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OS CRISTÃOS E A RESPONSABILIDADE SOCIAL

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OS CRISTÃOS E A RESPONSABILIDADE SOCIAL

NA MAIOR PARTE da história da igreja os cristãos entenderam que o socorro aos sofredores era um aspecto muito importante da sua vocação no mundo. Eles não acreditavam que havia qual­ quer conflito entre essa preocupação e outros interesses da vida cristã. Foi somente no século 20 que o envolvimento social da igreja se tornou um pomo de discórdia, rompendo o consenso que havia imperado por longo tempo. Vale a pena considerar alguns aspectos dessa questão. '

O precedente bíblico

O Antigo Testamento está repleto de preceitos e narrativas refe­ rentes à temática social. As figuras do pobre, do órfão, da viúva e de outras pessoas em situação de desamparo povoam as Escri­ turas Hebraicas. A lei de Moisés continha dispositivos que iam além do mero atendimento de necessidades imediatas, criando condições para que houvesse menor desigualdade na sociedade

de Israel. Sãó exemplos disso a lei da rebusca (Lv 19.9-10; 23.22; Dt 24.19-21) e o ano do jubileu (Lv 25.8-34). Quando se chega à literatura profética, em especial aos “profetas éticos” do século oitavo a.C. (Isaías, Oséias, Amós e Miquéias), a justiça, a mise­ ricórdia e a generosidade no trato com os sofredores se tornam um tema dominante (Is 1.17,23; 3.14-15,18-23; 5.7-8; 58.5-10; Os 10.12; 12.5-7; Am 2.6-7; 4.1; 5.12,24; 8.4-6; Mq 2.1-2; 6.8).

Jesus retomou e aprofundou essas preocupações. Numa épo­ ca em que a religiosidade judaica havia se cristalizado em torno de três práticas formais - esmolas, oração e jejum - o Senhor corrigiu algumas distorções vigentes, ensinando que a prática da caridade devia ser humilde, desinteressada e motivada pelo amor (Mt 5.7; 6.1-4; 7.12). Ao anunciar o evangelho do reino, ele apontou como uma de suas características a sensibilidade diante da dor alheia e a prontidão em assistir os desafortuna­ dos. Ele mostrou isso de modo magistral através de alguns de seus ensinos mais apreciados, como a parábola do Bom Sama- ritano (Lc 10.30-37) e a inquietante história do Grande Julga­ mento (Mt 25.31-46).

Na mente das primeiras gerações de cristãos ficou a imagem de Jesus como alguém que passou pelo mundo fazendo o bem (At 10.38). O ensino apostólico colocou a beneficência no cen­ tro da vida cristã - a misericórdia ou benignidade é um dos dons espirituais e um fruto do Espírito (Rm 12.8; G1 5.22); deve-se fazer o bem a todos, a começar dos irmãos (G1 6.9-10); a solidariedade deve ir além das meras palavras, para manifestar- se em ações concretas (Tg 2.15-16; 1 Jo 3.17-18). A própria insti­ tuição do diaconato testifica sobre a importância desse aspecto da vida cristã e do ministério da igreja.

A experiência da igreja

Os primeiros cristãos atribuíam grande valor á prática da mise­ ricórdia. A hospitalidade e as ofertas para fins caritativos eram

generalizadas entre os fiéis. Um documento da época afirma: “O jejum é melhor que a oração, mas as esmolas melhores que ambos” (2 Clemente 16). A epístola conhecida como 1 Clemente

fala de cristãos que se vendiam como escravos para poderem socorrer os necessitados (55.2). Quando surgiam epidemias, os fiéis não deixavam de dar assistência aos enfermos e de sepultar os mortos. As viúvas, os órfãos, os enfermos e as crianças rece­ biam especial cuidado.

Em períodos de grave conturbação social, como nos estágios finais do Império Romano, a igreja era a única instituição que estava preparada para ajudar as populações afligidas. Um desdo­ bramento preocupante ocorreu ainda no período antigo e se apro­ fundou na Idade Média - o entendimento de que a pobreza e a caridade tinham um valor meritório diante de Deus. Isso acabou desvirtuando as motivações que levavam muitas pessoas a se des­ fazerem dos seus bens e a socorrerem os necessitados. Além disso, uma atitude fatalista em relação à pobreza involuntária impedia que os pobres superassem a condição em que viviam. Apesar des­ sas mazelas, a história desse longo período atesta o profundo en­ volvimento dos cristãos com a assistência aos seus semelhantes.

Os reformadores protestantes questionaram o aspecto meri­ tório da beneficência medieval, mas mantiveram a antiga ênfa­ se na caridade cristã. Eles escreveram e pregaram amplamente sobre o assunto, bem como tomaram importantes iniciativas nessa área. Isso pode ser ilustrado pelas ações de João Calvino, o reformador de Genebra. Em sua vasta produção literária, ele abordou amplamente a temática social. Mais que isso, Calvino incentivou o retorno do diaconato cristão às suas funções ori­ ginais e destacou que a igreja tem o papel profético de denun­ ciar os males sociais e exortar os governantes a promoverem o bem-comum. Ele apoiou pessoalmente duas importantes ins­ tituições caritativas de Genebra: o Hospital Geral e o Fundo Francês para estrangeiros carentes.

Um aspectó interessante da história posterior do protes­ tantismo é que os períodos de revitaUzação espiritual foram marcados por intensa preocupação social. Isso se deu com o pietismo alemão, com o puritanismo inglês e com os grandes despertamentos norte-americanos. Todos esses poderosos movi­ mentos se voltaram intensamente para questões práticas como educação, missões e beneficência. Esse consenso dos evangéli­ cos em torno da compatibilidade entre a vida espiritual, a evan­ gelização e o serviço cristão viria a ser questionado ao longo do século 20.

O evangelho social

O “evangelho social” foi um movimento de grande importância no protestantismo norte-americano por cerca de cinqüenta anos (1880-1930). Influenciado pelo liberalismo teológico, mas distin­ to do mesmo em vários aspectos, foi uma resposta à crise urbana ocasionada pelo crescimento econômico posterior à Guerra Ci­ vil. Seu principal teórico foi Walter Rauschenbusch (1861-1918), um pastor batista e professor de seminário cujo livro O Cristia­

nismo e a Crise Social o tornou nacionalmente famoso em 1907.

Outros livros seus foram Cristianizando a Ordem Social (1912) e

Uma Teologia para o Evangelho Social (1917).

O movimento pretendia dar uma resposta bíblica e cristã à situação de abandono experimentada pelos trabalhadores e imigrantes que viviam nos cortiços das grandes cidades. Insistia em conceitos como “a implantação do reino de Deus na terra” e a importância de uma “sociedade redimida”. Essas idéias foram popularizadas pelo livro Em Seus Passos que Faria Jesus! (1897), do pastor congregacional Charles Sheldon. O evangelho social tendia a dar uma ênfase excessiva á transformação da socieda­ de, via a missão cristã no mundo principalmente em termos de ação social e tinha um otimismo pouco realista em relação ao ser humano.

Na mesma época surgiu nos Estados Unidos um outro movimento - o fundamentalismo - caracterizado por forte aver­ são ao liberalismo. Por causa das ligações do evangelho social com a teologia liberal e suas ênfases diferentes do protestantis­ mo conservador, os fundamentalistas rejeitaram não só o novo movimento, mas a própria noção de envolvimento social como algo incompatível com a vida cristã e a pregação do evangelho. A partir de então, os “evangélicos” afastaram-se da área social em que haviam atuado por tanto tempo ao lado de cristãos com ou­ tras convicções. Somente com o Congresso Mundial de Evange­ lização, em Lausanne, Suíça, em 1974, os evangélicos voltariam a interessar-se mais amplamente pelas questões sociais.

A teologia de libertação

Na América Latina de meados do século 20, durante um pe­ ríodo de grandes tensões políticas, econômicas e sociais, em que populações inteiras experimentavam injustiças e exclusão social, teólogos católicos e protestantes articularam uma nova teologia centrada no conceito bíblico de Deus como libertador. Seus principais proponentes foram, do lado católico, Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, Jon Sobrino, José Porfirio Mi­ randa, Hugo Assmann, Henrique Dussel, Leonardo Boff e ou­ tros. Entre os protestantes, alguns pensadores influentes foram Rubem Alves, M. Richard Shaull e José Miguez Bonino.

A teologia da libertação acabou sendo rejeitada por um gran­ de número de católicos e protestantes, em virtude de algumas de suas ênfases: a tendência de encarar o reino de Deus somente da perspectiva da libertação política e social, a utilização de ca­ tegorias do pensamento marxista para analisar as realidades da América Latina, o apoio tácito ou explícito a movimentos da esquerda radical e o desprezo da teologia e piedade tradicionais, acusadas de serem aliénantes. O liberacionismo acabou perden­ do o ímpeto como movimentp articulado, "nSs intensificou as

reservas de amplos setores cristãos quanto ao envolvimento com as causas sociais. Entre os evangélicos surgiu uma alternativa à teologia da libertação, o conceito de “missão integral” represen­ tado pelos membros da Fraternidade Teológica Latino-Ameri­ cana, tais como Samuel Escobar, C. René Padilla, Orlando E. Costas, Rolando Gutiérrez, Tito Paredes, Emílio A. Núnez e Valdir Steuernagel.

Conclusão

A luz do ensino bíblico, do exemplo de Cristo e das lições da história, os cristãos não podem ignorar o desafio social. Como a justiça social é uma das implicações do evangelho, evitar essa área acarreta sérias dificuldades para a consciência cristã e para o testemunho cristão. O fato de alguns movimentos terem tido problemas nessa abordagem não isenta os cristãos da sua res­ ponsabilidade. Ao contrário, num mundo afligido por tantas situações que atentam contra a vida, a dignidade e o bem-estar dos seres humanos, é mister que os cristãos redobrem os seus esforços no sentido de seguir os passos daquele que “andou pela terra fazendo o bem”.

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO

1. Por que razões a Escritura dá tamanha ênfase à justiça social e ao socorro aos necessitados?

2.0 que as ações e ensinos de Cristo nessa área nos revelam sobre o caráter de Deus?

3. Ao longo da história da igreja, que atimdes em relação aos pobres e à pobreza podiam se tornar negativas? 4. Por que muitos cristãos tendem a fazer uma dicotomia

entre espirituaUdade e envolvimento social? 5. Como os cristãos podem participar de maneira

construtiva da eliminação das injustiças e da exclusão ■ social?

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

CAVALCANTI, Robinson, igreja: evangelização, serviço e

transformação histórica.Niterói: Vinde, 1987.

GILL, D.W. Ética social. EmELWELL, W alter A. (Ed.).

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LOPES, Augustus Nicodemus. Calvino e a responsabilidade

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MATOS, Alderi S. A missão da igreja: uma perspectiva latino-

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88.

SHEDD, Russell P. A justiça sodal e a interpretação da

Bibba.São Paulo: Vida Nova, 1984.

STOTT, John. Pacto de Lausanne comentado por John Stott. 1- ed. São Paulo; ABU Editora, 2004 (1983).

STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo: como ser um

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ATITUDES DOS CRISTÃOS EM RELAÇÃO