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Capítulo 2 – A integração do campo político: a democracia liberal parlamentar

2.2 Das duas concepções de democracia: normativa e realista

2.2.4 O normativismo deliberativo de Jürgen Habermas e sua crítica à

Segundo Jürgen Habermas, o “derrotismo normativo”233, no qual várias correntes da sociologia política decaíram, não decorre de nenhuma base concreta, mas são decorrência do uso de estratégias conceituais equivocadas. Para o filósofo alemão, as concepções empíricas se limitam a descrever o movimento no qual “o fluxo dos processos de decisão democráticos”234 – que são dirigidos pelo poder comunicativo – são atravessados por um poder administrativo autônomo quando este poder se liga a um poder social de interesses organizados. Ao demonstrarem que um poder “ilegítimo” arrebenta o fluxo de poder regulamentado pelo Estado de direito, os conhecimentos trazidos pelas ciências sociais corrompem as teorias normativas.

Habermas critica a teoria pluralista – consagrada por Schumpeter e seus epígonos – por sua concepção instrumentalista da política, que considera o poder político e administrativo como mera manifestação do poder social. Na concepção pluralista o poder social, imposto por interesses organizados, se converte cada vez mais em poder político. Dessa maneira, a disputa política entra em um processo circular “que liga o poder social dos clientes aos partidos que conseguem o poder político”235, ou seja, grupos de interesses organizados estabelecem uma relação clientelista com os partidos, oferecendo seu poder e influência aos partidos, que em retribuição implementam as medidas preconizadas por esses grupos. Segundo a avaliação normativa de Habermas acerca desse modelo, só o equilíbrio de forças sociais poderia manter o fluxo do poder político, possibilitando uma simetria dos interesses sociais. Desse modo, o modelo pluralista opera por uma simples adaptação da concepção que Habermas chama de

231 Idem, ibidem, p. 108. 232 Idem.

233 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Tradução de

Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 58.

234 Idem.

“modelo normativo do liberalismo”, na qual “o lugar dos cidadãos e seus interesses individuais é ocupado por organizações e interesses organizados”236. A concepção pluralista pressupõe que todos os membros envolvidos em coletivos organizados possuem a mesma força para influenciar a política dessas associações e dos partidos. Essa forma de concorrência “democrática” entre as diversas associações de interesses levariam a um equilíbrio social do poder.

No entanto, o princípio do pluralismo é falsificado na medida em que os grupos de interesses não conseguem exercer grande influência sobre organizações e partidos que controlam o poder político. Desse modo, “a luta pelo poder se desenrola essencialmente entre elites”237. Além do que, no que se refere às expectativas normativas, a teoria pluralista teria que explicar como essa disputa entre elites pode atender a interesses daqueles que não fazem parte da elite. As implicações ocasionadas por esses fatores é que os resquícios normativos dessa teoria se deslocam “do lado input para o do output do sistema administrativo”, sendo assim, como a política fica restrita a uma disputa entre as elites dirigentes, “a única garantia de que as funções do Estado visam ao bem comum reside na racionalidade das elites”238. Portanto, dentro dessa concepção, o Estado fica restrito a determinados interesses organizados de grupos elitistas, sendo que grupos de interesses com menor grau de influência e os interesses não organizados das massas ficam sub-representados no sistema político.

A crítica de Habermas leva em consideração o modelo pluralista só como uma prática dentro do processo político, não como uma norma ordenadora que esgota o Estado Democrático de Direito. Para o filósofo alemão, desde o final da década de 1960, acumulam-se evidências de que o sistema administrativo “só pode operar num espaço muito estreito”, parecendo que este “age mais no nível reativo de uma política que tenta contornar crises do que de uma política que planeja”239. Dessa maneira, os “déficits de legitimação” por parte de partidos que são incapazes de mobilizar a lealdade das massas, por um lado, e os “déficits de regulação” limitados de um Estado que é incapaz de atuar contra os interesses de grandes organizações, por outro lado, geram uma melancolia e “azedamento” da política.

236 Idem.

237 Idem, ibidem, p. 60. 238 Idem.

Segundo Habermas, enquanto a teoria dos sistemas – representada por autores como Niklas Luhmann – centra-se nos problemas de regulação, a teoria econômica da democracia, representada por autores como Anthony Downs, dedica-se ao problema da legitimação. A teoria econômica da democracia procurava demonstrar empiricamente algumas intuições do modelo liberal, que afirmavam que os eleitores traduzem, por meio do voto, seu autointeresse de acordo com suas pretensões, e que os políticos “trocam esses votos pela oferta de determinadas políticas”240 que atendam às pretensões dos seus eleitores-clientes. Essas trocas entre eleitores-clientes e as elites políticas resultariam em decisões racionais que consideram os interesses particulares agregados. Contudo, essa premissa dos interesses egocêntricos dos eleitores demonstrou ser falsa, pois, a taxa de participação dos eleitores demonstrou ser variável conforme “a expectativa de poderem contribuir com o seu voto para decidir uma disputa apertada”, portanto, “evidências empíricas falavam contra todos os modelos que partem de uma base de decisão egocêntrica”241. Isso demonstra, de acordo com Habermas, a fragilidade dessa concepção, já que os eleitores se pautam em referencias éticas que vão além de seus interesses particulares.

Já a teoria dos sistemas coloca de lado os sujeitos da ação, seja como indivíduos representando seus interesses particulares ou como coletivos, dando lugar a uma rede de sistemas parciais autônomos autorregulados e com modos de operação próprios. Essa teoria retira a centralidade do Estado como principal complexo de organização do poder político. Os cidadãos e clientes incorporados ao sistema político formam um fluxo oposto à circulação oficial de poder – Estado – uma vez que dirigem o processo legislativo por meio de sua relação clientelista com as organizações partidárias. Assim sendo, a teoria dos sistemas analisa o processo político somente como “auto-regulação do poder administrativo, e divide a política e o direito entre vários sistemas funcionais, fechados recursivamente sobre si mesmos”242. Ao excluir toda normatividade de seus conceitos, as teorias funcionalistas e instrumentais tornam-se insensíveis aos “freios normativos contidos no fluxo do poder regulado pelo Estado de direito”243, de tal modo, ambos os princípios operacionalizam o conceito de poder, de forma que a importância empírica do poder constituído no Estado fica renegada.

240 Idem, ibidem, p. 62. 241 Idem.

242 Idem, ibidem, p. 64. 243 Idem.

Em seu seminário apresentado na Universidade de Valência em 1991, intitulado

Três Modelos Normativos de Democracia244, Habermas apresenta uma instância de organização da vida social separada da instância de regulação centralizada representada pelo poder administrativo do Estado e da instância descentralizada, regulada pelo interesse próprio individual, representada pelo mercado. Essa instância da organização da vida social que o filósofo alemão denomina de solidariedade é orientada para o bem comum, portanto, contraposta ao cálculo egocêntrico predominante nas instâncias do mercado e do Estado. Essa independência, em face da administração pública e dos interesses privados do mercado, torna essa instância da solidariedade uma base autônoma da sociedade civil capaz de proteger a comunicação política. Essa importância estratégica da participação da sociedade civil no espaço político é central na concepção política do modelo republicano245. Habermas define a tradição do republicanismo como aquela que entende a política como “uma forma de reflexão de um complexo de vida ético”246, na qual os membros participantes se reconhecem reciprocamente como portadores de direitos livres e iguais, o espaço público assume, nessa concepção republicana, um função estratégica: garantir a autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos. O modelo normativo liberal é definido por Habermas como o antagonista do modelo republicano. No modelo liberal o Estado – como aparato de administração pública – cumpre a função de mediação para garantia dos interesses sociais privados. Desse modo, os direitos do cidadão na concepção liberal são “direitos negativos”, pois são direitos subjetivos estabelecidos em prol de interesses privados, em contraposição aos “direitos positivos” que formam o modelo republicano, nos quais se destacam os direitos de participação e expressão da opinião na ordem social pública.

O processo político no modelo liberal torna-se uma luta por posições que garantam o controle do poder administrativo, no qual as organizações privadas disputam posições de poder na esfera pública. A política – poder público e administração pública – transforma-se em mero instrumento para operacionalização dos interesses privados.

244 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Lua Nova: Revista de

Cultura e Política, N°36, 1995. Texto da apresentação de Habermas no seminário “Teoria da democracia”, na Universidade de Valência, 15/10/1991. Traduções de Gabriel Cohn e Álvaro de Vita.

245 A concepção republicana a que Habermas se refere é um modelo normativo representado teoricamente

pelos pensadores que ficaram conhecidos, sobretudo nos EUA, como “comunitaristas” e não deve ser confundido com o Partido Republicano dos Estados Unidos, que se aproxima mais do modelo que Habermas chama de liberal.

246 HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. São Paulo: Lua Nova: Revista de

Assim, o poder público é loteado por interesses privados e assuntos privados são debatidos como algo de interesse público, desse modo, os grupos de interesse privado adotam uma “ação estratégica” que privilegia “a coordenação mais do que a cooperação”, e o meio utilizado por esses grupos para obter suas demandas particulares “é a barganha, não o argumento”247. Do lado oposto, a concepção republicana “não obedece às estruturas dos processos de mercado”, uma vez que são regidas por uma “comunicação pública orientada para o entendimento”248. Essa base no reconhecimento recíproco dos indivíduos e do entendimento por meio do processo do diálogo é própria do ideal normativo republicano. No entanto, esse excesso de idealismo seria o ponto negativo desse modelo, já que torna o processo democrático “dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum”249.

Segundo Habermas, é possível superar essa instrumentalização do processo político introduzindo a prática dialógica e institucionalizando as formas de comunicação no processo de deliberação, assim, a “formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas”250 ganhariam força legitimadora. A teoria da ação-comunicativa, que é o modelo proposto por Habermas, pretende tornar a política deliberativa independente da necessidade da ação coletiva dos cidadãos engajados no interesse comum, isso seria possível por meio da institucionalização dos procedimentos comunicativos. A ação comunicativa – institucionalizada no Estado de Direito e desenvolvida em diversos espaços públicos autônomos – tornaria possível ao poder gerado comunicativamente afirmar-se contra o poder do dinheiro e contra o poder administrativo.

2.3 A unidimensionalização da política: a democracia de massas no capitalismo.