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As consequências para uma teoria do inconsciente

É preciso sempre desconfiar das semelhanças entre o vocabulário técni- co de dois pensadores. Que ambos possam utilizar com frequência os mes- mos termos não nos garante que estejam a falar da mesma coisa. Husserl fala frequentemente de Hemmung (inibição), de Verdrängung (recalcamento) ou de associação, por exemplo nas Análises para a Síntese Passiva. Fá-lo depois de Freud ter conferido a todos estes conceitos um sentido técnico preciso, mas não quer dizer, com eles, exactamente a mesma coisa que Freud. Basta prestar um pouco de atenção aos contextos. Husserl diz, por exemplo, que se podem associar por semelhança um quadrado vermelho e um quadra- do azul, mas que uma associação por igualdade é inibida (gehemmt) pela diferença entre as duas cores. Ou, ainda, que a percepção de um quadrado vermelho realça, ou reprime (verdrängt), a percepção de um quadrado azul, sempre que o primeiro se vem sobrepor ao segundo327.

Em outros contextos, ao invés, é preciso estar muito atento às seme- lhanças de vocabulário. Nas Análises para a Síntese Passiva, Husserl fala do processo de formação daquilo que designa, no § 33, por configurações de unidade (Einheitsbildungen), de onde mais tarde sairão os objectos, quando o Eu se tornar activo328. Estas Einheitsbildungen não são ainda os objectos, mas

antes multiplicidades de partes associadas por semelhança ou contraste, ou por uma afinidade quanto ao modo como as diversas partes se relacionam

325 Idem, Ibidem, p. 143.

326 Idem, Zur Phänomenologie der Intersubjektivität, p. 21. 327 Idem, APS, Hua XI, pp. 131-132.

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entre si. Mas tais multiplicidades podem não se constituir, pois o processo associativo pode não chegar ao seu termo. Husserl fala, então, da presença de hemmende Gegenpotenzen (de potências em sentido contrário, capazes de inibir aquele processo), cuja origem e natureza deveriam ser estudadas por uma fenomenologia do «inconsciente».

A palavra «inconsciente» aparece entre aspas no texto alemão. Estas as- pas são, do nosso ponto de vista, aspas de citação. Quando Husserl não coloca a palavra entre aspas diz, normalmente, «o chamado inconsciente». Por conseguinte – tal será aqui a nossa hipótese –, Husserl refere-se a uma concepção de inconsciente diferente da sua, que só poderá ser a da psicaná- lise e de Freud, e que não considera válida329. Talvez Husserl, porém, não

tenha inteiramente razão: o modelo de funcionamento da psique, que pro- põe, tem em comum com o de Freud o facto de admitir que a consciência tem diante de si o seu próprio inconsciente, que este não é apenas o resto somático de uma actividade psíquica anterior, mas, na realidade, para nos servirmos das próprias palavras de Freud na Lição 31 das Novas Lições de In-

trodução à Psicanálise, um país estrangeiro no interior (ein inneres Ausland)330.

Esta tese, que Husserl nunca chega a formular explicitamente, nem se propõe demonstrar até ao fim, pode ser encontrada em numerosas passa- gens das suas páginas inéditas. Apoiar-nos-emos no texto das Análises para a

Síntese Passiva (mais precisamente, na reelaboração, feita em 1925, da versão

primitiva do curso de 1921 sobre Lógica Transcendental) e da Lição de 1907

Coisa e Espaço. (Faremos também algumas referências a certos trabalhos de

Freud.) Referindo-nos a certas passagens de todos estes textos, temos a in- tenção de demonstrar a impossibilidade de identificar a psique com a cons- ciência, o que é sobretudo evidente se compreendermos o sentido do fenó- meno que, servindo-nos das próprias palavras de Husserl, designaremos por «obscurecimento das afecções».

Começaremos pelo texto sobre as Sínteses Passivas331. Husserl está a pro-

ceder a uma análise do fenómeno que acabamos de mencionar, ao qual chama, como dissemos, obscurecimento ou enfraquecimento das afecções (Verdunkelung é a palavra alemã que emprega). Seria tentador proceder a uma imediata aproximação com o recalcamento de Freud, mas pensamos que será mais prudente seguir uma outra via. Vejamos que é que acontece

329 É pouco provável que Husserl se esteja a referir às teorias de G. T. Fechner ou de

Ed. von Hartmann. Mas sabemos que tinha conhecimento das teorias de Carl Jung, de quem possuía um livro na sua biblioteca.

330 Freud, Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, p. 496. 331 Husserl, APS, § 37, Hua XI, p. 177.

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quando a afecção enfraquece. Husserl diz que é um fenómeno que obedece a uma típica específica, quer dizer, a uma estrutura que se mantém inalterá- vel, independentemente da intensidade ou da qualidade das afecções. (Um som muito forte ou quase inaudível, um vermelho-escuro ou um amarelo- -pálido, enfraquecem da mesma forma, como se pode comprovar pela aná- lise destes processos efectuada após a redução fenomenológica.) Qualquer afecção sofre uma primeira modificação retencional ao ser expulsa da «pon- ta avançada» do presente vivo, mas o decurso deste processo chega ao seu termo quando a afecção atinge o seu ponto zero. (Eine Null, diz Husserl no § 37 de APS). Perguntar-se-á: que é este zero onde, ao fim de algum tempo, se encontrarão todas as minhas afecções?

Talvez seja necessário voltar um pouco atrás para compreender o que Husserl quer dizer, porque, no § 33 de APS, Husserl tinha já falado de um ponto zero: ein Nullfall der Weckung, o ponto zero do estar desperto. Se bem compreendemos este texto, Husserl não fala de uma ausência de afecção, mas sim de uma circunstância em que a afecção não tem a força suficiente para despertar a atenção, ou porque é demasiado débil, ou talvez porque tenha sido reprimida. Mas Husserl acrescenta a seguinte observação impor- tante: este zero é um zero no sentido dos matemáticos, quer dizer, o contrá- rio de uma quantidade numérica (Anzahl), porém, ainda um número, que, em certas circunstâncias, deve ser tido em conta para o cálculo. É por este motivo que Husserl responde da seguinte forma à questão que há instante pusemos: este Nullpunkt não é um nada, mas sim um Réservoir. (É a palavra francesa que aparece no texto alemão.) É a mesma palavra que se encontra às vezes nos textos de Freud – pensamos, entre outro, em Das Ich und das

Es – que fala de das grosse Reservoir der Libido, embora num sentido que não

é o de Husserl332. No Réservoir husserliano encontramos todas as objectivi-

dades que já estiveram presentes num presente vivo que pertence agora ao passado, mas que, contrariamente ao Réservoir de Freud, estarão sempre ao dispor da consciência graças à associação.

Numa passagem do capítulo I de Mal-estar na Civilização Freud diz que é muito difícil saber o que acontecerá ao que um dia me afectou (ao que eu vi, ouvi ou toquei), mas que é fortemente improvável que isso possa de- saparecer completamente. É verdade que Freud não fala, nesta passagem, de todas as dimensões do que é para ele o inconsciente, mas somente do recalcado. Mas Husserl tem metáforas muito interessantes para explicar este

332 Freud, Das Ich und das Es, in Gesammelte Schriften, Studien Ausgabe, Bd. III, pp. 282-

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facto. Diz, por exemplo, que as sedimentações das experiências passadas se sobrepõem (übereinanderlegen) de tal forma que as mais antigas são total- mente recobertas pelas mais recentes. Pensamos que é a partir daqui que se poderá encontrar uma possibilidade de aproximação e de diálogo frutuoso entre a fenomenologia e a psicanálise no que diz respeito ao problema do inconsciente: algo de mais interessante do que saber se o inconsciente fe- nomenológico corresponde ou não, apenas, ao pré-consciente de Freud, ou se é algo mais do que isso. As análises husserlianas de fenómenos como a sedimentação, da mesma forma que toda a problemática das sínteses pas- sivas, interdirão para sempre a Husserl o juízo irónico que formulara na época em que escrevera a Filosofia da Aritmética acerca das teorias filosóficas do inconsciente: que elas não seriam senão uma escapatória para a incapaci- dade de resolver um certo número de problemas. O que na fenomenologia de Husserl poderá interessar a uma teoria psicanalítica do inconsciente é o facto de ela defender que, por essência, qualquer consciência é sempre uma relação com a inactualidade.

Sobre a Existência de uma

«Redução Fenomenológica» em Psicanálise