronto e acabado, criado para ser usado somente para investigação do que o aluno aprendeu, mas sim, verificar os aspectos do processo ensino-aprendizagem que devem ser retomados em sua ação pedagógica (CASCAVEL, 2008a, p.53).

Dentre as muitas funções diagnósticas da avaliação, o currículo destaca a sua função orientadora como ponto de partida para os encaminhamentos da prática docente, assim como possibilidade de comprovar se os objetivos planejados foram alcançados e se o plano de aula, a metodologia e os recursos estão adequados, no sentido de garantir a aprendizagem.

Compreende-se, assim, que o ato de avaliar resguarda complexas relações que não podem ser encerradas em ações pontuais e tampouco reduzidas a práticas quantitativas. Porém, a avaliação emancipadora, tal como se propõe a realizar o currículo de Cascavel-PR, fundamenta-se em pressupostos que caminham no sentido contrario a ênfase que é mundialmente conferida à educação, “baseada em testes, responsabilidade econômica e em culpar as vítimas” (GANDIN, 2008, p. 240).

Quando a avaliação é concebida como diagnóstico da situação educacional, são localizados elementos que poderiam aproximar as avaliações em larga escala e o currículo de Cascavel-PR. No projeto básico do IDEB, as avaliações (Prova Brasil, ANA e Aneb) anunciam como finalidades o diagnóstico da educação básica brasileira, o levantamento de informações para subsidiar a formulação, reformulação e monitoramento das políticas públicas de educação, além de contribuir para melhorar a qualidade da educação.

No entanto, uma busca mais acurada sobre os objetivos definidos para as avaliações, como Prova Brasil, ANA e Aneb permite que outras ênfases sejam localizadas. A título de exemplo, no documento “Razões, princípios de Programas do Plano de Desenvolvimento da Educação” a avaliação é atrelada à responsabilização e assume o propósito de estabelecer inéditas conexões entre avaliação, financiamento e gestão (BRASIL, 2007b).

No que tange à relação entre as avaliações em larga escala e currículo, algumas pesquisas têm apontado para uma tendência ao reducionismo dos conteúdos considerados importantes. Bonamino e Souza (2012) afirmam que os currículos escolares possuem múltiplos objetivos, ao passo que as medidas de resultados, que se utilizam das avaliações de larga escala, tipicamente visam a objetivos cognitivos relacionados à leitura e à matemática.

Complementando o raciocínio, as autoras afirmam que essa limitação não pode ser necessariamente atribuída às avaliações, mas que, da forma como as mesmas têm sido realizadas, os riscos que as circunscrevem dizem respeito a uma possível (e por vezes identificada) redução curricular, sobretudo quando se distorce o significado pedagógico de uma avaliação.

Nesse sentido, o caso de Sobral-CE é esclarecedor no que refere ao contingenciamento do ensino, quando o objetivo definido pela administração municipal reduziu o ensino ao que as avaliações em larga escala impõem como demanda. De acordo com reportagem de Villas- Bôas (2017) para a Revista Carta Capital, o IDEB do município subiu de 4,0 em 2005, para 4,9 em 2009, para 7,3 em 2011, 7,8 em 2013 e chegou a 8,8 em 2015. De acordo com o autor, a redução curricular (os alunos mal têm contato com a disciplina de história) foi uma das estratégias utilizadas para que o pobre município do interior cearense aumentasse o índice rapidamente.

Villas-Bôas (2017) destaca ainda o índice de reprovações – que em 2015 foi zero – e que o aprendizado efetivo dos alunos egressos de “escolas modelo” é questionado quando se verifica o seu progresso escolar: menos de um quinto conseguem ingressar em uma

universidade, e quando conseguem, apresentam desempenho acadêmico muito aquém do esperado para concluintes do ensino médio. De acordo com o autor, os alunos são preparados para realizar os exames externos (Prova Brasil e PISA), o que faz as escolas colocarem em segundo plano o ensino referente a áreas do conhecimento que não são cobrados nas provas, como história, sociologia e filosofia.

Esta estratégia de ensino é problematizada por Souza (2014), Ronca (2013) e Ravitch (2011), que revelam que em muitas escolas o trabalho escolar tem sido direcionado ao que é cobrado nas avaliações externas, o que faz com que elas (as escolas) concentrem o ensino nos conteúdos que atendem ao domínio da língua materna e de matemática. Além deste aspecto, Freitas L. (2011) destaca ainda um segundo reducionismo, que é o que ocorre quando se elenca, dentro dos conhecimentos de língua portuguesa e matemática, quais competências e habilidades devem ser submetidas a teste. O autor problematiza também que a definição dos objetivos educacionais acaba sendo feita de fora para dentro, sem levar em consideração as especificidades culturais, locais ou mesmo um projeto nacional.

Conforme já assinalado na seção anterior, no que se refere à concepção teórica, o sistema de avaliação em larga escala, hoje, no Brasil, é fundamentado no neotecnicismo. A pressão que recai sobre professores e escolas se traduz na necessidade de produzir o “equilíbrio do sistema”, como se a diferença de desempenho fosse resultado dos esforços individuais, justificando-se, assim, as desigualdades sociais (FREITAS, L. 2011).

O raciocínio que impera na lógica do sistema avaliativo, utilizado atualmente no Brasil, traduz para o campo educacional o mesmo raciocínio e lógica do pensamento liberal, compreendendo que as soluções para a educação dependem de gestão eficaz, associada a novas tecnologias educativas, responsabilização, meritocracia e privatização (FREITAS, L. 2012). Este é um grande movimento, objetivando adaptar as escolas às novas exigências da reestruturação produtiva e do aumento da produtividade empresarial que relembra os esforços de John Dewey, o qual, no começo do século passado elaborou propostas educacionais destinadas a adaptar as escolas americanas à nova realidade industrial dos Estados Unidos (FREITAS, L. 2014).

A ideologia gerencialista (GAULEJAC, 2007) ganha espaço no campo escolar quando se observa que as instituições cada vez mais têm assumido como modelo de gestão a eficácia e a eficiência, de forma que os recursos investidos resultem em resultados positivos em termos de aprendizado e índices de aprovação.

Cabem ressalvas no que se refere ao trabalho docente, pois os contratos de trabalho, a remuneração e o estabelecimento de metas de trabalho dos professores da rede pública os distingue dos trabalhadores do setor privado, já que são funcionários públicos, prestam serviço à comunidade e são remunerados pelo Estado (parte dos quais, inclusive, possui estabilidade no emprego); e que a atividade profissional não se caracteriza pela produção de um bem comerciável, passível de troca, pois o ensino é uma atividade imaterial; não visa o lucro da instituição que o contrata – o Estado. Entretanto, preservadas as devidas especificidades, a ideologia gerencial está espraiada e atualmente pode ser identificada tanto na gestão de empresas privadas como nas instituições públicas: “uma instituição pode ser pública e mercantilizada ao mesmo tempo” (SILVA; MANCEBO, 2014, p. 480).

As tentativas que caminham na direção da proposição de currículos fundamentados em teorias críticas também enfrentam limites no que refere à função que o Estado ocupa na sociedade capitalista. De acordo com Mascaro (2013), o Estado burguês contemporâneo assume como uma das tarefas para a manutenção do ordenamento da sociedade de classe, a produção das justificativas ideológicas necessárias para explicar as desigualdades que a própria sociedade cria. Se o Estado consente em alguns avanços que atendem aos interesses da classe trabalhadora, é por que a “articulação entre o nível econômico e o nível político das sociedades capitalistas apresenta variações, contradições, conflitos e rupturas” (MASCARO, 2013, p. 111), porém, os avanços da classe trabalhadora não ultrapassarão um determinado limite posto pelas relações sociais capitalistas, que consiste no comprometimento da valorização do valor.

Portanto, um dos limites da consolidação das propostas curriculares de caráter crítico está na ausência dos investimentos necessários para tal, no sentido de oferecer aos professores as condições de trabalho adequadas, tendo em vista que a educação oferecida pelo Estado cumpre, de acordo com a sociabilidade capitalista, com a função de oferecer aos trabalhadores os instrumentos necessários para o trabalho, e, consequentemente, para a valorização do capital (MASCARO, 2013).

As experiências educacionais contra-hegemônicas, desse modo, disputam a função que a escola financiada pelo Estado capitalista deve cumprir na sociedade, quando ensejam a difusão de um ensino que vá para além da preparação para o mercado de trabalho, que vislumbrem a formação omnilateral, considerando-se o uso da totalidade de suas capacidades e, “ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidade de consumo e gozo em que se deve considerar, sobretudo, o usufruir dos bens espirituais, além dos materiais, de que o trabalhador

tem sido excluído em conseqüência da divisão do trabalho” (MANACORDA66, 2004, citado

por CASCAVEL, 2008a, p. 10-11).

O outro limite diz respeito ao tipo de sociabilidade inaugurada na sociedade capitalista, constituída pelas interações sociais que têm por base a forma mercadoria. Assim sendo, individualismo, dinheiro, competitividade, meritocracia, entre outros, são conceitos que predominam nas relações que se estabelecem entre sujeitos, entre instituições e entre nações nessa sociedade. A sociedade capitalista não oferece base material concreta para o avanço de propostas educacionais que exige uma sociabilidade pautada em valores como solidariedade, emancipação humana e coletividade.

Por outro lado, considerando que a escola é um espaço no qual são disputados projetos societários antagônicos, torna-se terreno fértil para receber as sementes de propostas contra- hegemônicas, as quais, por sua vez, podem também expor as falhas e os limites do projeto educacional burguês. Da mesma forma que a sociabilidade capitalista foi produzida num processo histórico, novas formas de sociabilidade podem ser engendradas, compreendendo-se que as relações humanas, tais como estão constituídas, não assumiram ainda, a sua forma final.

Considerando os elementos elencados, com base nos referenciais teóricos consultados, as concepções de avaliação que fundamentam o Currículo para a Rede Pública Municipal de Cascavel – PR e as avaliações em larga escala atendem a projetos antagônicos, e ambos produzem demandas diferentes no trabalho docente. Tais reflexões serão desenvolvidas na seção 5 desta tese, após a apresentação dos procedimentos metodológicos adotados para a realização desta pesquisa (Seção 4), em que se apresenta a opção metodológica do estudo e a sua caracterização; os procedimentos adotados para a coleta dos dados da pesquisa de campo; e a definição dos critérios para a análise dos dados.

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO

Esta seção apresenta o percurso metodológico da pesquisa de campo, socializando o processo de levantamento e análise de dados que ocorreu em meio a buscas, escolhas e dificuldades, as quais convergem na adoção de alguns procedimentos em detrimento de outros.

A pesquisa de campo envolveu diferentes tarefas, iniciando com a tramitação e a aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética; seguido pela definição do campo em que os dados foram coletados; passando pelo contato com os voluntários e realização das entrevistas; para chegar à análise dos dados coletados e a definição das categorias. Cada passo foi dado para garantir a cientificidade da investigação e a preservação dos sujeitos que contribuíram com o levantamento dos dados da pesquisa.

Apresentam-se, a seguir, a caracterização da pesquisa, a apresentação do lócus da pesquisa (com a caracterização da comunidade escolar e das escolas pesquisadas), o levantamento de dados no campo da pesquisa (no qual também são caracterizadas as entrevistadas que forneceram as informações que constituem a base da análise) e os procedimentos adotados para a análise dos dados.

4.1 Caracterização da pesquisa

Considerando-se os objetivos propostos, a pesquisa caracteriza-se como qualitativa. Apesar dessa caracterização, os dados numéricos ou índices são apropriados e incorporados à análise, pois se entende que quantidade e qualidade são elementos inseparáveis, interdependentes e inerentes ao processo de investigação (MINAYO, 2004).

Consiste em exercício teórico-metodológico o esforço de captar não só a aparência do fenômeno, como também a sua essência, as causas da existência, a explicação da sua origem, suas relações, suas mudanças, visando intuir as consequências que terão para a sociabilidade humana no futuro. Busca-se captar a realidade fora do fenômeno, a partir de determinados contextos, períodos históricos e espaços, os quais envolvem instituições e pessoas (TRIVIÑOS, 1987). Tais arranjos sociais e históricos são analisados como passíveis de mudanças; instituições, visões e políticas são provisórias e estão potencialmente em contínua transformação (MINAYO, 2004).