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Mapa 9: Locais de atuação dos índios do Ceará na Balaiada

1.2. AS DEFESAS DO DIRETÓRIO

"Tratava-se [...], essencialmente, de povoar?",31 pergunta Fernando Novais acerca da

política colonial portuguesa durante a crise do Antigo Regime. No período onde a monarquia buscava estimular a acumulação primitiva de capitais, "elemento constitutivo do processo de

formação do capitalismo moderno",32 impunha-se a "adoção de formas de trabalho

compulsório", com forte destaque para o escravismo. Para isso, não bastava, no Brasil, apenas o povoamento: este se organizava "através do engajamento de trabalhadores (europeus, aborígenes ou africanos, conforme o caso)". Portanto, "o essencial era a exploração", cujas

várias formas de trabalho ficavam, para o autor, "ainda por explicar".33 Ainda assim, acredita

ser indiscutível "que os indígenas foram também utilizados em determinados momentos", mesmo que a sua rarefação demográfica e a importância do tráfico negreiro para o comércio

colonial possibilitassem a preferência econômica em relação à escravidão africana.34

A situação do Ceará à época era diferente do que descreve o autor e das capitanias que adotaram a Carta Régia de 1798. Até o final do século XVIII, a atividade econômica predominante em território cearense era a pecuária e a comercialização de couro e carne seca,

quando foi suplantada pela cultura do algodão.35 A mão-de-obra era majoritariamente livre,

30 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 245.

31 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial: (1777-1808). São

Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 99.

32 Ibid., p. 70. 33 Ibid., p. 98-99. 34 Ibid., p. 105.

35 Cf. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos: origens do trabalho livre no Ceará

colonial. Revista de Ciências Sociais, vol. 20/21, n. 1/2, 1989/1990, p. 10-11. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará. In: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia; MARIZ, Marlene; DANTAS, Beatriz Góis. Documentos para a história indígena no Nordeste. São Paulo: USP/NHII/FAPESP, 1994, p. 19. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira

da capitania do Ceará (1780-1822). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 1997, p.

77-83. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008, p. 197-199. FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”: a construção do Estado nacional brasileiro e os projetos políticos no Ceará (1817-1840). Dissertação (mestrado) – Universidade

ainda que, como a historiografia mostrou nas últimas décadas, a escravidão tenha sido bem

mais importante do que se acreditava.36 A partir da década de 1780 se iniciou o auge da

produção algodoeira no Ceará, que coincidiu com as tentativas, por parte dos ricos

comerciantes da capitania, de emancipação em relação a Pernambuco, ocorrida em 1799.37

Segundo José Jobson Arruda, este contexto foi marcado pela dinâmica da economia mercantil de subsistência que integrou o Brasil no mercado mundial, por meio das diferentes zonas

produtivas e dos variados padrões de acumulação nas regiões brasileiras.38 Fortaleza se

consolidou como capital, apesar de menos estruturada que outras vilas, tanto por conta das condições de seu porto quanto pela estratégia da Coroa portuguesa de concentrar o poder em

uma região “neutra”, ou seja, longe dos conflitos entre potentados das diferentes ribeiras.39

Outra característica relevante de Fortaleza, também importante em sua definição como capital, era sua proximidade com as regiões produtoras se algodão e das vilas e povoações indígenas. Os índios formavam, até meados dos setecentos, parcela considerável dos escravos capitania, até que, por meio do Diretório, foram considerados definitivamente livres. Curiosamente, na segunda metade do século XVIII, a população escrava no Ceará cresceu em

decorrência do desenvolvimento da economia em algumas regiões da capitania.40 Em outras,

onde se localizavam as lavouras algodoeiras, os índios continuaram a ser uma indispensável reserva de mão-de-obra. O desenvolvimento econômico, atrelado à emancipação da capitania e a supremacia de Fortaleza como capital, principal porto exportador, aumentou a necessidade

Federal do Ceará, 2010, p. 20-30. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure

(CE): 1798-1860. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2012, p. 61-62, 113.

36 CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará: the need for a reappraisal.

Revista de Ciências Sociais, vol. IV, n. 1, 1973, pp. 31-43. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Fontes inéditas

para a história indígena no Ceará, p. 18. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do

meu trabalho”: negros de cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822). Tese (doutorado) – Universidade Federal

do Ceará, 2015, p. 18-19.

37 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 16-17. LEITE NETO, João. A

participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822),

p. 79.

38 ARRUDA, José Jobson de Arruda. O sentido da colônia. Revisitando a crise do antigo sistema colonial no

Brasil (1780-1830). In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. Bauru: EDUSC; São Paulo: UNESP; Lisboa: Instituto Camões, 2000, p. 182.

39 FELIX, Keile Socorro Leite. “Espíritos inflamados”, p. 51-52. “Até a segunda metade do século XIX não

havia uma unidade político-administrativa no que chamamos hoje de Ceará. [...] A administração da capitania era feita com base naqueles marcos geográficos que haviam sido suas vias de comunicação, ou seja, as ribeiras” Estas eram “unidades independentes uma das outras [...] com pouco nível de centralização das decisões nas mãos do capitão-mor, depois de 1799, governador da capitania”. Cf. OLIVEIRA, Almir Leal de. A construção do Estado nacional no Ceará na primeira metade do século XIX: autonomias locais, consensos políticos e projetos nacionais. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 17-18.

40 LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da

capitania do Ceará (1780-1822), p. 102-104. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”, p. 16-17.

do fornecimento de braços indígenas. Estes, além dos trabalhos nos algodoais por aluguel e em cultivos como da mandioca, eram também requisitados em outros serviços, como obras

públicas ou artesanato.41 Como afirma Francisco José Pinheiro, os índios se transformaram

em um dos principais grupos cooptados como mão-de-obra para a produção de algodão no final dos setecentos, “tendo em vista que já havia toda uma legislação regulamentando as

relações de trabalho entre estes e os proprietários”.42

A respeito das especificidades regionais como definidoras das práticas dirigidas aos índios, Fernanda Sposito concorda que o Diretório e a Carta Régia de 1798 faziam sentido para a realidade amazônica, e outras conjunturas demandavam ações distintas. Ou seja, era “difícil para a Coroa conjugar esforços para elaborar uma política que [pudesse] ser plenamente aplicada em toda a América”. Para a autora, não se pode pensar a questão indígena deste contexto atrelando-a unicamente a uma dimensão local. Todas as diferentes ações indigenistas da monarquia lusitana faziam parte “do mesmo processo de consolidação

das fronteiras em alta densidade demográfica indígena”.43

Sposito expõe com lucidez os sentidos distintos que cada uma das políticas indigenistas – seja do período pombalino como do joanino – poderiam assumir. Entretanto, ao contrário do que acredita a autora, o quadro legislativo não se resumia à aplicação das Cartas Régias de 1798 e 1808 (de ataque aos botocudos) para regiões de expansão da fronteira

externa e interna, respectivamente.44 Como mostra Juciene Apolinário, foi ordenada pela

secretaria do reinado de dom João VI em 1821 a plena aplicação do Diretório nas terras dos povos timbiras, habitantes nos limites das capitanias do Maranhão, Goiás e Pará – região

fortemente assediada pelo avanço das fazendas de gado.45

Além disso, justamente por conta do caráter multifacetado da política indigenista no limiar do século XIX, a questão indígena não era relevante apenas em periferias ou áreas de

expansão de fronteira.46 Já em meados dos setecentos haviam sido fundadas vilas em todas as

41 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 21-25. PORTO ALEGRE, Maria

Sylvia. Fontes inéditas para a história indígena no Ceará, p. 19-21. LEITE NETO, João. A participação do

trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da capitania do Ceará (1780-1822), p. 93-104.

PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226.

42 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 200.

43 SPOSITO, Fernanda. As guerras justas na crise do Antigo Regime português: análise da política indigenista de

d. João VI. Revista de História, n. 161, vol. 2, 2009, p. 108-109.

44 Ibid., p. 109-110.

45 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Povos timbira, territorialização e a construção de práticas políticas nos

cenários coloniais. Revista de História, n. 168, 2013, p. 264-265.

ribeiras do Ceará.47 Nos oitocentos, o território cearense não era uma região de expansão de fronteira (externa ou interna), e nem por isso deixou de estar nos planos de desenvolvimento econômico da Coroa, com os índios ocupando um papel destacado nas discussões. Ou seja, a questão indígena deve ser vista a partir da conjugação de dilemas centrais da monarquia com as particularidades regionais.

Semelhante ao que ocorria no Grão-Pará, as reclamações dos administradores portugueses em relação à ineficácia do Diretório no Ceará eram constantes por conta dos

abusos dos diretores e donos de terra.48 Mesmo assim, como afirma Pinheiro, “a manutenção

das vilas de índios era essencial, pois estava se iniciando a produção de algodão na capitania e

a força de trabalho indígena seria fundamental”.49 A preocupação maior das autoridades

imperiais em território cearense era o controle da mão-de-obra, em sua maioria livre – com variações entre as regiões – e que tinham como característica demográfica a dispersão

geográfica e o constante nomadismo.50 Lá, como veremos ainda neste capítulo, os membros

do governo entendiam como inviável a anulação do Diretório, que garantia o controle dos diretores sobre o cotidiano de trabalho dos índios e o vínculo das comunidades às vilas, verdadeiros "celeiros de mão de obra".

Era prioritário para a Coroa e os estadistas lusitanos "o aumento da quantidade e a

melhora da qualidade da produção colonial".51 Nesse contexto, destaca-se dom Rodrigo de

Souza Coutinho (irmão do governador do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho) que ocupou vários cargos na Corte portuguesa, preocupado com o "fomento da exploração

econômica no Brasil" e em "reorganizar a exploração ultramarina".52 Intrínseco aos

47 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Vaqueiros, agricultores e artesãos, p. 6-7. FELIX, Keile Socorro Leite.

“Espíritos inflamados”, p. 21-23.

48 PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 214-219. 49 Ibid., p. 220.

50 Em sua análise dos dados populacionais no Ceará entre os séculos XVIII e XIX, Chandler não atenta para a

maior facilidade que havia em computar escravos do que a população livre e dispersa, além dos índios terem sido, muitas vezes, obscurecidos nas diversas classificações referentes aos mestiços ou até mesmo na categoria “brancos”. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará, p. 34-36. Ainda assim, é exagerada a afirmativa de Pinheiro, para quem, no Ceará, “o trabalho escravo africano foi insignificante”. PINHEIRO, Francisco José. Notas sobre a formação social do Ceará, p. 226. Raimundo Nonato de Souza, por exemplo, mostra que houve um crescimento no número de escravos do vale do Aracaú no final do século XVIII, além da significativa população negra, forra e proprietária. Cf. SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”, p. 173. Em contrapartida, Billy Chandler, João Leite Neto e Rones Duarte apresentam a relativamente baixa porcentagem de cativos nos habitantes das vilas próximas a Fortaleza. Cf. CHANDLER, Billy Jaynes. The role of negroes in the ethnic formation of Ceará, p. 40-41. LEITE NETO, João. A participação do trabalho indígena no contexto da produção algodoeira da

capitania do Ceará (1780-1822), p. 98-99. DUARTE, Rones da Mota. Natureza, terra e economia agropastoril – Soure (CE), p. 98.

51 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 254.

52 Ibid., p. 117-119. No ministério de Coutinho a "civilização" dos índios tinha papel fundamental, seja pela

programas reformistas de Portugal do final do século XVIII estava o objetivo de recuperação da antiga grandeza do império, imbuídos da missão de civilizar os povos de seus domínios ultramarinos. Cabia ao Estado, portanto, prover aos súditos a prosperidade, o bem comum e a felicidade, termos recorrentes na documentação e que remetiam à ambição iluminista advinda

da civilização.53 Em relação aos índios do início dos oitocentos, o Diretório servia como um

dos arcabouços legais de regulação das práticas da metrópole, cujo intuito era torná-los felizes

e transformá-los em indivíduos úteis aos interesses públicos.54

Quando o olhar se direciona aos contextos locais, fruto da interação de diversos agentes formadores da sociedade colonial nas vilas, percebe-se que as concepções relativas àqueles povos passam a ter feições distintas do que era pensado na lei. As imagens acerca dos índios, construídas pelos administradores metropolitanos, eram oriundas de suas ideias políticas e filosóficas em choque com a realidade prática com a qual se deparavam, e que, por isso, se transformavam de acordo com a particularidade das situações. Muitas das práticas civilizadoras, teorizadas no outro lado do Atlântico, eram fatalmente abandonadas ou adaptadas pelos administradores portugueses quando lidavam com os povos na América, que se posicionavam de maneiras incontrolavelmente diferentes ao que era previsto. Com o tempo, os habitantes da colônia, segundo Domingues, percebiam que os “conceitos de felicidade, bem comum, riqueza e progresso não tinham aplicabilidade quando se tratava das etnias ameríndias [...], porque reconheciam que estes objetivos eram diferentes para luso-

brasileiros e índios”.55

Como aconteceu no Grão-Pará, os planos da Coroa eram questionados por muitos governadores das capitanias quando percebiam que os indígenas, mesmo se relacionando com os brancos e submetidos ao poder imperial, não se transformavam em súditos ideais. As explicações para o insucesso do projeto indigenista estavam tanto na ação dos nativos – a

partir de sua natureza “indolente” – quanto no despreparo e abuso dos diretores56 sobre a

como pelo seu aproveitamento enquanto mão de obra. Cf. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 44-45.

53 NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, p. 217-218.

PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (século XVI a XVIII). In: CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 122.

54 DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos, p. 299-303. 55 Ibid., p. 324.

56 APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas fronteiras do sertão: as práticas

das políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás – século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 160-161. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram

vassalos, p. 156. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte

sob o Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 451. SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos, p. 216-218.

população de quem deveria cuidar e fazê-la "tomar consciência” da “convicção relacionada

com o ‘bem comum’”.57

No entanto, mesmo que houvesse críticas às leis ou suas aplicações por parte dos líderes do governo cearense no período estudado, alguns se posicionaram pela manutenção das políticas indigenistas que vinham sendo adotadas desde a segunda metade do século XVIII. Se acreditavam que o Diretório, ou sua aplicação, era falho, por que as soluções alternativas que propuseram não sugeriam sua abolição? Vários aspectos da população indígena e da demografia e economia do Ceará foram importantes para que se manifestassem em favor da continuidade da lei pombalina. Veremos agora exemplos de dois governadores da capitania no século XIX que defenderam a manutenção do Diretório por acreditarem ser a ferramenta que melhor atendia os intentos da metrópole, pela simetria dos objetivos da legislação setecentista com os do Estado português no Ceará em termos de produção econômica e uso da população disponível.

O grau de liberdade

O primeiro deles foi Bernardo Manuel de Vasconcelos. Chefe de esquadra da Armada

Real Portuguesa, nomeado governador do Ceará por decreto de 18 de outubro de 1797,58 era,

segundo Geraldo Nobre, “o mais notável de todos à época de sua nomeação, pois era veterano de várias campanhas, com uma folha de serviços comprobatória de sua capacidade e de seu

patriotismo”.59 Para a produção de uma memória dirigida à rainha dona Maria I em 1799,

quando assumiu o governo cearense, Vasconcelos encontrou em “Francisco Bento Maria de Targini perfeitos conhecimentos da mesma capitania, mostrados por princípios físicos e políticos”.60

57 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de “civilização” do Brasil do século

XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 183

58 Cf. ALMEIDA, Manuel Lopes de. Notícias históricas de Portugal e Brasil (1751-1800). Coimbra: Coimbra

Editora, 1964, p. 369.

59 NOBRE, Geraldo da Silva. O Ceará capitania autônoma. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Imprensa

Universitária, tomo especial 8, 1987, p. 88.

60 De Bernardo Manuel de Vasconcelos à rainha Dona Maria I. 1799. AHU_CU_006, Cx. 13, D. 745. Salvo

indicação em contrário, as citações nos próximos parágrafos pertencem a esse documento. Visconde de São Lourenço e responsável pelo Real Erário do governo de dom João VI, Targini foi também “Escrivão e Deputado da Junta da Fazenda do Ceará por nomeação de 25 de janeiro de 1799”. Cf. A correspondência de Bernardo Manoel de Vasconcelos e João Carlos Augusto d’Oyenhausen com os ministros D. Rodrigo de Souza Coutinho e Visconde de Anadia como subsídio para a história de seus governos. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: tomo III, 1889, p. 142. Segundo Isabel Lustosa, Targini teria saído do Ceará brigado com governadores e ouvidores por conta de práticas administrativas desonestas, indo para o Rio de Janeiro em 1807 e ficando conhecido como "homem mais corrupto da corte de d. João". Cf. LUSTOSA, Isabel. Do ladrão ao barão. Folha

Figura 1 – Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819.

Henrique José da Silva. “Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço”. In: POPE, Alexandre.

Ensaio sobre o homem. Tradução: Francisco Bento Maria Targini. Londres, Sociedade Literária da Grã-

Bretanha, 1819 (gravura aquarelada). Biblioteca Nacional de Portugal, Iconografia, E-4673-P. Disponível em: <http://purl.pt/13099>.

Sobre os “naturais tapuias, ou caboclos (a que vulgarmente chamam índios)”, viviam, segundo o governador, “naquela indolência que influi nos seus habitantes os climas mais ardentes”. Seriam, por outro lado, “susceptíveis de estímulo e de condição de obrarem quando um superior sábio, e ativo, lhes inspirar”, ao invés de os “sujeitar pelas suas próprias inclinações” como acontecia no Ceará, onde os índios trabalhavam por um

"pequeno salário de cinquenta reis por dia que lhe dá o diretor, que não os satisfazendo, fogem das povoações e se ocultam nas montanhas, aonde vão cultivar um terreno que lhe dê para si e suas famílias quanto necessitam, gozando de uma vida mais tranquila e livres da cobiça do Europeu, que tanto os consterna".

de São Paulo, jun. 2007. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0306200707.htm>. Acesso em 18 de novembro de 2014.

O contato com os brancos que, segundo o que a Coroa e os legisladores acreditavam, poderia ser um caminho para a “civilização” dos índios, os afastava de forma cada vez mais obstinada dos centros urbanos e das influências do império. Tal raciocínio se assemelha às críticas de ouvidores em relação à dificuldade de aplicar o Diretório no Grão-Pará, por causa, segundo eles, da ignorância e dos abusos dos diretores, fazendo com que os índios preferissem viver na natureza do que na “sociedade civil”, na “liberdade do homem, que na do

cidadão”.61 Vasconcelos prosseguiu em sua argumentação a partir do pensamento de Targini,

confrontando ainda mais suas bases políticas e filosóficas com uma realidade para ele surpreendentemente adversa. Contou que os relatos dos “maiorais” indígenas “alcantilados nas serras, [...] atento aos seus dispersos”, convenceram-no de que "aqueles homens, animados tão somente das luzes da natureza, não deixam de ser mais sábios, e menos felizes, do que nós somos, neste século da mais apurada filosofia".

O bem comum, objetivo máximo das políticas populacionais desse período e das

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