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AS CONFORMAÇÕES POLÍTICAS E AS CRÍTICAS ÀS PCTS NO BRASIL

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CAPÍTULO II IDEOLOGIA E POLÍTICA INDUSTRIAL E DE

2.3 AS CONFORMAÇÕES POLÍTICAS E AS CRÍTICAS ÀS PCTS NO BRASIL

Ao longo da seção anterior, vimos que as decisões acerca das PCTs estiveram marcadamente associadas a uma estratégia maior de desenvolvimento econômico. Assim, P&D e C&T foram desenvolvidas à reboque de uma busca incessante pela modernização das estruturas produtivas do País, o que foi especialmente marcante no período militar, em que se associou poder decisório centralizado, ambiente financeiro favorável e relativa estabilidade econômica. Vimos também que essa lógica foi rompida no início dos anos 1990, com a entrada de princípios mais liberais no executivo governamental.

Deixamos claro que, apesar das diversas tentativas de se criar um “pacto” para o desenvolvimento científico e tecnológico, envolvendo cientistas e empresas nas aspirações do governo, nem sempre, ou talvez muito raramente, foi possível observar uma interação efetiva. É inequívoco que, para a comunidade científica, um ambiente propício para o desenvolvimento de infraestrutura de P&D adequado no Brasil, inclusive com vultosos aportes financeiros, era mais do que desejado. Mas, é somente nesse sentido que se pode dizer que houve algum tipo de aproximação entre os atores, não havendo indícios de que tenha ocorrido convergência de interesses e objetivos. Sequer é possível falar em objetivos sociais, já que sempre esteve impregnada nas instâncias decisórias a ideologia de que o bem-estar social é atingido com bem-estar econômico.

As estratégias históricas de P&D revelaram-se frágeis quando os policy makers perceberam que não se fazia tecnologia com o timing adequado para responder às demandas econômicas e, sobretudo, políticas. Portanto, pode-se observar que o maior avanço do setor no Brasil refere-se à construção de instituições de coordenação político-normativas e infraestrutura de pesquisa, que permanecem até hoje como importante legado desse período, apesar de todo o esforço de desconstrução empreendido no governo Collor e, mais comedidamente, no governo FHC. O modelo de desenvolvimento científico e tecnológico foi

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marcadamente “science push”, com a universidade “fazendo ciência” na maioria das vezes de acordo com sua conveniência, e oferecendo os resultados aos diversos usuários, que muitas vezes já estavam com a demanda satisfeita por outras fontes.

No que toca às instâncias decisórias, as evidências apontam para uma ampla centralização no que se refere à macropolítica de desenvolvimento em C&T, sobretudo no auge do Período Militar. Mas, apesar dessa centralização na tomada de decisão, estando a execução das atividades a cargo das mãos e dos cérebros que fazem pesquisa (a comunidade científica), houve uma descentralização do “fazer científico”, e os resultados das políticas não puderam ser adequadamente controlados, mesmo sob os auspícios de uma lógica militar.

A crítica que se faz ao modelo de desenvolvimento tecnológico adotado a partir da década de 1970 paira no foco dado à “transferência de tecnologia”. De fato, o que houve foi uma entrada de capitais produtivos estrangeiros e não necessariamente uma absorção por parte da indústria nacional de novos aparatos produtivos (HERRERA, 1983). Apesar de todo o esforço consubstanciado nos Planos de Desenvolvimento durante toda a década de 1970, sobretudo no que se refere à internalização de competências tecnológicas e inovativas, não se despertou a criação de uma base técnico-científica produtiva aliada aos ideais de desenvolvimento da economia nacional (VALLE, 2005).

A eficácia da centralização no governo federal esteve em fazer P&D no âmbito das estruturas de grandes empresas estatais. E essa eficácia tendeu ao esgotamento a partir dos anos 1990, quando emergem as pressões liberais por privatizações. O relativo fracasso da PCT no Brasil passa, fundamentalmente, pela não realização dos investimentos tecnológicos por parte das empresas nacionais, sobretudo as privadas, comprovado pelos baixos investimentos em P&D nesse período. Isso pode ser explicado pelos seguintes fatores: a) falta de coesão entre a maior parte do empresariado nacional e as elites políticas e b) excedente produtivo não reinvestido, já que a maior parte da acumulação de capital estava nas mãos de grupos internacionais e monopolistas nacionais.

De acordo com Cassiolato et.al. (1983), os investimentos em P&D concentraram-se nos setores de Bens de Capital, onde se destaca a utilização de tecnologia estrangeira. Assim, os gastos em P&D seriam muito mais para estabelecimento de laboratórios de controle de qualidade e adaptação de tecnologia importadas do que para o desenvolvimento de novas tecnologias. O fato de a maioria desses investimentos estar sob responsabilidade do setor público, fortalece nosso argumento acerca dos desajustes da estratégia de C&T do País.

Portanto, mesmo com todo o esforço do Estado brasileiro para prover o país de capacitações no âmbito da pesquisa científica, buscando alavancar o progresso tecnológico endógeno, não houve o feedback esperado por parte das empresas. Valle (2005, p. 25) afirma que o setor produtivo em geral manteve uma postura pragmática, que muitas vezes foi oportunista e predatória no que diz respeito à sua base tecnológica. Dagnino (1983) lembra que havia, entre a década de 1970 e o início dos anos 1980, uma racionalidade empresarial que envolvia expectativas de custos, lucro e risco que explicam a ausência de empresas demandando C&T internamente. Essa consideração reforça a predominância de uma lógica de dependência externa ainda marcante no setor produtivo nacional. Assim, “as características próprias da indústria – [...] tamanho de mercado, perfil de distribuição de renda - e as vantagens de importação de tecnologia fazem com que o setor de pesquisa aplicada não seja estimulado pelo setor produtivo” (DAGNINO, 1983, p. 56).

Diferentemente do que ocorria nos “países centrais”, onde se podia observar uma relação clara entre a pesquisa de base e as demandas industriais (Demand pull), no Brasil ocorria um efeito technology push proveniente do exterior, ou seja, havia ausência de

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demanda pelas atividades de C&T interna e fragilidade dos processos de P&D, já que se canalizava para o exterior a maior parte da demanda tecnológica interna, o que ajudava a exercer pressões negativas sobre o balanço de pagamentos. Como resultado, tem-se o aumento do ônus governamental, já que o Estado passa não somente a fomentar a geração de

expertises para a pesquisa básica, como também assume os investimentos em pesquisa

aplicada, geração e difusão de tecnologias para o desenvolvimento.

De uma análise lúcida feita por Schwartzman (1979, p. 306) como privilegiado observador dos fatos que estamos analisando, destacamos as seguintes palavras:

De fato, o interesse do setor empresarial privado pela ciência e tecnologia tende a se limitar às facilidades de obtenção de tecnologias que sejam economicamente rentáveis, com um mínimo de investimentos e um máximo de lucro. Normalmente, isso leva à demanda por facilidade de importação de pacotes tecnológicos [...]. Este tipo de importação de tecnologia é prejudicial ao país, por transferir ao exterior pagamento de pesquisa e desenvolvimento que poderia ficar no país.

No tocante às empresas estatais, regidas pela mesma lógica do lucro empresarial da empresa privada, pesando de forma especial os critérios de minimização de custos e riscos, muitas vezes acabavam optando pela importação de tecnologia, até mesmo para fazer frente a prazos de entrega, reforçando assim a debilidade para geração de desenvolvimento autóctone. Seria desse o setor onde se esperaria um aumento dos gastos em P&D, mas inicialmente isso só ocorreu para um conjunto pequeno de empresas que tinham como marca sua ligação com o progresso e com o desenvolvimento do País (Petrobrás, Telebrás, Embratel), as quais, como destacado por Castro e Souza (1985, p. 38), “foram o sustentáculo do II PND”. Ao fim e ao cabo, “o que costumava existir durante a década de 1970, na maioria das empresas, eram laboratórios de controle de qualidade com aspirações a centros de P&D” (DAGNINO, 1983, p. 65). Para algumas empresas, a ausência de recursos humanos qualificados foi a justificativa para tornar a universidade o próprio laboratório e a ela eram confiadas as atividades de pesquisa.

No entanto, ao final da década de 1970, as estatais passaram a contribuir de forma mais efetiva para o aumento dos gastos em P&D. Isso foi o reflexo da política explícita presente no II PBDCT, onde foi estimulada a ação de centros de pesquisa e desenvolvimento presentes em algumas estatais (VALLE, 2005). Além disso, muitas empresas não encontravam na universidade pesquisas orientadas às suas demandas específicas, sendo então necessário fomentar laboratórios em que as pesquisas correspondessem às suas prioridades (DAGNINO, 1983).

Nesse período ocorre uma interferência do governo nas agendas de pesquisa realizadas das universidades. Como destacado na seção anterior, isso foi possível através da utilização de convênios que tinham como objetivo explícito alavancar “espaços de excelência” no interior da universidade que pudessem contribuir de forma efetiva com os “interesses nacionais” e com o desenvolvimento do País.

Assim, é possível afirmar que desde a década de 1960 o Estado apostou na universidade como o locus de geração de tecnologia e recursos humanos a serem “repassados” para o setor produtivo. Porém, “a decisão acerca de que pesquisa desenvolver era tomada, não pela universidade, mas sim pelo governo, em nome de uma racionalidade econômica e de imperativos sociais e se consubstanciava [...] no oferecimento de recursos que a viabilizavam” (DAGNINO, 1983, p. 59). Esse movimento histórico pode explicar o prestígio que alguns “centros de excelência” ainda possuem na atualidade, e também a continuidade desse tipo de política orientada e vertical ainda nos anos 2000.

86 Este processo de institucionalização da pesquisa, centrado na universidade e tendo como locais privilegiados os programas de pós-graduação estabelecidos segundo o modelo norte-americano, decorreu da implementação de uma política, cujas intencionalidade e articulação com um projeto econômico sobredeterminante foram maiores do que costumam ser as políticas de C&T no Brasil. Esteve, durante toda a década de 70, ancorado e subordinado à nossa última onda desenvolvimentista centrada no Estado. Além disso, apresentou uma continuidade de propósitos (e inclusive de atores) muito facilitada pelo caráter centralizador e autoritário do regime político vigente.

Acerca desse tema, cabem duas observações: em primeiro lugar, esse tipo de ação, por mais importante que seja para a promoção de áreas estratégicas, acaba gerando “ilhas de excelência” que historicamente se concentraram em poucas regiões e instituições do país, o que de certa forma contribui para acirrar as disparidades regionais, já que os frutos dessa atividade tendem a ficar concentrados. Em segundo lugar, isso tende a provocar a redução, ou completa exclusão, do caráter democrático e da autonomia das pesquisas universitárias, já que o governo é quem dita o estímulo (senão intelectual, mas em grande medida financeiro) para que as agendas de pesquisa sigam determinados caminhos.

As ilhas de excelência geradas acabam sempre privilegiadas em detrimento de outras possíveis experiências e pesquisas que, por não fazerem parte da agenda da política, têm que disputar recursos ainda mais escassos. Considerando o conhecimento como o exercício da criatividade, o privilégio a pesquisas orientadas pode reduzir as possibilidades de desenvolvimento autóctone, relacionado à pesquisa e experimentação livres. Isso ocorre porque, como já apontado, há um fortalecimento de grupos que muitas vezes podem apresentar resultados daquilo que não fizeram no laboratório. Justificamos essa posição tendo em vista que o governo não alcançou os resultados esperados com a política de direcionamento de recursos.

Considerando a conjugação de interesses apontada acima, percebe-se que o direcionamento da PCT acabou seguindo historicamente a ideologia de um grupo (policy

makers, acadêmicos e tecnocratas) que, por diversas razões, compõe a esfera do poder. E,

dessa forma, a universidade, espaço privilegiado para a gestação de novos conhecimentos e tecnologias sociais, torna-se apenas o local de onde são apontados os “eleitos” a participar das “atividades científicas avançadas”, que de alguma forma podem aumentar a “potência” da economia brasileira.

Nessa mesma linha de argumentação, Dagnino (1983) destaca que, durante a década de 1970, a despeito dos incentivos e do fortalecimento da pós-graduação, as universidades passavam por uma redução de suas dotações orçamentárias. Assim, a utilização dos convênios tornou-se um meio político de controle daquilo que faria parte da agenda de pesquisa. Isso se dava através do que Dagnino chamou de “forma potencial de clientelismo acadêmico”, onde a possibilidade de complementação salarial cooptava parte da comunidade universitária para participar da formulação e implementação da política científica e tecnológica. Ou seja, mesmo diante de um quadro de restrição de recursos, o ganho político era grande na medida em que as ações do governo eram vistas como propiciando o desenvolvimento científico e tecnológico.

De acordo com Cassiolato et.al. (1983, p. 38):

[...] a efetiva explicitação de uma política científica e tecnológica e de seus instrumentos aparece a partir da conjugação de interesses de uma parcela nacionalista da burocracia estatal, de segmentos nacionalistas das instituições militares e de uma parcela dos quadros mais “modernos” das universidades brasileiras.

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Porém, o mesmo autor destaca que não se pode inferir nenhum grau de homogeneidade nesses grupos, já que os interesses são os mais diversos, havendo profundas divergências sobre o projeto de construção do País.

O reconhecimento da complexidade dos grupos que conformam a PCT e a negligência em relação aos resultados sociais mais efetivos tornaram-se foco de análise dos “Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade” (ECTS) levados a cabo em várias partes do mundo, sobretudo na Europa e de forma especial na América latina. Esses estudos enfatizam a necessidade de uma maior participação pública nas decisões acerca dos rumos da PCT. Conforme Dagnino (2008), sua origem remonta à década de 1960 através dos questionamentos populares e da própria universidade sobre a neutralidade e a racionalidade científica.

Assim, as reflexões do campo CTS buscavam compreender de maneira menos ingênua as relações existentes entre ciência, tecnologia e sociedade, destacando também os aspectos negativos associados aos avanços científicos e tecnológicos sobre a sociedade, a partir das perspectivas ambientais, políticas, econômica, sociológicas, etc. (DAGNINO, 2008, p. 06).

Os ECTS se destacam por apresentarem reflexões teóricas alternativas, que objetivam entender como o desenvolvimento científico e tecnológico, e seus desdobramentos sociais, passam a ser percebidos pelos pesquisadores. O papel dos ECTS é promover uma aproximação das agendas de pesquisa com as necessidades e demandas sociais, ou seja, busca-se refletir criticamente sobre como os esforços em pesquisa, desenvolvimento e inovação podem ser utilizados em benefício da sociedade.

Após a apresentação das políticas e de uma breve análise de seus estrangulamentos, apresentamos na seção seguinte três possibilidades analíticas para o entendimento dos meandros que conformam e determinam uma determinada agenda de política pública. Em nosso caso especial, estamos buscando um marco de referência que nos ajude a entender o que (ou quem) determina o direcionamento das políticas de desenvolvimento científico e tecnológico. As três possibilidades são, na ordem apresentadas: a Teoria do Agente-Principal, no âmbito da abordagem institucionalista; a perspectiva da Sociologia Relacional, a partir da Análise de Redes Sociais (ARS); e a perspectiva das Comunidades de Pesquisa que segue em grande medida a linha de argumentação dos ECTS. Desde já destacamos que essas três abordagens aparecem como complementares, já que são diferentes olhares sobre o mesmo “problema” que ajudam a montar um quadro cognitivo de análise.

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