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AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS DA IGREJA ANTIGA

SUGESTÕES BIBLIOGRAFICAS

AS CONTROVÉRSIAS CRISTOLÓGICAS DA IGREJA ANTIGA

A PALAVRA “TEOLOGL\.” desperta reações contraditórias nas pessoas. Para alguns, trata-se de uma atividade não só le­ gítima como indispensável para a igreja e para os cristãos. Para outros, é algo artificial e condenável, uma produção humana que distorce a revelação de Deus. Tudo de que o crente neces­ sita, dizem eles, é a Palavra de Deus, sem as especulações e os devaneios dos teólogos. Todavia, o fato é que, mesmo sem o saber, todo cristão faz teologia. Essa teologia pode ser boa ou ruim, equilibrada ou tendenciosa, mas todos a fazem. Quando um humilde pregador pentecostal abre a sua Bíblia e começa a interpretá-la, explicá-la e aplicá-la aos seus ouvintes, está fazen­ do teologia, por mais que desconheça ou deteste essa palavra.

A teologia não é nada mais, nada menos, que a reflexão acer­ ca das Escrituras e da fé cristã. Uma definição acadêmica diz que ela é “a exposição raciocinada da fé”. Como tal, é uma tarefa inevitável da igreja. Uma das razões para isso é a própria riqueza

e cómplexidade das Escrituras e a possibilidade de diferentes entendimentós de muitos de seus textós e ensinos. A Igreja Anti­ ga, ainda nos seus primeirós tempós, defrontou-se com esse desa­ fio. Diante das dissidências internas, ou seja, indivíduós e grupos que faziam interpretações divergentes da mensagem cristã, e dós desafios externos, representados pelos críticos pagãos, os cristãos sentiram a necessidade premente de explicitar e articular de ma­ neira clara e convincente as suas convicções, à luz das Escrituras.

Problemas iniciais

Obviamente, a questão mais central da fé cristã é aquela que diz respeito ao próprio Jesus Cristo. Desde cedo, os cristãos se puseram a refletir intensamente sobre a pessoa e a identidade do Salvador, motivados, inclusive, por considerações apologéti­ cas e missionárias. Era crucial que eles tivessem bastante clareza sobre aquele que havia se tornado o principal ponto de referên­ cia de suas vidas. Partindo dos dados bíblicos, especialmente a descrição joanina de Cristo como o Logos ou Verbo (Jo 1.1, 14;

1 Jo 1.1; Ap 19.13), houve o florescimento de uma grande di­ versidade de concepções, muitas das quais foram consideradas pela igreja como insatisfatórias ou simplesmente errôneas.

Entre essas concepções estavam as que foram englobadas pelo termo “monarquianismo”, um grande esforço feito nos séculos segundo e terceiro para preservar, nas discussões sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, uma importante herança re­ cebida pela igreja do judaísmo - o monoteísmo, ou seja, a afir­ mação radical da existência de um só Deus. Parecia a muitos cristãos do período que afirmar a divindade do Pai, do Filho e do Espírito era defender o triteísmo, isto é, a existência de três deuses. As diferentes correntes monarquianistas foram classifi­ cadas pelos estudiosos em dois grandes grupos.

O “monarquianismo dinâmico” ou adocionismo negava pura e simplesmente a divindade de Cristo, declarando que

Jesus era um mero homem que foi adotado por Deus como filho por ocasião do seu batismo (Mt 3.16-17), sendo revestido pelo poder do Espírito Santo (em grego, “poder” = dynamis, daí dinâmico). Já o “monarquianismo modalista” entendia que Pai, Filho e Espírito Santo eram apenas três “modos” ou manifes­ tações sucessivas do único Deus. Isto é. Deus revelou-se inicial­ mente como Pai, depois como Filho e finalmente como Espírito Santo. Uma variação dessa corrente, o “patripassianismo”, dizia que o próprio Pai sofreu e morreu na cruz. O monarquianismo procurava salvaguardar a unidade de Deus pela negação seja da divindade, seja da personalidade distinta do Filho e do Espí­ rito Santo. Foi rejeitado pela Igreja antiga devido à convicção de que as suas posições não faziam justiça ao testemunho das Escrituras.

A controvérsia ariana

A realidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo era fundamen­ tal para a identidade dos primeiros cristãos desde o dia em que abraçavam a nova fé. No próprio momento do seu batismo, de sua iniciação na vida cristã, essa tríplice realidade era invocada e confessada pelo oficiante e pelo batizando. Vários escritores cristãos dos primeiros séculos fizeram reflexões extremamente penetrantes acerca desse tema, como foi o caso de Irineu de Lião e Tertuliano de Cartago. Mas foi somente nos séculos quarto e quinto que as discussões teológicas a respeito da “tríade divina” produziram seus frutos mais ricos e duradouros.

O início do século quarto marcou um dos momentos mais decisivos da história do cristianismo. A adesão do imperador Constantino à fé cristã e o conseqüente Edito de Milão (ano 313) puseram fim a uma longa história de perseguições e deram iní­ cio a uma história ainda mais longa de ligações entre a Igreja e o Estado. Poucos anos após a ascensão de Constantino, um presbítero de Alexandria, no Egito, chamado Ario, começou a

divulgar as suas idéias a respeito de Cristo. Segundo ele, Cristo era muito superior aos seres humanos, mas inferior ao Pai, ten­ do sido criado por ele antes da existência do mundo. A acirrada controvérsia que se seguiu foi interpretada pelo imperador como um perigo tanto para a unidade da igreja quanto para a integri­ dade do império. A fim de resolver o problema, ele convocou os bispos cristãos para se reunirem na cidade de Nicéia, perto da capital imperial, Constantinopla, no ano 325.

Nicéia e Constantinopla

O Concílio de Nicéia, o primeiro dos chamados concílios ecu­ mênicos da Igreja antiga, reuniu cerca de 250 bispos, quase todos da parte oriental ou grega do Império Romano, e repre­ sentou uma mistura preocupante de agendas políticas e teoló­ gicas. Depois de intensos debates, aos quais não faltaram as interferências do monarca, o “arianismo” foi condenado como herético, sendo declarada vitoriosa a posição que defendia a personalidade distinta e a plena divindade de Cristo. O con­ cílio produziu um famoso Credo cujo ponto culminante foi a declaração de que o Filho era homoousios ou “consubstanciai” com o Pai. Todavia, por muitos anos houve fortes resistências contra a “doutrina da trindade” articulada pelos bispos reuni­ dos em Nicéia.

Foi somente através dos esforços de alguns hábeis teólogos que essa doutrina finalmente veio a encontrar ampla aceitação na região oriental do Império Romano. Quatro deles destacaram-se em especial: Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Gregó- rio de Nissa e Gregório de Nazianzo, sendo estes últimos conhe­ cidos como “os três capadócios”. Em sua argumentação, eles ape­ laram tanto às Escrituras como à experiência da igreja. Somente um Cristo que fosse ao mesmo tempo divino e humano poderia ser o verdadeiro e eficaz mediador entre Deus e os homens. Por outro lado, os cristãos desde o princípio aprenderam a exaltar a

Cristo, adorá-lo no culto e dirigir orações a ele. Somente um ser divino merecia ser tratado desse modo.

O triunfo da ortodoxia de Nicéia foi sacramentado no Con­ cilio de Constantinopla (ano 381), novamente no contexto de um importante evento político-religioso - a oficialização do cristianismo católico como a religião do império, no ano 380, pelo imperador Teodósio I. Os bispos reunidos na capital im­ perial reafirmaram as declarações de Nicéia, esclarecendo me­ lhor alguns pontos obscuros e fazendo uma afirmação explícita da personalidade e divindade do Espírito Santo. O novo credo assim produzido ficou conhecido como Credo “Niceno” ou Ni- ceno-Constantinopolitano.

Discutindo as duas naturezas

Finalmente, na primeira metade do século quinto uma nova controvérsia abalou a cristandade, dessa vez a respeito da rela­ ção entre as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana. Duas posições básicas se manifestaram desde o início, representadas essencialmente pelas célebres escolas de interpretação bíblica de Alexandria e Antioquia. Os alexandrinos entendiam que o Verbo divino uniu-se à carne, sendo o Cristo encarnado uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a unidade da pessoa de Cristo, dando mais ênfase ã sua divindade do que ã sua humanidade. Desse raciocínio resultaram duas posições que foram eventualmente rejeitadas: o “apolinarismo”, segun­ do o qual Jesus era uma combinação de alma racional divina (o Verbo) e corpo humano, e o “monofisismo”, que afirmava que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina.

Já os antioquianos entendiam que Cristo tinha tanto uma plena natureza divina quanto uma plena natureza humana. Seu problema estava na tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. O grande defensor dessa posição foi Nestório, o patriarca de Constantinopla. Ele afirmava com tanta ênfase

a distinção das naturezas que parecia ensinar que havia duas pessóas em Cristó, uma divina e óutra humana. Essas ques­ tões foram tratadas em outros dois concíhos ecumênicos. O Concilio de Efeso (ano 431) condenou o “nestorianismo” e o Concilio de Calcedônia (451) condenou também o apolinaris- mo e o monofisismo. Este último concilio formulou as suas conclusões na célebre Definição de Calcedônia: “Fiéis aos san­ tos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e o mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à hu­ manidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e corpo; consubstanciai ao Pai, segundo a divindade, e consubstanciai a nós, segundo a huma­ nidade... Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar em duas naturezas, sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação...”

Desdobramentos posteriores

Desde então, esse entendimento da pessoa de Cristo foi ampla­ mente aceito pelos católicos romanos, pelos ortodoxos gregos, e mais tarde pela maior parte dos protestantes. E parte daquilo que se denomina a fé cristã histórica. Todavia, desde aquela época até os nossos dias têm surgido críticas contra essas for­ mulações doutrinárias da Igreja antiga, alegando-se desde o uso de terminologia extrabíblica e influências do pensamento gre­ go até as interferências políticas na vida da igreja. Nos últimos séculos, muitos indivíduos e grupos têm simplesmente negado essas formulações históricas, retrocedendo a antigas posições que foram condenadas pelas mesmas.

O fato é que, mesmo reconhecendo-se esses problemas e a consideração adicional de que as declarações doutrinárias não são infalíveis, as doutrinas ou dogmas cristológicos da Igreja an­ tiga, são aceitos pela maioria dos cristãos como uma expressão

autêntica da fé bíblica, refletindo de maneira fiel as convicções liásicas de incontáveis gerações de seguidores de Cristo. Por limitadas que sejam essas formulações, pois que vazadas em linguagem e categorias de pensamento humanas e condiciona­ das, elas continuam insuperadas na beleza de seus termos, na profundidade e equilíbrio das suas declarações e no esforço de íazer justiça à totalidade do ensino das Escrituras a respeito de Cristo, sua pessoa e sua obra. Elas reafirmam, em linguagem teológica, a grandiosa mensagem de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unígênito do Pai” Qo 1.14).

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO

1. A doutrina cristã de Deus deve ser inteligível, racional, ou simplesmente procurar ater-se ao testemunho das Escrituras?

2. A pessoa de Cristo foi motivo de controvérsia e escândalo no período antigo e continua a sê4o hoje. Isso deve preocupar os cristãos?

3. Que aplicações valiosas e encorajadoras podem ser tiradas da triunidade de Deus?

4. Se a doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo precisasse ser repensada hoje, em que direção isso deveria ocorrer?

5. Quais as conseqüências práticas de se acreditar ou não na divindade de Cristo?

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

BAILLIE, D. M. Deus estam em Cristo: ensaio sobre a

encarnação e a expiação. 2^ ed. Rio de Janeiro: JUERP/

ASTE, 1983.

BERKOWER, G. C. A pessoa de Cristo. São Paulo: JUERP, 1983.

CAMPOS, Heber Carlos de. A pessoa de Cristo: as duas

naturezas do Redentor. Slo Paulo: Cultura Cristã, 2004.

McLEOD, Donald. A pessoa de Cristo. Série Teologia Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.

WALI-ACE, R.S. Cristologia. Em ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. Sâo Paulo: Vida Nova, 1988-1990. Vol. I, p. 381-389.

C apítulo 6

So l a Sc r i p t u r a

A CENTRALIDADE DA BÍBLIA