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Este trabalho buscou apreender as possíveis afinidades eletivas entre o curso de Ciências Sociais e a formação de uma visão de mundo secular, a partir da recuperação da trajetória de vida, com ênfase no percurso da vida religiosa dos entrevistados antes, durante e após suas formações profissionais no campo das Ciências Sociais. Para tanto, apoiou-se no conceito de habitus estudante de Ciências Sociais visando configurar as especificidades dos entrevistados e se estruturou, em capítulos específicos, os elementos teórico-históricos necessários à abordagem do tema, norteando-se pelas questões orientadoras do estudo.

A pesquisa abrangeu profissionais formados no estado da Paraíba, no período compreendido entre 1980-2005. Os seus principais resultados, que serão retomados/sintetizados a seguir, representam uma interpretação alicerçada no recorte teórico utilizado e nos diversos condicionamentos a que o autor estava submetido no momento da análise. Depreende-se, pois, que se trata de uma dentre diversas formas analíticas possíveis. Neste sentido, pode-se considerar que o trabalho fica em aberto, e que estas considerações finais devem ser encaradas como ponto simultâneo de chegada e de partida. Ponto de partida, sob a perspectiva de que novas investigações e novos atores possam vir a contribuir para um maior aprofundamento e compreensão do tema trabalhado. Ponto de chegada, conquanto representa uma síntese provisória, fortemente influenciada pelas questões norteadoras da pesquisa e pelo suposto básico adotado.

Isto posto, será feita agora a retomada dos elementos mais significativos do estudo empírico realizado.

A análise das entrevistas teve como suposto básico a existência de uma relação de afinidade eletiva entre o curso de Ciências Sociais e a formação de uma visão de mundo secular, ou seja, que as Ciências Sociais se constituiriam em um agente importante do macro-processo de secularização. Tal suposto fundamenta-se na literatura que concebe a Secularização como um processo progressivo, mas não linear, complexo e intricado de deslocamento da religião de sua posição axial como instância produtora de um sentido globalizante, responsável pela integração social, para a esfera das relações privadas. Processo este que, dependendo do espaço geográfico e das características histórico-culturais, processar-se-á de forma variada, em rapidez, profundidade e características. Este deslocamento, que significa declínio da religião, isto é, perda de poder, status e retração de seu campo de atuação, é representado, de forma explícita, pela separação, e posterior autonomização, das diversas esferas formadoras do social em relação à religião – processo que é potencializado pelo surgimento e institucionalização das Ciências Sociais. Este deslocamento também se verifica pela transformação da religião em um item de mercado, um bem ou serviço que, apesar de suas peculiaridades, passa a sofrer os mesmos condicionamentos a que estão submetidas todas as outras mercadorias, produtos que são das ações humanas. Além de ficar a mercê das escolhas individuais.

Os entrevistados, antes da entrada no curso, tinham experimentado um processo de socialização onde a religião se configurava, na quase totalidade dos casos,73 como elemento importante na formação de suas personalidades e visões de mundo. Tanto é que, quando questionados sobre a importância desta na formação dos valores morais e éticos de um indivíduo, quase todos confirmaram que a religiosidade é considerada fundamental. Vale ressaltar que aqueles que tiveram uma formação religiosa mais ativa, marcada por uma participação em movimentos religiosos coletivos, apontaram a influência desta experiência como co- determinante na escolha do curso de graduação em Ciências Sociais.

Durante a permanência no curso, percebeu-se que o conjunto dos

entrevistados experimentou, de forma diferenciada, uma modificação na visão de

mundo referente à religião. Contudo, isto não se refletiu, para alguns entrevistados, principalmente os que se denominaram protestantes e aqueles católicos que não nutriam antes do curso questionamentos sobre a religião, um afastamento ou desligamento da religião de origem. Chamou a atenção, inclusive, um caso em que o maior conhecimento do fenômeno religioso ensejou uma maior adesão e um aumento da intensidade de participação.

Outro elemento interessante é a percepção, que é mais forte nos entrevistados que se formaram no Campus II da UFPB (em Campina Grande), da existência de um conjunto de predisposições comportamentais, um verdadeiro

habitus, que incluía uma “cesta de produtos” que deveriam ser consumidos e que

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Apenas um dos entrevistados não teve acesso, em seu processo de socialização na infância e adolescência, aos conteúdos do discurso religioso.

eram constitutivos da representação que se construiu, interna e externamente, sobre o perfil do estudante de Ciências Sociais. Tais predisposições incluíam uma forma específica de perceber e de se relacionar com a religião, caracterizada, predominantemente, pelo questionamento da influência marxista e mesmo, em alguns casos, pelo afastamento da religião. No entanto, é importante ressaltar que este conjunto de predisposições, este habitus, foi sofrendo modificações ao longo do tempo, devido às mudanças mais amplas no contexto histórico, sócio- econômico, político e acadêmico-ideológico, onde se observou, a partir dos anos 1990, uma redução relativa do peso do marxismo na formação dos cientistas sociais. Na trajetória de vida após o curso, a maioria dos profissionais manteve o posicionamento referente à opção religiosa; entretanto, há relatos de uma mudança de postura frente à religião. O aspecto mais importante diz respeito ao abandono de uma posição crítica sobre o fenômeno religioso, compartilhada por alguns entrevistados, que o entendiam meramente como um processo alienante. Esta visão cedeu lugar, progressivamente, a uma perspectiva mais ampla e complexa do fenômeno religioso, onde este passou a ser encarado como uma construção/instituição humana que, no contexto da modernidade, passou a cumprir novas funções e experimentou transformações profundas na estrutura e configuração de seu campo.

Quando questionados sobre a forma que percebem atualmente o campo religioso brasileiro e o fenômeno religioso de uma forma mais ampla, as respostas denotam uma visão de mundo secularizada, pois percebem que, na modernidade, a

religião perdeu sua posição central de instância produtora de sentido, sendo lançada na esfera do âmbito privado e passando a ser encarada como um produto que vem a suprir necessidades estreitamente individuais. Com efeito, a religião é percebida, por todos os entrevistados, como uma questão eminentemente de escolha e identificação individuais, que tem na sua função soteriológica, sua razão maior de permanência.

É interessante destacar, nesta visão pós-curso, que a representação do povo brasileiro como sendo extremamente religioso existe e é atribuída, predominantemente, a fatores históricos e culturais remanescentes à nossa colonização. Esta diversidade é vista positivamente, por representar um arrefecimento do monopólio da igreja católica, mas tal visão é acompanhada, apesar do declínio das ideologias de cunho marxista, de uma crítica à racionalidade capitalista, responsabilizada pelo caráter de fetiche das religiões, vivenciadas como “mercadorias em supermercados”. Tal crítica transcende a realidade brasileira e um denominador comum se coloca, pelos entrevistados: a relação ciência-religião precisa e deve ser melhor investigada/encarada. Há um consenso no sentido de que a religiosidade hoje vivida preenche um vazio de valores, fruto da crise da modernidade e do próprio capitalismo. Mas este vazio também remete à questão da transcendência humana: quem somos? Para onde vamos, após a morte? Questões milenares, que continuam desafiando a condição humana.

Com efeito, podemos dizer que o curso de Ciências Sociais, no que tange à religiosidade, ensejou, simultaneamente, e de um modo aparentemente paradoxal, o questionamento da religião e a reafirmação de posturas religiosas que, de especial,

traduzem um maior desapego às práticas institucionais. A maioria dos entrevistados afirma crer na existência de uma divindade (seja que nome esta tenha), à qual se recorre nos momentos difíceis (doenças, mortes), e/ou que contribui para a formação de valores morais e éticos. Assim, o suposto básico deste estudo acabou sendo corroborado, em parte: se a formação em Ciências Sociais atualmente não leva necessariamente a um distanciamento ou negação da religião, possibilita, contudo, a construção de uma visão de mundo onde a religião é apreendida como uma instituição humana, com características específicas e respondendo a demandas constituintes do universo da vida privada. Em outras palavras, a religião, para o total dos entrevistados, não mais possui daquela capacidade de cobrir de sentido e significado a totalidade da existência humana. Com efeito, como ressalta Berger (1985), o “dossel sagrado” se desfez. E isto significa secularização. Secularização esta que pode ser explicada pela existência de afinidades eletivas entre a formação em Ciências Sociais e a construção de uma postura secular.