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Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES

Os índios da Ibiapaba não conseguiram a autonomia que tanto reivindicaram e, como vimos no capítulo anterior, o poderio dos proprietários se fortaleceu, amparados por uma legislação para eles extremamente vantajosa. O decreto de 3 de junho de 1833, que delegava a administração dos bens indígenas aos juízes, foi especialmente nocivo para essas comunidades. Mas mesmo em desvantagem, agora sob um governo regencial que limitava o caráter protetor da Coroa, os índios não deixaram de exigir o cumprimento da lei e de recorrer àqueles que haviam sido delegados para assisti-los.

No ano de 1838 no Ceará diversas reclamações indígenas chegaram à presidência da província acerca de contendas com donos de terra e da negligência dos juízes em relação aos abusos cometidos por proprietários. Em 14 de março foi enviada ao juiz de órfãos de Fortaleza uma queixa dos índios de Arronches contra pessoas que usurpavam seus bens, e

pediam que a justiça se encarregasse da punição de seus algozes.140 Relutante, o juiz sugeriu

que o decreto de 1833 contradizia o artigo 20º da Disposição Provisória acerca da

Administração da Justiça Civil,141 mas que faria tudo quanto pudesse em benefício dos índios.

O presidente Manuel Felizardo de Souza e Melo não aceitou o comentário do juiz, e disse que a Disposição Provisória e o decreto de 1833 não eram opostos, "por que naquele fixa-se

140 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 14 de março de 1838. APEC,

GP, CO EX, livro 40, p. 30.

141 "Seção 4ª: Dos oficiais de justiça dos juízos de paz. Artigo 20º: Estes oficiais serão nomeados pelos juízes de

paz, e tantos quantos lhes parecerem bastantes para o desempenho das suas e das obrigações dos inspetores". Cf. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o código do processo criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da justiça civil. Disponível em:

somente a jurisdição contenciosa dos juízes de órfãos, e nestes se lhes aumentou uma

atribuição administrativa".142 Tal acréscimo de atribuição, referente à proteção dos bens

indígenas, era comumente negligenciado por muitos juízes, que de tudo faziam para que as ações das comunidades se transformassem em causas perdidas. Prova disso é que, em outubro de 1838 os índios de Arronches novamente se mobilizaram e produziram um requerimento para que, "na conformidade do decreto de 1833", o juiz de órfãos de Fortaleza tomasse "as necessárias providências, a fim de que" não fossem "usurpados das terras que lhes foram doadas".143

Mesmo que, meses depois, seus problemas continuassem sem que houvesse uma verdadeira vontade da justiça em solucionar seus problemas e combater os invasores de suas terras, os índios não deixavam de acioná-la. Durante esse período, as investidas contra suas comunidades se deram em um contexto de ampliação violenta dos latifúndios, fenômeno ao qual, por conveniência política e interesses econômicos, os juízes fechavam os olhos ou eram até mesmo facilitadores. Ainda assim, pela lei, era apenas a eles que os índios poderiam recorrer, como aconteceu com os de Arronches e como fizeram as comunidades indígenas da Ibiapaba, que se manifestaram contra a extinção de juizados de paz em sua região. Em 14 de maio, o presidente Souza e Melo comunicou a câmara de Vila Viçosa acerca da supressão dos

juizados nos povoados de São Pedro e São Benedito,144 habitados majoritariamente por

índios, por meio de portaria do mesmo dia,145 atendendo ao artigo 1º da lei provincial nº 101

de 5 de outubro de 1837.146 Insatisfeitos por não mais terem o amparo próximo da justiça, os

habitantes de São Benedito fizeram um abaixo-assinado solicitando o reestabelecimento do

distrito de paz, e foram atendidos no mês de julho.147

142 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 20 de março de 1838. APEC,

GP, CO EX, livro 40, p. 32V.

143 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Fortaleza. Fortaleza, 25 de outubro de 1838.

APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 204.

144 De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC, GP,

CO EX, livro 40, p. 72V.

145 Portaria extinguindo os juizados de paz de São Pedro e São Benedito. Fortaleza, 14 de maio de 1838. APEC,

GP, CO EX, livro 40, p. 73.

146 Artigo 1º: Os distritos de paz desta província ficam reduzidos ao número de suas freguesias e aquelas capelas

filiais onde o presidente julgar indispensável um juiz de paz. Cf. Lei nº 101 de 5 de outubro de 1837. In. OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis provinciais: estado e cidadania (1835- 1861). Compilação das leis provinciais do Ceará - compreendendo os anos de 1835 e 1861 pelo Dr. Liberato Barroso. Ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009 [1862], tomo I, p. 159.

147 De Manuel Felizardo de Souza e Melo à câmara de Vila Viçosa. Fortaleza, 14 de julho de 1838. APEC, GP,

CO EX, livro 40, p. 107. De Manuel Felizardo de Souza e Melo a Luiz José de Miranda. Fortaleza, 14 de julho de 1838. APEC, GP, CO EX, livro 40, p. 107.

Apesar da mobilização indígena diante da justiça, que chegou a promover um levante

na Bahia contra os juízes em 1834, como conta André de Almeida Rego,148 a relação era

bastante desigual. Como vimos no caso de Arronches e nos que serão analisados em seguida, os índios encaminhavam suas queixas apenas ao presidente da província, que só então as repassavam aos juízes. O procedimento sugere que os indígenas percebiam sua própria desvantagem com a administração dos magistrados e, por isso, buscavam o auxílio do governo. Visivelmente posicionados a favor da usurpação fundiária encabeçada pelos potentados, os membros do judiciário local, pouco fiscalizados, tinham plena liberdade para interpretar a legislação e encaminhar processos da maneira que lhes conviesse. Diante disso, os líderes dos governos das províncias, mesmo que aparentassem interesse na proteção dos índios, pouco podiam fazer. Segundo o presidente do Ceará Souza e Melo, era competência dos juízes de órfãos

"preencher os títulos dos arrendatários dos terrenos pertencentes aos índios que habita[ssem] seus municípios todas as vezes que tais diligência se poderem fazer pelo exercício da jurisdição simplesmente administrativa, havendo acordo entre os confrontantes, mas devem remeter a questão ao conhecimento das justiças ordinárias logo que traz litígio com contestação entre as partes"149

Ou seja, nada garantia que um processo litigioso entre índios e arrendatários fosse assim registrado e encaminhado para a justiça ordinária se o juiz de órfãos não quisesse. Ao presidente era impossível fiscalizar com minúcia tais casos, cabendo apenas encaminhá-los aos magistrados e esperar uma "justa" resolução. Em outubro de 1838, Souza e Melo encaminhou ao juiz de órfãos de Messejana a queixa do índio Feliciano Borges dos Santos Arcoverde, para que informasse "sobre a veracidade da mesma, podendo logo tomar todas as providências que estive[ssem] ao seu alcance a bem dos índios, que pelo decreto de 3 de

junho de 1833 esta[vam] debaixo de sua proteção".150 Cabendo ao magistrado julgar se a

reclamação de Arcoverde era verdadeira ou não – supondo que fosse e caso o juiz agisse de má fé – não havia nada que o índio – acionando a justiça – e o presidente – lembrando-o da lei de 1833 – pudessem fazer.

Acerca do funcionamento da justiça no período regencial, Carlos Garriga e Andreia Slemian contam que uma série de medidas foi promulgada para “favorecer a efetiva exigência

148 REGO, André de Almeida. Deslocamento espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da Bahia do século

XIX. Revista Trilhas da História, v. 2, nº 4, 2013, p. 63

149 De Manuel Felizardo de Souza e Melo ao juiz de órfãos de Messejana. Fortaleza, 16 de julho de 1838. APEC,

GP, CO EX, livro 40, p. 109.

de responsabilidade dos juízes”, dando oportunidade a ações populares contra a magistratura. Segundo eles, tal movimento na década de 1830 coincidia com o “momento de maior instabilidade política e radicalização na projeção de alternativas para o futuro com a abdicação do imperador”. Tudo isso tinha a ver com a “inexistência de um conflito entre as

leis novas e antigas, e a consequente permanência dos juízes como seus decodificadores”.151

Ou seja, por mais que aos índios tenha sido aberta a via da contestação pela justiça e sobre o procedimento dos próprios juízes, o poder de decisão destes era maior. Ainda que sofressem pressões dos indígenas ou até do presidente da província, os magistrados tinham o legislativo ao seu lado. Em um mundo que adequava normativas de diferentes temporalidades, eram eles os intérpretes.

O decreto nº 143, de 15 de março de 1842, confirmou a incumbência dos juízes de órfãos de administrar os "bens pertencentes aos índios, nos termos do decreto de 3 de junho

de 1833".152 Em agosto, o ministro da justiça Paulino José Soares de Souza comunicou ao

então presidente do Ceará José Joaquim Coelho a determinação do rei de que, baseado no decreto que estabelecia a proteção dos bens indígenas pelos juízes de órfãos de 1833, era sua função recomendar "as necessárias averiguações a tal respeito, para que, verificando por meio delas terem sido usurpadas aos índios as terras de seu patrimônio, lhes faça restituir pelos meios competentes". Enquanto às casas de câmara das extintas vilas de Arronches, Soure e Messejana, pertencendo ao Tesouro Nacional, deveriam ser incorporadas aos próprios

nacionais.153 Entretanto, sem elementos para executar tais averiguações, pouco mudou, tanto

no texto legal quanto no cotidiano dos índios em seus conflitos com os que esbulhavam suas terras e em seu desamparo diante da justiça.

Em dezembro de 1842 o índio Manoel Batista dos Santos, representando a comunidade de Monte-mor Velho, entregou à presidência da província uma queixa de haviam sido "esbulhados de suas terras, ficando à mercê do desamparo, sem que tenham aparecido da parte das autoridades, que sobre os mesmos devem velar, aquelas providências que as leis autorizam". Diante disso, o presidente ordenou ao magistrado de Cascavel "que, na qualidade de juiz municipal, ou de órfãos, proced[esse] com o maior desvelo em prol dos desvalidos

151 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica

(C. 1750-1850). Revista de História, n. 169, 2013, p. 218-220.

152 Decreto nº 143 de 15 de março de 1842. Regula a execução da parte civil da lei nº 261 de 3 de dezembro de

1841. Disponível em: <http://camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-143-15-marco-1842-560882- publicacaooriginal-84098-pe.html>. Acesso em: 18 de julho de 2015.

153 De Paulino José Soares de Souza a José Joaquim Coelho. Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1842. APEC, MN,

índios, administrativa ou contenciosamente", para que fossem "garantidos aos ditos índios os

direitos que as leis lhes outorgam".154

Neste caso, a mesma pessoa ocupava os dois cargos, tanto no juizado administrativo quanto no contencioso. Ou seja, se em um distrito onde havia duas instâncias nada garantia que um processo fosse levado ao âmbito da resolução litigiosa, para os nativos liderados por Manoel Batista dos Santos a situação era ainda pior. Diante do desamparo das autoridades que deveriam protegê-los, como disse o "incapaz" presidente, o fato de a questão ter sido levada a Cascavel – e não a Aquiraz, município que pertencia Monte-mor Velho – talvez indique uma tentativa dos indígenas, longe de onde sabiam que não seriam tratados com justiça, de buscar auxílio jurídico em outro lugar, ainda que em vão. É importante destacar também que, mesmo que o juiz fosse porventura dedicado às causas dos índios, era muito difícil desempenhar competentemente suas funções ocupando dois cargos simultaneamente e sendo pressionado pelos poderosos da região.

Em 1845, outros juízes foram acionados pelo governo da província a partir de novas denúncias de abusos aos indígenas. Em junho, o então presidente Ignácio Correa de Vasconcelos escreveu ao magistrado de Sobral a partir das acusações de que "os moradores de Almofala se apropriaram das terras que ali pertencem aos índios, fazendo nelas cercado e

plantações, sem quererem nem pagar algum rendimento pelas mesmas".155 Em 2 de setembro,

após a promulgação do Regulamento das Missões, o ministro da justiça José Carlos Pereira de Almeida Torres escreveu que era da "mais pública notoriedade" a existência de indígenas "a serviço de pessoas particulares sem que percebam salário ou estipêndio algum, achando-se assim reduzidos ao estado de quase perfeito cativeiro". Para "prevenir a continuação de tão escandaloso abuso", passou ao presidente do Ceará a determinação do rei para que os juízes de órfãos recebessem os indígenas que estavam "nas indicadas circunstâncias", indagassem- nos se eram bem tratados e se queriam continuar servindo nas casas onde se achavam ou "ser

transferidos para qualquer aldeamento já existente".156

Dias depois, uma circular foi enviada aos "juízes municipais e órfãos, substitutos e promotores da província" para que nunca se verificasse qualquer prejuízo contra os índios que

154 De José Joaquim Coelho ao juiz municipal e de órfãos de Cascavel. Fortaleza, 23 de dezembro de 1842.

APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 11.

155 De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos de Sobral. Fortaleza, 21 de junho de 1845. APEC, GP,

CO EX, livro 68, p. 12V. O documento não informa a autoria das acusações, que provavelmente partiram dos índios de Almofala.

156 De José Carlos Pereira de Almeida Torres a Ignácio Correa de Vasconcelos. Rio de Janeiro, 15 de setembro

tivessem que sair do termo de sua jurisdição, quer fossem dele naturais ou residentes.157 No mês de outubro, para que a câmara municipal de Fortaleza pudesse "dar cumprimento às ordens superiores que em benefício dos índios lhes foram dadas", o presidente intimou ao juiz de órfãos da capital que tomasse as medidas "para fazer cessar os males [...] contra os índios de Maranguape", e que desse conta à presidência de "todos e quaisquer atos de esbulho já praticados, [...] propondo as medidas que julgar adequadas para providenciar-se como for de justiça".158

Sem a proteção efetiva dos juízes, não somente as terras dos índios ficaram à mercê da ambição dos potentados, mas também sua mão-de-obra. Em tal sociedade escravista, mas com pouca condição de adquirir quantidades significativas de cativos, e já abolido o Diretório, as crianças sem pais acabavam virando alvo de proprietários. Chegou ao conhecimento do então presidente José Maria da Silva Bittencourt, em setembro de 1843, a "prática escandalosa", que seria "vulgar" em Granja, de "arrancarem-se órfãos pequenos, principalmente índios, às suas mães, ou às pessoas que deles curam, para serem reduzidas a uma quase servidão, sob o especioso pretexto de assoldamento [sic], que desta forma não é permitido por lei". As desculpas dadas por quem os praticamente escravizavam se assemelham a empreendimentos no Espírito Santo, estudados por Maria Hilda Paraíso, que visavam "batizar os 'boticudinhos' e

distribuí-los entre pessoas de prestígio".159

No dia 26, ordenou ao juiz municipal e de órfãos que fizesse cessar o "abuso contra infelizes, a quem a sociedade deve especial proteção", que usasse de todos os meios para que desaparecessem "fatos tão vergonhosos", que os meninos e meninas capturados fossem "restituídos à sua liberdade, indenizados das perdas e danos sofridos e punidos os autores de fatos tão violentos". Destacou o caso do órfão Francisco, "filho de Maria Francisca, parda, moradora no Olho D'água, município de Vila Viçosa", em poder de José Felix da Cunha,

morador do Coreaú.160 No mesmo dia escreveu ao juiz de Vila Viçosa, em resposta a um

ofício, comunicando-o ter expedido as "convenientes ordens para fazer cessar os abusos

contra os índios de que [o magistrado] se queixa[va]".161 O caso do filho de Maria Francisca,

157 Ofício circular da presidência da província aos juízes municipais, de órfãos, substitutos e promotores da

província. Fortaleza, 15 de setembro de 1845. APEC, GP, CO EX, livro 68, p. 44V.

158 De Ignácio Correa de Vasconcelos ao juiz de órfãos da capital. Fortaleza, 21 de outubro de 1845. APEC, GP,

CO EX, livro 68, p. 64.

159 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos

sertões do leste. Salvador: EDUFBA, 2014, p. 351.

160 De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Granja. Fortaleza, 26 de setembro de

1842. APEC, GP, CO EX, livro 58, p. 155.

161 De José Maria da Silva Bittencourt ao juiz municipal e de órfãos de Vila Viçosa. Fortaleza, 26 de setembro de

mãe solteira e quem provavelmente acionou a justiça para resgatá-lo, mostra outra trama difícil de ter sido resolvida por envolver juizados de dois municípios diferentes, e onde havia a já citada situação de uma pessoa ocupando dois cargos do judiciário. Pior seria somente a condição dos que eram levados para algum lugar desconhecido ou dos que perderam por completo os pais, desamparados de tudo.

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