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Capítulo 2 – A integração do campo político: a democracia liberal parlamentar

2.2 Das duas concepções de democracia: normativa e realista

2.2.1 As concepções políticas realistas da democracia

Para tratar da abordagem realista vamos nos ater à teoria do economista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter. Para Schumpeter, o papel do povo no modelo democrático é simplesmente o de formar um governo e não há nenhuma garantia de que esse governo irá representar a vontade dos eleitores que o escolheram. O

185 MARCUSE, 1986, p. 17-18. (Tradução livre). 186 Idem, ibidem, p. 18. (grifo nosso, Tradução livre). 187 Idem, ibidem, p. 43. (Tradução livre).

indivíduo eleito assume a liderança e controla o poder de tomar decisões, mesmo sem o consentimento dos que o elegeram. Ou seja, a participação popular está restrita a escolha de seu líder, que disputa o poder de tomar as decisões políticas “mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”189. Segundo Schumpeter, a vontade do povo pode – como “em muitos casos históricos foram” – bem ser representada “por governos que não podem ser considerados democráticos”190. No modelo democrático “os corpos coletivos atuam quase exclusivamente pela aceitação da liderança”191, e as vontades coletivas nunca se afirmam diretamente. Não obstante, essas vontades são frequentemente utilizadas “por algum líder que as transforma em fatores políticos”192, ou seja, por interesses meramente eleitoreiros. A concorrência no sistema democrático é restrita a uma luta pela liderança, ou seja, a disputa pelo voto e apoio do povo, no qual indivíduos e grupos de interesse disputam entre si o poder político. Essa disputa se resume numa concorrência livre pelo voto. E de acordo com Schumpeter, essa concorrência é extremamente semelhante à que ocorre no campo da economia, pois frequentemente ocorre de forma desleal, fraudulenta e muito limitada. Para o pensador austríaco, o modelo político democrático não garante a liberdade individual: a liberdade política fica restrita a uma concorrência pela liderança política diante do eleitorado. Assim, a liberdade política é compreendida como a liberdade que o individuo possuí de se apresentar como candidato. Outro fator importante a se considerar é que no modelo democrático o eleitor pode escolher seu líder, mas não possui poder algum para tirá-lo do poder. Portanto, além de não ter poder para controlar as ações tomadas por seu líder, o povo não pode retirá-lo do poder, exceto pela recusa em reelegê-lo. Um último fator que devemos aqui considerar – de acordo com a teoria do nosso cientista político austríaco – é que mesmo que o governo eleito represente, na melhor das perspectivas possíveis, a vontade dos eleitores que o colocaram no poder, ele nunca representa a vontade de todo o povo, mas da maioria que o apoia, ou seja, sempre ficarão excluídos diversos grupos minoritários.

189 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de

Cultura, 1961, p. 327.

190 Idem, ibidem, p. 328. 191 Idem, ibidem, p. 328. 192 Idem, ibidem, p. 329.

Segundo Marilena Chauí193, no modelo democrático realista schumpeteriano o critério da democracia passa a ser dado pela relação do Estado com a economia oligopólica. O Estado se converte em sócio das oligarquias econômicas e intervém na economia conforme o interesse econômico da grande burguesia que controla o poder econômico. A política é mera “questão de elites dirigentes” e os votantes apenas escolhem os homens que decidirão “quais são os problemas políticos e como resolvê- los”, e a função do sistema eleitoral é meramente “criar o rodízio dos ocupantes do poder”194. Esse modelo político baseia-se no mercado econômico, fundado no pressuposto da soberania do consumidor. Logo, essa “natureza” instável e “consumidora” dos sujeitos políticos é considerada pelos grupos que disputam a liderança, associados em partidos, que vão utilizar o aparato governamental para “estabilizar as demandas da vontade política”195 reforçando acordos, dirimindo conflitos e moderando as aspirações desses sujeitos políticos. Nesse modelo, em que domina a lógica mercadológica, o cidadão aparece como consumidor e o Estado como distribuidor – democracia e mecanismo de mercado se confundem, e os partidos concorrem pelos votos dos eleitores conforme “o modelo da concorrência empresarial”196. Esse modelo elitista de democracia gera apatia dos cidadãos, pois estes não participam do processo decisório. Essa apatia em conjunto com as desigualdades sociais e econômicas colocam nas mãos da elite econômica todo o poder político.

No entanto, segundo Marcuse, a teoria das elites – conforme apresentada por Schumpeter, Pareto, etc. – falha ao interpretar a dominação social como um “sistema aberto”, no qual “podem penetrar elementos de todos os grupos sociais”, tendo em vista que, a “circulação das elites representa apenas um fenômeno periférico do mecanismo social”197. Essa circulação das elites dirigentes é apenas um fenômeno superficial, já que “o sistema de dominação há muito tempo já tinha sido fechado em termos de classe a partir de seu fundamento econômico”, ou seja, as elites que detém o poder econômico podem até aceitar uma “ligeira circulação das elites”198, pois essa circulação das elites políticas não ameaça o seu domínio. Para Marcuse, a grande inovação de Pareto foi seu

193 CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo:

Moderna, 1980.

194 CHAUÍ, 1980, p. 86. 195 Idem.

196 Idem, ibidem, p. 87.

197 MARCUSE, Herbert. Estudo sobre a autoridade e a família. In: MARCUSE, 1972, p. 155. 198 Idem.

pioneirismo em abordar o problema psicológico do domínio de classe. Para garantir a estabilidade e continuidade da dominação não basta somente o uso da força, assim uma classe governante pouco numerosa “se mantém no poder em parte pela força, em parte com o consentimento da classe governada, muito mais numerosa”199. Esse consentimento está baseado na capacidade da classe governante em gerenciar os “resíduos e derivações” (pulsões, apetites, gostos, disposições e interesses simples das pessoas), isto é, a capacidade de gerir os afetos humanos e produzir sentimentos que apoiam psicologicamente e reproduzem de forma contínua a estrutura de dominação. Essas “derivações e resíduos” variam muito lentamente ao longo do tempo e isso assegura uma continuidade histórica no processo social de dominação. O fenômeno da autoridade é um exemplo da constância dessas derivações, pois “o resíduo da autoridade atravessa os séculos sem perder sua força”200, sendo observado ao longo de toda história da civilização.

2.2.2 A estrutura político-partidária: organização e estrutura dos partidos