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Psicanálise e método fenomenológico

Fenomenologia e psicanálise são, por conseguinte, embora de maneiras diferentes, explorações do Eu. Para as duas, o Eu que é tomado por objecto de estudo não é o Eu empírico, do senso comum, da psicologia ou da filo- sofia naturalista. Isto tem importantes consequências do ponto de vista me- todológico. Mas também para a psicanálise, todo o trabalho de análise con- siste em ver um facto da consciência fora da sua relação real empiricamente verificável com outros factos da consciência; ou seja, vê-lo independente- mente da relação de causalidade que possa subsistir entre eles353. Assim, por

352 Husserl, Phäntasie, Bildbewusstsein, Erinnerung, Hua XXIII, pp. 58 e segs.

353 É certo que, na terminologia normalmente utilizada por Freud, parece que nos

encontraríamos, então, perante uma segunda cadeia causal agindo como que por detrás da primeira, ou seja, daquela que é facilmente identificável por quem observa o compor-

Caminhos da Fenomenologia | 171

exemplo, as fobias de animais, em crianças, remetem, não apenas para o receio de alguma agressão por parte desse animal (mesmo que uma agressão real possa ter já acontecido, vindo reforçar essa fobia), mas para o medo da castração354;ou as agorafobias, em que o motivo de uma recusa em sair de

casa será, provavelmente, a ansiedade que provoca o encontro com outras pessoas e não o temor de um perigo real.

O que dissemos não significa que Freud conteste a presença universal do princípio de causalidade; de certo modo, a crença na sua validade será sempre uma das mais fortes crenças freudianas, em parte recebidas através da influência de Brücke e de Meynert355, em cujos laboratórios trabalhou

durante os seus anos de juventude. Brücke e Meynert, aliás, transporta- vam para o plano da histologia e da fisiologia os princípios da física de Helmholz, de que eram grandes seguidores. Mas o uso que Freud faz do princípio de causalidade é sobremaneira original. Pensemos, por exemplo, no relato de um caso clínico feito no pequeno ensaio de 1915 intitulado «Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica». Uma doente jul- ga ouvir o ruído de alguém que observaria a sua relação com o namorado. Na verdade, tal como a situação pôde ser reconstituída por Freud, a partir do material clínico de que dispunha, as coisas ter-se-ão passado da seguinte forma: a pseudo-audição do ruído aconteceu depois de, certo dia, ao sair de casa do namorado, a doente ter encontrado dois homens que julga estarem a comentar o seu caso e de, numa vez seguinte, tendo ouvido um ruído efectivo, não ter acreditado na explicação do namorado que afirmara ser um tal ruído proveniente do relógio da sala. É uma motivação inconsciente que explica, tanto o fenómeno psíquico da atenção que é prestada ao ruído, como a recusa da interpretação proposta para o explicar, de forma que o princípio de causalidade não conhece verdadeiramente uma excepção. Um facto psíquico, para o analista, mais não é do que o substituto simbólico de uma motivação inconsciente, que se trata de descobrir e de revelar ao paciente. Por outras palavras: trata-se de conseguir que ele integre os seus

tamento dos pacientes. Assim, o facto de ter sido mordido por um cavalo não é a causa da fobia em relação aos cavalos, mas tal fobia não deixaria de ter uma explicação causal que seria possível determinar. Noutros casos, a argumentação parece um pouco mais subtil; Freud parece dizer que há, de facto, uma cadeia causal, mas que certos elos dessa cadeia não são percepcionáveis pelo paciente, em resultado do recalcamento, e que a relação ana- lítica tem, justamente, por objectivo restituir essa cadeia na sua integralidade.

354 Freud, Hemmung, Symptom und Angst, p. 48.

355 Sobre a influência de Meynert, cf., nomeadamente, Ernest Jones, The Life and Work

of Sigmund Freud, trad. franc., La Vie et l’Oeuvre de Sigismund Freud, Paris, PUF, 1958, 3 vols.,

172 | Sobre a Existência de uma «Redução Fenomenológica» em Psicanálise

efeitos na sua vida consciente. Mas, para Husserl, como se pode comprovar pela leitura do § 78 de Ideias I, as impressões constituem vivências absolu- tamente originárias e é em relação a elas que se determina o valor de uma presentificação intuitiva ou de uma fantasia. Ao invés, no exemplo clínico apresentado por Freud, percepção, presentificação e fantasia não consti- tuem modos de doação facilmente distinguíveis.

Pensemos também na teoria freudiana dos sonhos. Freud sempre a con- siderou como uma espécie de pedra-de-toque da adesão, ou não, aos princí- pios da psicanálise. Há uma relação de causalidade entre o conteúdo latente e o conteúdo manifesto do sonho, ou, mais exactamente, o segundo é a tradução do primeiro após este ter sido submetido ao trabalho do sonho, de acordo com os mecanismos da condensação e do deslocamento. Não podemos aqui reconhecer, à maneira de Husserl, uma realização defeituosa – uma Fehlleistung – de uma intenção bem determinada, tornada por isso irreconhecível356.

Para Freud, o Eu, identificado ao sistema Percepção-Consciência (mais precisamente, do ponto de vista fisiológico, à massa cortical que medeia – quer dizer, relaciona e protege – as camadas mais profundas do psiquis- mo e a realidade exterior), é apenas o resultado de uma pressão da reali- dade sobre a mónada psíquica, desejante e anárquica. Este ponto de vista energético e económico, que confere às instâncias psíquicas uma determi- nada realidade, é dificilmente compatível com a atitude fenomenológica357.

O Eu não pode ocupar o lugar de um acto fundador, tal como a fenome- nologia o exige. Deste ponto de vista, é perfeitamente possível reconhecer a legitimidade da tese de Ludwig Binswanger, ao afirmar que a psicopato- logia será sempre uma ciência de factos e de acontecimentos e que, nesse sentido, nunca se poderá elevar ao grau de pureza requerido pela atitude fenomenológica358.