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AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A SECULARIZAÇÃO

2.1 As correlações entre as Ciências Sociais e o macro processo de secularização

institucionalização e profissionalização desta área do saber científico no Brasil.

2.1 As correlações entre as Ciências Sociais e o macro processo de secularização

As Ciências Sociais constituem uma das várias manifestações do mundo moderno e, com a sua consolidação, a ciência passa a cobrir uma nova área do conhecimento, a realidade social, que até então estava entregue ou às especulações da filosofia social, ou aos discursos mítico e religioso. As Ciências Sociais e, em particular, a Sociologia, são um produto e, ao mesmo tempo, uma das forças propulsoras e modeladoras do mundo moderno, refletindo suas tensões e contradições, assim como fornecendo matéria-prima e manufaturada para que ele seja menos obscuro e incógnito.

A sociologia nasce e se desenvolve com o mundo moderno. Reflete as suas principais épocas e transformações. Em certos casos, parece apenas sua crônica, mas em outros desvenda alguns dos seus dilemas fundamentais. Volta-se principalmente sobre o presente, procurando reminiscências do passado, anunciando ilusões do futuro. Os impasses e as perspectivas desse mundo tanto percorrem a sociologia como ela percorre o mundo (Ianni, 1989, p.8).

Seu surgimento, e posterior desenvolvimento, ocorrem em um contexto histórico bem específico, que marca os últimos momentos da sociedade feudal e anuncia a emergência e consolidação da sociedade urbano-industrial capitalista. Este processo trouxe a reboque uma plêiade de novos problemas36 que precisavam de uma explicação também nova, que não mais estivesse lastreada na autoridade religiosa, mas sim na capacidade humana de, por meio da razão, apreender, explicar e controlar os fatos e fenômenos da natureza física e social. Pode-se dizer que a emergência das Ciências Sociais no século XIX constitui-se em uma das mais visíveis expressões do desenvolvimento do macro-processo de intelectualização/racionalização do mundo que, segundo Weber, é a principal marca distintiva da sociedade ocidental moderna. Pois, com as Ciências Sociais, toda uma área nova, a das práticas, experiências e relações humanas, passa a ser objeto de especulação e reflexão racionais. 37

O berço desse processo será a Europa, com destaque para a França e a Alemanha, onde serão desenvolvidas as clássicas teorias responsáveis pela fundação deste novo saber. Mas será na América do Norte, particularmente nos EUA, no

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Eram as condições inumanas de trabalho, a exploração da mão-de-obra infantil, a exploração sem limites da mão-de-obra feminina, as precárias condições de higiene, a miséria generalizada, estruturas de poder pouco ou nada flexíveis e impermeáveis aos anseios das grandes massas etc. 37

É importante ressaltar que a religião foi um tema que esteve presente de forma marcante nos clássicos da sociologia: Marx, Weber e Durkheim. Com exceção de Marx – para quem a crítica da religião já tinha sido completada, e o que se precisava agora era efetuar a crítica da relaidade que produz a religião –, tanto Dukheim quanto Weber dedicaram partes significativas de suas obras para o estudo da posição e do papel da religião na modernidade. Estes dois autores, apesar de se diferenciarem quanto à concepção do fenômeno religioso e quanto à forma de abordá-lo – Durkheim seguindo uma perspectiva funcionalista, enxergando a religião como principal instituição responsável pela construção da coesão nas sociedades tradicionais, e Weber seguindo uma perspectiva substantiva, buscando compreender o sentido da ação social relgiosamente condicionada –, possuem um fio condutor em comum entre suas abordagens: a idéia da perda progressiva da importância e abrangência da religião na modernidade.

primeiro quartel do século XX, que as Ciências Sociais experimentarão primeiramente um processo de institucionalização e de profissionalização38. Neste país, as Ciências Sociais, em particular a Sociologia, construirão um conjunto de técnicas de pesquisa, um quadro teórico e analítico, um corpo de profissionais de dedicação exclusiva no fazer ciência, veículos de comunicação dos resultados das pesquisas realizadas, uma estrutura hierárquica de posições, com poder e prestígio diferenciados etc., ou seja, será nos EUA que a Sociologia de fato se tornará um campo39 particular de produção de um saber competente sobre a realidade social, onde um novo agente social surge: o sociólogo profissional. Trata-se de figura legitimamente constituída e reconhecida socialmente, para emitir juízos avaliativos e propostas intervencionistas sobre o recorte do real que se constitui em seu objeto.

Mas é importante frisar que este processo de institucionalização e profissionalização das Ciências Sociais, tanto nos EUA40 como nos demais países

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O termo profissão e profissional está sendo utilizado aqui de acordo com o significado que este termo possui na Sociologia e sociedade americanas, de acordo com o trabalho de Bonelli (1993). Segundo esta autora, nos EUA a profissão diz respeito à posse de uma titulação acadêmica, em oposição à ocupação que diz respeito ao trabalhador que não possui esta formação superior, ou seja, ser profissional significa ter um curso superior. E este título é a prova da capacidade de prestar serviços especializados com base no saber científico. No Brasil este significado ampliou-se e se estendeu pela estrutura ocupacional e está ligada à aquisição de um trabalho urbano em contraposição ao rural. Por esta razão, diz Bonelli, exige-se atitude profissional de um porteiro, de uma empregada doméstica, de um mecânico de automóveis, de um chaveiro etc. No entanto, o termo brasileiro profissão superior acaba por identificar-se com o sentido americano.

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Segundo Bourdieu (1983, p.89), o campo constitui-se em um espaço estruturado e hirarquizado de posições (ou de postos), ocupados por diversos agentes, que se relacionam por meio da luta, para conquistar e manter, por um espaço de tempo o maior possível, o poder simbólico, definido como “o poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar e/ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, o mundo.” Assim, para Bourdieu, a realidade social seria o sistema formado pelas relações existentes entre os diversos campos que a constituem, cada um com sua lógica própria e autonomia relativa. Cada campo, dependendo de sua extensão, agregaria em seu interior campos de menor escala, mas que possuiriam, cada um deles, características componentes do campo mais amplo do qual faz parte. Portanto, o campo das Ciências Sociais faz parte do campo mais amplo da ciência, onde ocupa uma posição determinada e de onde abstrai e utiliza os critérios avaliativos, distintivos e hierárquicos.

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Chicago foi o locus da institucionalização e profissionalização da sociologia nos EUA. Sob a influência do protestantismo associado ao pragmatismo, a sociologia ganhou um caráter de

onde essa ciência se desenvolveu, se processou por meio de lutas internas ao campo científico do qual as Ciências Sociais faz parte, que giravam em torno da delimitação de competências e áreas de atuação, assim como de reconhecimento interno da profissão, o que Bonelli (1993) denomina de “competição interprofissional”. Em suas palavras:

as Ciências Sociais, como qualquer outra profissão, enfrentam competição direta com seus ‘vizinhos’. No caso concreto, disputam-se objetos de estudo, vagas no mercado de trabalho, formas específicas de abordar realidades que qualificam mais a profissionais de uma área do que de outra.” Disputa-se também a regulamentacão que determine o monopólio do exercício das atividades profissionais. (Bonelli, 1993, p.8).

Existiram também, ainda segundo esta autora, um outro tipo de competição que se processaria no âmbito interno do campo das Ciências Sociais entre os seus integrantes, denominada de “competição intraprofissional”, cujos exemplos mais claros seriam

as diferenças de visões e interesses entre os cientistas sociais que trabalham na pesquisa de mercado, mídia e opinião, com os professores universitários, bem como os atritos entre os profissionais da área de planejamento urbano e os de intervenção social (Bonelli, 1993, p.9).

Além desses dois tipos de competição ressaltados por Bonelli (1993), como característicos do funcionamento do campo profissional das Ciências Sociais, pode- se acrescentar uma outra forma de competição que esteve presente desde a gênese dessa ciência, a saber: as lutas dos cientistas sociais com os agentes constituintes de

conhecimento voltado para a reforma social, um saber que deveria escrutinar a realidade, por meio de pesquisas empíricas, e propor formas eficazes de intervenção. Também será aí, por intermédio de um dos seus principais fundadores, Abion Small, que se gestará uma das primeiras formas de organização e representação da categoria, a American Sociological Society. Ver sobre a escola de Chicago Coulon (1995), Valladares (2005).

outros campos sociais, pelo monopólio legítimo do poder de construção de discursos competentes sobre a realidade social. Exemplo desse tipo de luta é aquela travada pelos cientistas sociais contra os agentes constituintes do campo religioso, pelo controle da explicação da realidade social.

Esta luta, que acontece onde quer que as Ciências Sociais se estabeleçam, impulsiona o processo de redução gradativa, mas não linear, do âmbito de abrangência do discurso religioso e, com isto, aprofunda o movimento de diferenciação e autonomização das esferas sociais – características marcantes do macro-processo de secularização -, possibilitando inferir que as Ciências Sociais, no seu processo de desenvolvimento e consolidação, representam uma força secularizante significativa.