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Na lei e na guerra : políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845)

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

JOÃO PAULO PEIXOTO COSTA

NA LEI E NA GUERRA:

POLÍTICAS INDÍGENAS E INDIGENISTAS NO CEARÁ (1798-1845)

CAMPINAS 2016

(2)
(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Costa, João Paulo Peixoto,

C823n CosNa lei e na guerra : políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845) / João Paulo Peixoto Costa. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

CosOrientador: Silvia Hunold Lara.

CosTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Cos1. Índios da América do Sul - Ceará - Aspectos políticos. 2. Índios da América do Sul - Ceará - Estatuto legal, leis, etc.. 3. Política indigenista. 4. Brasil - História militar. 5. Ceará - História - Séc. XIX. I. Lara, Silvia

Hunold,1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: In law and in war Palavras-chave em inglês:

Indians of South America - Ceara - Politica aspects

Indians of South America - Ceara - Legal status, laws, etc. Indigenous policy

Brazil - History, militar

Ceara - History - 19th century

Área de concentração: História Social Titulação: Doutor em História

Banca examinadora:

Silvia Hunold Lara [Orientador] Maria Regina Celestino de Almeida Vânia Maria Losada Moreira

Fernanda Sposito Ricardo Pirola

Data de defesa: 30-11-2016

Programa de Pós-Graduação: História

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A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos professores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 2 de dezembro de 2016, considerou o candidato João Paulo Peixoto Costa aprovado.

Prof. Dra. Silvia Hunold Lara

Prof. Dra. Maria Regina Celestino de Almeida

Prof. Dra. Vânia Maria Losada Moreira

Prof. Dra. Fernanda Sposito

Prof. Dr. Ricardo Pirola

A ata de Defesa, assinada pelos membros Comissão Examinadora, constam no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

A John Manuel Monteiro, José Marques de Souza Neto,

Renata Calábria, e Maria da Conceição Cardoso Costa (a bença vovó!)

A Jordana, meu cheiro, meu sorriso, meu todo dia, o grande amor da minha vida!

(6)

“Ai também de vós, doutores da Lei, que carregais os homens com

pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os fardos. [...] Ai de vós, doutores da Lei, que tomastes a chave da ciência, e vós mesmos não entrastes e impedistes aos que vinham para entrar”.

(7)

A humildade deveria ser obrigatória na formação de um historiador. Parece-me até injusto atribuir apenas a mim a autoria de um trabalho que contou com o apoio e a colaboração de tantas pessoas, de quem tenho uma gratidão incalculável.

Agradeço a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelo apoio financeiro a esta pesquisa.

Muito obrigado Isac do Vale, meu professor e um dos primeiros incentivadores a seguir esse ofício que tanto amo.

Agradeço a todos os meus familiares do Ceará e do Piauí (se eu fosse citá-los nominalmente precisaria de mais 4 anos, mas amo todos!) e a família da minha esposa, especialmente a querida dona Yolanda e ao saudoso e inesquecível seu Zé Ribeiro, por tanta hospitalidade e carinho.

Juliana Aragão, minha orientadora do mestrado na UFPI, muito obrigado por tudo o que fez para que eu realizasse aquilo que, de tão distante, nem era sonho há uns anos atrás.

De diversas cidades, vários colegas me ajudaram com leituras, conversas, muitas críticas e até mesmo com o “tráfico” de documentos digitalizados. Agradecerei sempre a Carlo Romani, Gerson Menezes, Almir de Oliveira, Jóina Borges, Johny de Araújo, Edson Silva, Mariana Dantas, Ricardo Medeiros, Maico Xavier, Lígio Maia, Ricardo Pirola, Fernanda Sposito, Maria Regina de Almeida e Vânia Moreira.

Serei sempre grato ao povo mais referenciado e enaltecido da historiografia cearense: os ilustres Etevaldo, Joãozinho, Paulo Cardoso, Márcio Porto, Acrísio, Jota, Jorismar, André Frota e todos que fazem o Arquivo Público do Estado do Ceará, corresponsáveis de tantos trabalhos.

São imensos o carinho e a gratidão aos meus amigos de Fortaleza e Teresina Amanda, Thiago, Pedro, Thaís, Caio, Camila, João (intelectual), Luiz, Aristides, Meire, Thiago, Patrícia, Kim, Iris, Gabriel, Renata, Jan, Nanda, Thiago, Sofia (intelectual), Airton, Carol e Camila, que tanto perturbaram meu juízo e nunca deixaram que esta trajetória fosse um caminho solitário. E entre Campinas e São Paulo, novos e velhos amigos foram importantíssimos nesses tempos longe de casa. Zé, Felipe, Manoel, Matheus, Ludmila, Rodrigo, Manuela, Tathy, Andy e meus primos Athayde Neto (Taia, Ataia, Atalaia...), Raquel, Marcos e Herbene, muito obrigado por essa amizade que nunca vou esquecer. Valeu negrada!

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Silvia Hunold Lara teve a árdua missão de me orientar depois de algo difícil. A você, minha gratidão é eterna por ter aturado minhas teimosias durante todo esse período. Obrigado pela paciência, presteza, profissionalismo e por tudo que me ensinou.

Mamãe, papai, Lia, Ruy e Bia: tudo de bom que eu faço na vida eu devo ao amor incondicional de vocês. Jordana, minha princesa linda, que tanto cuida e em tudo ama. Meu projeto de vida é fazer você feliz todos os dias. Te amo tanto! E o melhor ainda está por vir...

Agradeço a Deus, que eleva os humildes, que me trouxe de volta, que é todo amor e misericórdia!

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A promulgação da Carta Régia de 1798, que revogou o Diretório dos Índios, não resultou em qualquer efeito em território cearense. Quando a lei pombalina foi finalmente extinta no Ceará em 1845, cedeu lugar ao Regulamento das Missões, que se tornou a primeira lei indigenista geral do império brasileiro. No contexto de crise do Antigo Regime e formação do Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições da condição jurídica dos indígenas e com uma série de conflitos armados. A legislação produzida nessa conjuntura recebe destaque neste estudo por ter sido um dos definidores dos confrontos entre políticas indígenas e indigenistas em torno da caracterização do lugar social dessas populações. Por meio dela é possível analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará, considerando a relação entre as leis e os índios, a passagem da categoria de súditos da Coroa portuguesa para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios relativas à sua própria condição jurídica e na sua participação em eventos militares. São questões centrais na análise: a situação de permanência do Diretório em território cearense no século XIX; o contexto legal do período de formação do Estado nacional brasileiro e a relação dos índios com o arcabouço normativo; as variadas formas de classificação dos índios e gentios na legislação indigenista de Portugal e do Brasil. A questão bélica tem igual evidência e é focalizada na segunda parte da tese. A defesa sempre foi uma das principais funções das populações indígenas integradas no corpo social do império português. Mais do que meros soldados recrutados a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na guerra, assim como na lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e manifestavam seus interesses e expectativas. Têm destaque neste estudo o recrutamento militar indígena, a legislação referente ao tema e a agência política dos oficiais índios; o envolvimento militar indígena no contexto da independência e nas revoltas liberais oitocentistas; as transformações da relação dos índios com as Coroas lusitana e brasileira, com o liberalismo e com o antilusitanismo a partir de suas experiências.

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The promulgation of the Royal Letter of 1798, which revoked the directory of the Indians, resulted in no significant effect in the territory of Ceará. When Pombalina law was finally repealed in Ceará in 1845, it was replaced by the Missions Regulation and it became the first indigenous general law of the Brazilian empire. In this context of Old Regime crisis and with the formation of the national State, social relationships have changed alongside legal and regulatory renewal and multiple armed conflicts. The legislation involving this period is investigated in this study as it defined the clashes between Indians and indigenous policies regarding the social portrayal of these populations. In contrast, the war issue reveals equal evidence. Security has always been one of the main functions of indigenous people that are socially integrated into the Portuguese Empire. The Indians represent more than mere labour for the State service (Lusitanian or Brazilian) either in war or law, standing during political conflict events and demonstrating their interests and expectations. This work aims to analyse the transformation of these political conditions of the Indians in Ceará, considering the relationship between the laws during this period and the Indians, the passage of the category from subjects of the Portuguese monarchy for Brazilian citizens and the implications in the Indian's claims in regard to their legal conditions, rights and to their role in military events.

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FIGURAS

Figura 1: Francisco Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço. 1819... 53

TABELAS Tabela 1: Tropas militares no Ceará em 1814... 208

Tabela 2: Mapa da força militar da tropa, milícias e ordenanças da capitania do Ceará Grande (1814)... 209

MAPAS Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX... 26

Mapa 2: Locais de atuação dos índios durante os motins de Maranguape e Vila Viçosa... 144

Mapa 3: Locais de atuação dos índios peticionários à justiça... 150

Mapa 4: Locais de atuação dos gentios nas fronteiras do Ceará... 185

Mapa 5: Postos de guarda das tropas indígenas na costa cearense, outubro de 1822... 256

Mapa 6: Locais de atuação dos índios durante a guerra de independência no Piauí... 265

Mapa 7: Locais de atuação dos índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817... 289

Mapa 8: Locais de atuação dos índios do Ceará na Confederação do Equador... 313

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Arquivo Histórico Ultramarino – AHU Fundo Conselho Ultramarino – CU Série Brasil-Ceará – 006 Arquivo Nacional – AN Câmara de Messejana – 8J Confederação do Equador – IN Gazeta do Ceará – J040 Ministério da Guerra – OG

Secretaria de Governo do Ceará – 88 Série Interior – AA

Série Justiça – A1 Série Marinha – XM

Arquivo Público do Estado do Ceará – APEC Fundo Governo da Capitania – GC Fundo Governo da Província – GP

Atas da Junta do Governo Provisório – AJ Correspondências Expedidas – CO EX Fundo Câmaras Municipais – CM

Fundo Ministérios – MN

Ministério da Guerra – MG Ministério da Marinha – MM Ministério da Justiça – MJ Ministério do Império – MI

Arquivo Público do Estado do Piauí – APEPI Série Independência – SI

Série Balaiada – SB

(13)

INTRODUÇÃO... 16

1ª PARTE: NA LEI CAPÍTULO 1 – O DIRETÓRIO NO CEARÁ APÓS 1798 1.1.O “VAZIO LEGISLATIVO”... 39

As outras Cartas Régias de 1798... 44

1.2.AS DEFESAS DO DIRETÓRIO... 47

O grau de liberdade... 52

Os males da perfeita liberdade... 62

CAPÍTULO 2 – O ESTADO NACIONAL E A LEGISLAÇÃO INDIGENISTA 2.1. CIDADÃOS DESPOSSUÍDOS... 71

2.2. A VITÓRIA DOS PROPRIETÁRIOS... 83

2.3. TODAS AS CAUSAS DA DECADÊNCIA... 89

CAPÍTULO 3 – OS INDÍGENAS DIANTE DA LEGISLAÇÃO... 103

3.1. "OS ÍNDIOS DESSA VILA NÃO QUEREM TER DIRETOR”... 107

O “alumiado” João de Souza Benício e os índios da Ibiapaba... 111

3.2. "NÃO DEIXAM DE SUSPIRAR PELA SUA LIBERDADE"... 119

O motim dos índios de Maranguape... 124

Senhores do Brasil, escória da humanidade... 131

O vigário Felipe Benício Mariz e os índios de Viçosa... 138

3.3. À MERCÊ DO DESAMPARO: OS ÍNDIOS E OS JUÍZES... 144

CAPÍTULO 4 – ÍNDIOS, GENTIOS, VASSALOS, CIDADÃOS... 152

4.1. "DAR A PRÓPRIA VIDA POR VOSSA MAJESTADE"... 155

4.2. "CIDADÃOS SEM A MENOR SOMBRA DE DÚVIDA"... 161

4.3. ATACÁ-LOS COM BRANDURA, MATÁ-LOS COM PRUDÊNCIA... 171

(14)

CAPÍTULO 5 – O SERVIÇO MILITAR INDÍGENA... 188

5.1. DO DIRETÓRIO À GUARDA NACIONAL... 190

5.2. ATUAÇÃO BÉLICA, DISCIPLINA MILITAR E CONSCRIÇÃO INDÍGENA... 203

“A mais bela disposição para os serviços da Marinha”... 212

CAPÍTULO 6 – AUTORIDADES MILITARES INDÍGENAS... 216

6.1. NOMEAÇÕES E JURAMENTOS... 222

6.2. A ATUAÇÃO DOS OFICIAIS INDÍGENAS... 231

CAPÍTULO 7 OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS GUERRAS DE INDEPENDÊNCIA... 244

7.1. O ARMAMENTO GERAL DOS ÍNDIOS... 251

7.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NAS LUTAS DO PIAUÍ... 259

“Mata que é corcunda!”... 265

CAPÍTULO 8 – ATUAÇÃO INDÍGENA NAS INSURREIÇÕES LIBERAIS 8.1. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817... 277

“Viva os índios do Ceará!”... 279

8.2. OS ÍNDIOS DO CEARÁ NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR... 289

“Temos por brasão o arco e a flecha”... 293

“De grande préstimo na restauração da ordem”... 303

“Dignos da imperial contemplação”... 310

8.3. ÍNDIOS DO CEARÁ NA BALAIADA... 313

“Raimundo Gomes, nosso irmão”... 317

Antes viver sob as armas do que o jugo das autoridades... 322

Amor ao soberano e adesão ao seu governo... 327

(15)

FONTES ARQUIVÍSTICAS

Arquivo Histórico Ultramarino... 343

Arquivo Nacional... 343

Arquivo Público do Estado do Ceará... 343

Arquivo Público do Estado do Piauí... 344

Biblioteca Nacional – Seção de Manuscritos... 344

FONTES IMPRESSAS LEGISLAÇÃO Coletâneas... 344

Avulsas... 345

Disponíveis na internet... . 345

RELATÓRIOS DE PRESIDENTE DA PROVÍNCIA... 347

RELATOS E MEMÓRIAS... 347

OUTRAS FONTES IMPRESSAS... 348

(16)

INTRODUÇÃO

"muito poucos são os que não os odeiam de morte, sem os

conhecer nem ao menos de leve"

(BEZERRA, Antônio. Caboclos de Monte-mor. Revista

do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Minerva,

ano XXX, 1916, p. 297)

"Leais e valorosos"! "Nada vos resistirá. Invejo-vos a glória de que todos vós ides

cobrir"!1 Essas louvações bem que poderiam ter se dirigido a algum líder militar ou oficial

branco de alta patente (como esses cujos nomes batizam ruas, praças e cidades), mas referiam-se, na verdade, a uma tropa de índios armados de arcos e flechas. Durante a Revolução Pernambucana de 1817, na iminência de uma guerra que colocava em risco a integridade política do império português, o fiel súdito Manuel Ignácio de Sampaio, governador do Ceará, se viu envolto em dificuldades estratégicas. Além da seca, que havia destruído lavouras desde o ano anterior e acentuara ainda mais a situação de penúria da capitania, o governo sofria com a falta de verbas e armamentos para enfrentar liberais. Um dos grupos recrutados era de índios, incumbidos da missão de combater os insurgentes fugitivos entre as matas das fronteiras cearenses com a Paraíba e o Rio Grande do Norte, a quem o governador dirigiu aquela proclamação repleta de elogios e vivas.

Apesar das palavras de incentivo durante a guerra, as mesmas não haviam sido costumeiras na relação do governo do Ceará com os índios no início do século XIX, e contradiziam o ambiente de repressão em que viviam. Poucos meses após os conflitos com os liberais, ciente de que os indígenas da vila de Arronches estavam entregues à "mandriice e embriaguez, que em nada mais cuida[vam] do que em divertimentos de toda a qualidade", o governador Sampaio ordenou ao diretor José Agostinho Pinheiro que fizesse com que seus dirigidos abrissem a maior quantidade de roçados possível. Caso continuassem as desordens decorrentes do "abuso excessivo da venda de bebidas espirituosas", proibidas pela "disposição dos § 40 e 41 do Diretório dos Índios do Pará e Maranhão", iria proceder "criminalmente contra os transgressores". Os "rebeldes negligentes e preguiçosos" iriam ser capturados e

"sumariados pela polícia, como vadios e membros podres da sociedade".2

A vida das comunidades indígenas no final do período de domínio português era, como vemos, envolta em contradições. A legislação indigenista no império lusitano, ao

1 "Proclamação aos índios do Ceará quando partiram para o ataque das capitanias sublevadas", de Manuel

Ignácio de Sampaio. Fortaleza, 26 de maio de 1817. APEC, GC, livro 28, p. 45V.

2 De Manuel Ignácio de Sampaio a José Agostinho Pinheiro. Fortaleza, 16 de outubro de 1817. APEC, GC, livro

(17)

mesmo tempo em que forçava os índios a trabalhar para o Estado e para particulares, também os reconhecia como vassalos do rei e lhes concedia uma série de garantias políticas oriundas da condição de súditos. Pelos artigos do Diretório, citado pelo governador e vigente no Ceará até meados dos oitocentos, era dada aos índios a posse das suas terras e dos cargos nas câmaras de suas vilas. A relação que a Coroa e seus representantes locais estabeleciam com os indígenas variava de acordo com a posição que cada indivíduo ocupava na hierarquia das comunidades, criada pela própria lei portuguesa ao instituir posições de lideranças – como vereadores, juízes, capitães e sargentos-mores – e ao conferir a eles privilégios e mercês. Já aos índios comuns estava reservada maior vigilância, repressão e obrigações mais duras de trabalho.

O posicionamento indígena diante das determinações do governo era, da mesma forma, diversificado. Se alguns desobedeciam às diretrizes, seja por meio do consumo excessivo de bebidas alcoólicas ou de fugas e indisciplinas, outros, em geral lideranças, se mostravam fiéis vassalos dos monarcas lusitanos. Em julho de 1817, pouco depois dos confrontos em Pernambuco, os índios de Viçosa, que não tinham sido enviados para as fronteiras, relataram ao rei, por meio de um abaixo-assinado, que seu corpo de ordenanças havia ficado "inquieto, pelo ardente desejo que tinham todos de passar em armas, derramar a última gota de sangue, e dar a própria vida por Vossa Majestade, com aquele mesmo zelo de

D. Felipe de Souza e Castro",3 ancestral do então capitão-mor da vila Ignácio de Souza e

Castro.

Dez anos após os conflitos em Pernambuco, a condição política dos índios mudou

bastante: de vassalos do rei de Portugal e recebedores de elogios e mercês,4 passaram a ter

cidadania brasileira. Ganharam uma nova condição jurídica, mas ao mesmo tempo perderam gradativamente uma série de garantias oriundas do Antigo Regime português ao fazerem parte do novo Estado nação. Por meio de leis promulgadas após a independência não mais tinham acesso a cargos nas câmaras de suas vilas e patentes militares, e suas terras passaram a ser administradas por juízes de paz e de órfãos, autoridades comprometidas com os interesses dos

grandes proprietários.5 Por volta de 1826, os índios de Monte-mor Velho chegaram a ser

3 Ignácio de Souza e Castro, e demais índios de Viçosa, ao rei d. João VI. Vila Viçosa Real, 31 de julho de 1817.

AN, AA, IJJ9 518.

4 Após os conflitos, os índios do Ceará, Paraíba e Pernambuco receberam isenções em impostos por meio do

Decreto de 25 de fevereiro de 1819. Cf. COLEÇÃO das leis do Brasil de 1819. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 06.

5 Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para

sua eleição, e dos juízes de paz. Disponível em: < http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm>. Acesso em: 07 de fevereiro de 2015. Lei de 18 de agosto de 1831. Cria as guardas nacionais e extingue os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças. Disponível em:

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expulsos de sua povoação, atingidos pelo processo de concentração fundiária característico do século XIX que promoveu a formação de latifúndios e desapropriações de comunidades

indígenas em áreas de colonização antiga.6 Desesperados, pediram ao rei dom Pedro II para

voltar à sua terra natal, já que sua retirada forçada fora uma

"manifesta infração da Constituição do Império, que no título 2º, artigo 6º, os declara cidadãos, sem a menor sombra de dúvida, porque são nascidos no Brasil, e são ingênuos: logo, assim, devem gozar de todos os direitos que a Constituição garante aos cidadãos".7

No final da década seguinte, a situação dos índios, os "gloriosos heróis" de anos anteriores, parecia lamentável. Em estado de miséria, eram "vítimas do desleixo, do abandono, da pilhagem", segundo o presidente da então província do Ceará, João Antônio de Miranda. De acordo com seu relatório de 1839, os próprios indígenas, esbulhados de suas terras, pediam "um pastor, que os gui[asse]; outros, o restabelecimento de seu Diretório e a restituição dos bens que possuíam; outros, finalmente, recordando-se lastimosos dos tempos e

dos favores d'El Rei d. João VI, ped[iam] o governo do Rei velho".8 As expressões saudosas

de outros tempos indicam a piora na vida dessa população, tão drástica e em tão pouco tempo. Mesmo com toda vigilância e repressão cotidianas no final do Antigo Regime português, muitos índios eram fieis ao rei de Portugal. Segundo Maria Regina de Almeida, valorizavam o período colonial e a monarquia pelas garantias concedidas, ameaçadas pelo contexto mais propício à usurpação fundiária no novo Estado nacional no início do século XIX. A autora também chama atenção que, em muitos conflitos, os índios integrados à colonização "não questionavam o sistema, mas o desrespeito às leis desse sistema. Sentiam-se

parte dele, súditos do rei",9 como abertamente demonstraram os de Viçosa. Isso se aplicava

muito mais às lideranças das vilas, mas o sentimento também se fazia presente entre os tidos

< http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-88297-pl.html>. Acesso em: 7 de janeiro de 2015. Decreto de 03 de junho de 1833. Encarrega da administração dos bens dos índios aos juízes de órfãos dos municípios respectivos. Disponível em: <

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37777-3-junho-1833-565134-publicacaooriginal-88994-pe.html>. Acesso em 29 de janeiro de 2015.

6 CUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. Política indigenista no século XIX. História dos índios no

Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 141.

7 De José Francisco do Monte, e demais índios de Monte-mor Velho, ao rei dom Pedro II. Messejana, sem data.

BN, C-750, 29.

8 MIRANDA, João Antônio de. Discurso que recitou o excelentíssimo Sr. Dr. João Antônio de Miranda,

presidente desta província, na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa Provincial, no dia 1º de agosto do corrente ano. Fortaleza: Tipografia Constitucional, 1839, p. 24.

9 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Comunidades indígenas e Estado nacional: histórias, memórias e

identidades em construção (Rio de Janeiro e México – séculos XVIII e XIX). In: ABREU, Marta; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 192 e 194.

(19)

como "vadios", aqueles que se encontravam abaixo nas hierarquias. Ou seja, de maneira geral, o enfrentamento ao domínio português se dava por meio da insubordinação contra o ordenamento social imposto aos índios que não ocupavam posições de comando ou prestígio, quanto à forma como deveriam aproveitar o tempo, em relação ao trabalho e aos costumes familiares e religiosos, apesar de verem na Coroa a proteção diante dos abusos de potentados rurais, diretores e párocos. Já as lideranças indígenas, mais do que refúgio, entendiam a monarquia como fonte e mantenedora de sua autoridade, demonstrando gratidão e fidelidade, mesmo agindo diversas vezes em defesa de suas comunidades.

Em contrapartida, as situações negativas posteriores à independência, especialmente no período regencial, vieram para todos os índios, resultado das políticas indigenistas do novo país que visavam a extinção do status jurídico específico e das proteções, fruto também do liberalismo e da individualização de suas terras. Nessa conjuntura, o discurso dos líderes indígenas precisava se adaptar, construindo-se "conforme as circunstâncias e os interesses" e assumindo, quando necessário, "o discurso liberal, defendendo o direito dos índios à propriedade e à cidadania", assim como fizeram os de Monte-mor Velho ao citar a Constituição brasileira de 1824. Não deixavam, contudo, de ter culturas políticas baseadas "nos três séculos de disputas e negociações" e "fundamentadas na legislação do Antigo

Regime, que lhes dera condições distintas da dos demais vassalos",10 como afirma Almeida e

se pode observar nas "saudades do rei velho" registradas em 1839 por Miranda.

A insistência das lideranças indígenas em amparar sua atuação política na lógica colonial portuguesa durante os primeiros anos do Brasil independente não era, como o leitor pode pensar a priori, sinal de descompasso em relação à situação histórica em que viviam.

Para José Reinaldo Lopes, a legislação brasileira se apropriou da lusitana,11 e segundo Carlos

Garriga e Andreia Slemian, as independências na América ibérica, inclusive no Brasil, não

promoveram uma ruptura com a ordem jurídica tradicional,12 ainda que estas passassem a ser

operadas em novo contexto. A própria vigência do Diretório em parte significativa do território do país até meados do século XIX é disso um claro exemplo.

São muitos os trabalhos que se propõem a analisar as sociedades indígenas que viveram sob o regime desta lei setecentista, norma que substituiu o poder dos religiosos sobre essa população e que tinha como objetivo equipará-los aos brancos enquanto súditos da Coroa

10 Ibid., p. 204-205.

11 Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do

século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 200-201.

12 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América Ibérica (C.

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portuguesa. Promulgada inicialmente para o Grão-Pará em 1757 e estendida ao resto do Brasil no ano seguinte, a legislação visava regulamentar as leis de liberdade de 1755, fazendo dos índios uma importante ferramenta de povoamento e exploração de terras não desbravadas na colônia, sem restringir seu emprego como mão-de-obra para os colonos e o Estado. Dentre as medidas mais marcantes estavam a elevação das antigas aldeias religiosas a vilas, a criação de cargos de câmara ocupados pelos próprios índios, a obrigatoriedade da execução de trabalhos de aluguel em lavouras próprias e na de particulares e a presença do diretor, principal representante do poder temporal da Coroa e responsável pela distribuição dos trabalhadores.

De acordo com Isabelle da Silva, o objetivo do Diretório era a supressão do poder dos religiosos “sobre a vida dos índios e a emancipação e a integração destes à sociedade colonial”. Para a plena inserção dos indígenas como vassalos da Coroa portuguesa, algumas orientações na legislação eram especialmente destacadas pela autora, como a “massificação da presença de brancos” nas vilas. Ela enfatiza ainda que o “trabalho indígena, o comércio e a

instituição de impostos [eram], sem dúvida nenhuma, matérias centrais do Diretório”.13

Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei indigenista em questão fazia parte das mudanças do período pombalino que visavam “promover a agricultura e o comércio, e aumentar os laços da exploração colonial”. Para o autor, a integração dos índios à sociedade portuguesa era

contrária à política de segregação que havia caracterizado a administração missionária.14

Medeiros também destaca a importância dos oficiais de ordenança indígenas na implantação da ordem pombalina nos sertões do atual Nordeste, possibilitada pelas imprescindíveis negociações entre a Coroa e os povos indígenas. O enobrecimento das lideranças era decorrente dos serviços das armas dos índios em nome do rei e da expansão dos seus

domínios.15

A esse respeito, tem destaque a reunião promovida no Recife pelo governador de Pernambuco Luís Diogo Lobo da Silva em 1759 com as principais lideranças indígenas do território que administrava, evento que marcou a instalação do Diretório na região. O primeiro encontro ocorreu em 29 de maio, contando com a presença de mais de 100 índios. Do Ceará, estiveram presentes João Soares Algodão, chefe da aldeia da Parangaba (elevada a vila de Arronches) e dom Felipe de Souza e Castro, mestre de campo da aldeia da Ibiapaba (que

13 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o Diretório

Pombalino. Campinas: Pontes Editores, 2005, p. 80-82.

14 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do

norte da América portuguesa. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença indígena no

Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 116.

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passou a ser Vila Viçosa). O objetivo da reunião era acertar, com o consentimento dos índios, a elevação das aldeias religiosas a vilas e o pleno funcionamento das diretrizes pombalinas.

No dia 6 de junho foi promovido um pomposo jantar em comemoração ao aniversário de dom José I, ocasião em que Lobo da Silva presenteou os líderes indígenas, reconhecendo não apenas o prestígio social dos visitantes, mas também seu papel crucial no estabelecimento dos desígnios imperiais. Para Lígio Maia, a reunião “serviu para os índios como uma espécie de atualização de sua vassalagem”, bem como constituiu o “ponto chave para a compreensão da importância das lideranças indígenas na aplicação do Diretório” pois, sem elas, o novo

sistema era “simplesmente impraticável”.16 Como afirma Isabelle da Silva, o evento foi um “genuíno ritual de pompas” em que “os índios eram os sujeitos a serem cortejados”, possivelmente suscitando “neles um certo sentimento de poder, tanto quanto suscitou no

governador o respeito pelo poder militar deles”.17

Ciente das particularidades da região e da importância das lideranças indígenas para o bom andamento das diligências, Lobo da Silva criou ainda antes da reunião a Direção, uma

versão adaptada do Diretório para Pernambuco e suas capitanias anexas.18 As diferenças entre

as duas normativas estavam, essencialmente, nas condições de trabalho e na repartição das terras. Pela Direção, estas deveriam ser feitas de acordo com a posição social dos índios, e não da maneira igualitária como previa o Diretório, ressaltando a ênfase na hierarquia e no

respeito aos postos das chefias que deveriam ser promovidos nas comunidades.19 Contudo,

permanecia o entendimento da posse dos índios sobre suas terras, a partir dos preceitos

liberais que embasaram as políticas pombalinas.20

A respeito do trabalho indígena, a adaptação do governador previa que apenas um terço dos índios poderia se ausentar para prestação de serviços, diferente da metade prescrita na norma original, destacando o maior foco nas atividades agrícolas para as capitanias anexas

16 MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios: vassalagem e identidade no

Ceará colonial – século XVIII. Tese (doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, 2010, p. 271.

17 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 126.

18 DIREÇÃO com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da

capitania de Pernambuco e suas anexas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLVI, parte I, 1883, p. 121-171.

19 A nova proposta de repartição de terras não foi autorizada pela Coroa, mas, segundo Maia, provavelmente sua

proibição não foi sempre obedecida. Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de

índios, p. 239. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índio do Rio Grande do Norte sob o

Diretório pombalino no século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2005, p. 84. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 118.

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a Pernambuco em relação ao norte do Brasil.21 Para Isabelle da Silva, as medidas de Lobo da Silva sugerem que “havia certo grau de autonomia do governador no trato das diretrizes do novo regulamento”, objetivando o enriquecimento do Estado português “através do comércio,

este sustentado pelo crescimento da produção agrícola”.22 Curiosamente, não encontrei

menções à Direção na documentação analisada: o termo referente à norma pombalina era, sempre, Diretório.

Apesar dos cuidados de Lobo da Silva e da atuação das lideranças indígenas, as reações à implantação do Diretório no Ceará foram diversas, variando “da obediência à revolta contra os diretores, da reivindicação [de] serem incorporados ao projeto pombalino às ameaças contra o bom funcionamento do sistema”. Isabelle da Silva entende esta lei setecentista como “parte das relações sociais” que passaram a existir em território cearense, onde uma série de exigência em relação à disciplina do trabalho era simultânea às garantias políticas indígenas. Mesmo que não exercesse controle completo sobre a sociedade, o Diretório não podia ser negado, sendo operacionalizado por diferentes estratos sociais, “cujos

produtos eram antes de tudo frutos das relações de poder e práticas sociais”.23 Analisando a

realidade de Vila Viçosa, Lígio Maia afirma que os índios “tinham consciência de sua condição de livres”, e lutavam, amparados na lei, pela sua plena observância. Por isso, “mesmo em condição de dominação e sob uma drástica vigilância em seu trabalho e nas formas de sua vivência nas povoações pombalinas, os índios vilados impuseram limites à

política do Diretório”.24

No ano de 1798, por meio de uma Carta Régia, a lei indigenista pombalina foi oficialmente abolida no Grão-Pará e em outras regiões do Brasil, num contexto de ocupação, exploração e conflitos em suas fronteiras externas e internas, como veremos no primeiro capítulo. A medida teve alcance geográfico limitado, e em muitas capitanias, como na do Ceará, o Diretório continuou vigente, atravessando períodos de intensa transformação e

21 Cf. PIRES, Maria Idalina Cruz. Resistência indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial:

legislação, conflito e negociação nas vilas pombalinas 1757-1823. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2004, p. 204- 214. LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 82-84. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 237. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da América portuguesa, p. 117-118. CUNHA, Elba Monique Chagas da. Sertão, sertões: colonização, conflitos e História indígena em Pernambuco no período pombalino (1759-1798). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2013, p. 57. SANTOS JUNIOR, Carlos Fernando. Os índios nos vales do Pajeú e São Francisco: historiografia, legislação, política indigenista e povos indígenas no sertão de Pernambuco (1801-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, 2015. DANTAS, Mariana Albuquerque. Dimensões da participação

política indígena na formação do estado nacional brasileiro: revoltas em Pernambuco e Alagoas

(1817-1848). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2015.

22 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 135. 23 Idem, p. 153 e 160.

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configurações políticas bastante distintas, nas quais os índios vivenciaram mudanças em seu estatuto social e jurídico de igual profundidade. Como lembra Isabelle da Silva, em território cearense, o Diretório “permaneceu em vigor até ser substituído pela Diretoria Geral dos

Índios, em meados do século XIX”.25

Os debates que relacionam as comunidades indígenas com a formação do Estado nacional brasileiro, tanto dos pontos de vista político como legislativo, contudo, ainda são iniciais na historiografia. Apesar das reflexões importantes escritas há mais de 20 anos por

Marivone Chaim, Carlos de Araújo Moreira Neto e Manuela Carneiro da Cunha26 sobre a

política e a legislação indigenistas, e dos trabalhos produzidos sobre a temática indígena e as normas legais a ela relacionadas nas primeiras décadas do Brasil independente, pouco se discutiu até hoje acerca da vigência do Diretório nos oitocentos. Consequentemente, são pouco conhecidas as nuances e transformações da condição política dos índios ao longo deste contexto, tanto pelo viés das ações do Estado – seja ele português ou brasileiro, das capitanias ou provincial – quanto dos índios. Se a legislação definia – ou tentava definir – o lugar dessa população, governantes e indígenas lidaram constantemente com ela, fazendo das leis um campo de disputas. Além disso, levando em conta que o serviço das armas era um dos principais caminhos da ação política indígena, são igualmente escassas as pesquisas sobre a atuação militar dos índios durante esse período, tendo se mostrado especialmente importantes em eventos de contestação social no país.

Esta tese visa analisar as transformações da condição política dos índios no Ceará entre 1798 – ano de promulgação da Carta Régia que revogou o Diretório dos Índios, mas que não teve qualquer efeito em território cearense – e 1845, quando a lei pombalina foi finalmente extinta e cedeu lugar ao Regulamento das Missões, primeira lei indigenista geral do império brasileiro. O recorte também corresponde ao governo de dom João VI até o reinado de seu neto, dom Pedro II, atravessando, portanto, o processo de separação política brasileira e o período regencial. Neste contexto de crise do Antigo Regime e formação do Estado nacional, as relações sociais mudaram em consonância com redefinições jurídicas e de uma série de conflitos armados.

O funcionamento legislativo, por um lado, tem papel de destaque neste estudo, na medida em que foi um dos definidores dos confrontos entre políticas indígenas e indigenistas

25 SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande, p. 84.

26 CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás, 1749-1811. São Paulo: Nobel; Brasília: INL,

Fundação Nacional Pró-memória, 1983. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria

a minoria: (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Política

indigenista no século XIX. Idem. Prólogo. Legislação indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992.

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em torno da caracterização do lugar social dessas populações. Concordo com Ivone Barbosa, para quem a legislação tem tanto o significado de evidência da ação do Estado quanto é “indício precioso para se auscultar a experiência social geradora da demanda de uma ordem

legal”.27 É partindo deste pressuposto que pretendo analisar a relação entre as leis e os índios.

Investigo, neste período de transição, a passagem da categoria de súditos da Coroa portuguesa para a de cidadãos brasileiros e suas implicações nas reivindicações dos índios relativas à sua própria condição jurídica (na luta pelas garantias de súditos e direitos de cidadãos) e na sua participação em eventos militares (quando recrutados ou amotinados em defesa dos monarcas e de sua liberdade).

Por outro lado, a questão bélica tem igual evidência. Como ensinam diversos autores da nova história militar brasileira, a guerra é uma categoria pluridimensional, percebida de diversas maneiras pelas mais variadas culturas e passível de ser analisada em relação, por

exemplo, a questões sociais, étnicas e políticas.28 No caso das populações indígenas

integradas no corpo social do império português, a defesa sempre foi uma das suas principais funções – característica que contou, inclusive, com a implantação de hierarquias internas em que as lideranças militares tinham papel de relevo. Como afirma Juliana Lopes, para “os povos indígenas, a guerra era uma questão de vida, não de morte; uma afirmação de

continuidade”, e “se caracterizava, antes de tudo, [como] uma prática cultural”.29 Bem mais

do que meras peças de recrutamento a serviço do Estado (lusitano ou brasileiro), era na guerra, assim como na lei, que os índios se posicionavam nos eventos de conflito político e manifestavam seus interesses e expectativas.

A escolha por priorizar a relação das comunidades indígenas com a legislação e os conflitos armados não se dá, necessariamente, em detrimento de outras questões igualmente relevantes, como, por exemplo, as relacionadas à posse da terra e à distribuição e exploração do trabalho indígena. A primeira adquiriu mais importância nas discussões indigenistas

27 BARBOSA, Ivone Cordeiro. Cidadania em construção: a legislação provincial do Ceará. Apontamentos para

uma história social do Estado brasileiro. In: OLIVEIRA, Almir Leal de. BARBOSA, Ivone Cordeiro (Org.). Leis

provinciais: Estado e cidadania (1835-1861). Compilação das leis provinciais do Ceará – compreendendo os

anos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso [Ed. Fac-similada]. Fortaleza: INESP, tomo I, 2009, p. 31.

28 TEIXEIRA, Nuno Severiano. A história militar e a historiografia contemporânea. Nação e Defesa, Instituto da

Defesa Nacional, Lisboa, ano XVI, nº, 1991, p. 71. WHELING, Arno. A pesquisa da história militar brasileira.

Da Cultura, ano 1, nº 1, 2001, p. 35-26 e 41. PARENTE, Paulo André Leira. A construção de uma nova história

militar. Revista Brasileira de História Militar, ano 1 (edição especial de lançamento), 2009, p. 5-9. SANCHES, Marcos Guimarães. A guerra: problemas e desafios do campo da história militar brasileira. Revista

Brasileira de História Militar, ano 1, nº 1, 2010, p. 2 e 12-13. PEDROSA, Fernando Velôso Gomes. A história

militar tradicional e a “nova história militar”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh, 2011, p. 11-12.

29 ELIAS, Juliana Lopes. Militarização indígena na capitania de Pernambuco no século XVII: o caso

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principalmente a partir do século XIX, com a expansão agrícola da promovida pela Coroa portuguesa, que atravessou a separação política brasileira e a formação do Estado nacional. Nesse contexto, os territórios indígenas foram particularmente visados pela ampliação latifundiária e transformados em áreas de produção.

Já a mão-de-obra dos índios, que nunca estava desvinculada da questão da terra, sempre foi prioritária para a monarquia lusitana em sua colônia na América. O próprio Diretório era fruto da necessidade de os proprietários de terem acesso àquela força de trabalho que passou a ser considerada livre. Além disso, tais trabalhadores eram indispensáveis para as ambições do governo de Portugal de aumento da produtividade colonial. Mesmo no século XIX, quando a terra passou a ter cada vez mais destaque, a demanda pelo trabalho indígena não diminuiu, acentuando-se durante a crise de mão-de-obra no Brasil a partir da década de 1830.

Cientes de sua importância para a Coroa portuguesa e das prerrogativas concernentes à sua condição de vassalos livres, os índios sempre atuaram politicamente para que suas terras, seu trabalho e sua liberdade fossem plenamente respeitados. Com a separação política do Brasil, a agência indígena se transformou em concomitância com as novas conjunturas do país. O objetivo desta tese, portanto, é analisar as transformações do estatuto legal e da condição política dos índios a partir de suas relações com os governos e outros agentes. Terra, trabalho digno, autonomia e liberdade eram garantias pelas quais as comunidades indígenas lutavam por meio de sua atuação política. Esta poderia se dar de diversas formas, como, por exemplo, a partir dos cargos de vereadores e juízes ocupados pelas lideranças em suas vilas, ou mesmo por insubordinações cotidianas por parte dos índios comuns. Diante da necessidade de executar um recorte temático – arbitrário, porém, inescapável – privilegio nesta pesquisa os âmbitos legais e bélicos, nos quais entendo que mais amplamente se manifestou o protagonismo indígena durante a crise do Antigo Regime português e a formação do Estado nacional brasileiro.

Por um lado, estas populações conheciam bem as leis, por meio das quais as Coroas garantiam suas mercês e definiam seu lugar nas sociedades portuguesa e brasileira. Por outro, a integração dos índios no corpo de súditos lusitanos pelo serviço das armas – tema ainda carente de pesquisas por parte da historiografia – era previsto por lei e operado frequentemente pelos indígenas, cujos arcos e flechas eram símbolos de sua posição diante do monarca. Ou seja, era na lei e na guerra que os índios agiam politicamente, de forma predominante – mas não exclusiva –, em defesa de suas prerrogativas, em busca de condições

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dignas de trabalho, inviolabilidade de suas terras e respeito à sua condição de súditos ou cidadãos.

A delimitação espacial da pesquisa se concentra nas vilas e povoações de índios, a maioria oriunda dos antigos aldeamentos religiosos fundados em meados dos séculos XVII e XVIII e que concentravam a maior parte da população indígena do Ceará, além de lugarejos vizinhos habitados por eles. As vilas eram Soure (atual Caucaia), Arronches (atual bairro da Parangaba, em Fortaleza), Messejana (bairro de Fortaleza), Monte-mor Novo (atual Baturité) e Vila Viçosa (atual Viçosa do Ceará). As povoações correspondiam a São Pedro de Baepina (atual Ibiapina) no município de Vila Viçosa, Almofala (atual aldeia da etnia tremembé, em Itarema) no território de Sobral e Monte-mor Velho (atual Pacajús) pertencente a Aquiraz.

Mapa 1: Vilas e povoações de índios no Ceará no início do século XIX

Marcações feitas pelo autor, sobre cartografia atual do estado do Ceará disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ceará

A respeito da demografia das vilas de índios do Ceará no início do século XIX, Lígio Maia afirma que a população indígena era predominante, sendo diminuta a presença de pretos – mais numerosos em polos econômicos da capitania, como Sobral ou Icó. A exceção era Monte-mor Novo, a mais povoada de “extranaturais” – ou seja, não-índios que estabeleceram moradia na vila – em decorrência, segundo o autor, da produção de algodão da serra de

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Baturité, onde se localizava. A população indígena habitando em povoações e vilas de

brancos era considerável, perfazendo 18% do total de índios, até, pelo menos, 1808.30

Também faz parte da análise empreendida nesta tese a região do Cariri, na fronteira cearense com Pernambuco e Paraíba, território de moradia dos chamados "gentios", povos nômades de variados etnônimos. Segundo Ricardo Pinto de Medeiros, muitos desses grupos haviam voltado a viver do corso após experiências missionárias, e chegaram a ser

“violentamente reduzidos”, habitando algumas vezes em vilas.31 Tais populações foram

atingidas com igual intensidade em sua condição jurídica pela mudança do regime político brasileiro e se posicionaram em diversas ocasiões – inclusive belicamente – em prol da manutenção de relações a elas benéficas e em defesa de sua liberdade. Os limites geográficos da análise também se estendem às capitanias vizinhas do Ceará, conforme a abrangência da atuação indígena.

Parte da historiografia que aborda a legislação indigenista do período entre a promulgação da Carta Régia de 1798 e do Regulamento das Missões admite não ter conseguido explicar por que a Carta que aboliu o Diretório foi aplicada em algumas regiões, tendo, outras, presenciado a continuidade da norma pombalina (como aconteceu no Ceará). Fátima Lopes assume que “os historiadores não indicaram ainda algum documento pelo qual tenha sido também estendido" para o restante da colônia. Pela falta de registros que provem o contrário, a autora conclui que “o Diretório dos Índios não foi extinto para todo Estado do

Brasil, permanecendo, portanto, em vigor na capitania de Pernambuco e suas anexas”.32

Alguns autores tentaram discorrer brevemente sobre a questão. Segundo Maria Hilda Paraíso, por conta das incongruências decorrentes da aplicação da Carta Régia de 1798 – como a decadência e a instabilidade social das povoações de índios – a lei pombalina

"continuou a vigorar para os antigos aldeamentos até meados do século XIX".33 Maico Xavier

afirma que o Diretório chegou a ser abolido porque já não "estava preenchendo plenamente estes interesses da Coroa no final dos anos setecentistas", e que sua vigência no Ceará no século XIX seria uma "contradição, ou indecisão, em relação à legislação indígena naquele

30 Cf. MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia a vila de índios, p. 303-306. A

porcentagem de índios vivendo em vilas e povoações de brancos provavelmente diminuiu a partir das políticas de controle e vigilância do governo de Manuel Ignácio de Sampaio, iniciado em 1812. Cf. COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção.

31 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do

norte da América portuguesa, p. 121-122 e 138.

32 LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade, p. 395-397

33 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territórios indígenas nos

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ensejo".34 Não há, entretanto, qualquer indício de que a Coroa portuguesa tenha pretendido ampliar o espaço de aplicação da Carta Régia – inicialmente dirigida para o Pará – ou que os anos em que ela esteve em vigor tenham sido um "período de teste" para uma posterior extensão ao resto do Brasil.

Para boa parte da historiografia, o "vazio legislativo" postulado por Manuela Carneiro

da Cunha35, que caracterizaria essa conjuntura pela inexistência de uma diretriz geral para os

índios no Brasil (apesar da farta quantidade de leis expedidas neste período sobre a questão),

seria a razão para a continuidade do Diretório em algumas regiões.36 Segundo Patrícia

Sampaio, por exemplo, o fato de a Carta Régia de 1798 não ter se transformado em uma legislação indigenista geral gerou, na primeira metade dos oitocentos, uma lacuna legal. As "especificidades da legislação de 1798" teriam comprometido sua "aplicabilidade em outras áreas do país, restringindo seu caráter de política indigenista geral da Coroa", por dar "grande

ênfase à questão da disponibilidade de trabalhadores".37 Segundo André Roberto Machado e

Magda Ricci, a importância da incorporação indígena como mão-de-obra, inclusive no âmbito militar, teria sido confirmada pelo fato de que a maior parte dos integrantes das revoltas ocorridas nos anos posteriores era indígena e ter sido motivada pela defesa da garantia de sua

condição de liberdade.38 O problema é que a "ênfase" no trabalho dos índios, destacada por

Sampaio, é particularmente evidente no Diretório, tendo sido esta uma das causas de sua permanência em algumas regiões durante o século XIX. Tal cenário ocorreu, por exemplo, em

Goiás, no Rio Grande do Norte e no próprio Ceará,39 que se utilizou fortemente do

recrutamento indígena em situações de conflito bélico, além de ter sido palco da Balaiada juntamente com o Piauí e o Maranhão.

34 XAVIER, Maico Oliveira. "Cabôcullos são os brancos": dinâmicas das relações sócio-culturais dos índios

do termo da Vila Viçosa Real – século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 76-79.

35 CUNHA, Maria Manuela Carneiro Ligeti da. Prólogo, p. 09.

36 IGLESIAS, Rubén Álvares. Entre la asimilación y el exterminio: los indios de Brasil desde el Directório hasta

la abolición de la esclavitud indígena (1750-1845). Cuadernos del Tomás, n. 04, 2012, p. 34-35. MACHADO, Marina Monteiro. A trajetória da destruição: índios e terras no império do Brasil. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 37-38. MACHADO, Marina Monteiro. Entre fronteiras, p. 141.

37 SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia. Manaus:

Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011, p. 245.

38 Cf. MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do antigo

regime português na província do Grão-Pará (1821-25). Tese (doutorado) – USP, 2006. RICCI, Magda Maria de Oliveira. Sobre patriotismos e bairrismos: identidades e conflitos no antigo Grão-Pará – século XIX. In: CABALLERO, Gabriela Dalla Corte; CÉSPEDES, Ricardo Piqueiras; MATA, Meritxell Tous (Org.). América: poder, conflicto y política. Murcia: Universidad de Murcia / Servicio de Publicaciones, 2013, pp. 01-14.

39 CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas. LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios:

exploração e violência no início do século XIX. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de (Org.). A presença

indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. VALLE, Carlos Guilherme do. Conflitos, identidades

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Seguindo um caminho diferente, Francisco Cancela entende, assim como Lopes e Porto Alegre, que a questão do alcance jurisdicional da Carta Régia de 1798 ainda espera mais pesquisas. Em seu trabalho acerca dos índios e do processo colonial em Porto Seguro, Cancela chama atenção para a ausência de qualquer menção à Carta Régia de 1798 nesta capitania, além do reestabelecimento do Diretório naquela região em 1803 por ordem da

Coroa, de maneira semelhante ao que ocorreu em Goiás, como demonstra Marivone Chaim.40

Reconhece que, se a execução da lei pombalina teve diferentes feições em cada uma das regiões do Brasil, sua superação também "não pode ser analisada sem levar em consideração a possibilidade de diferentes temporalidades e múltiplas experiências". Mais do que ter marcado um "vazio legislativo", a passagem dos séculos XVIII e XIX teria selado o "ponto de

referência para o retorno de uma política indigenista flexível e dual".41

Cancela trabalha na perspectiva de que as normas legais no Antigo Regime português eram aplicadas nas capitanias de maneira diferenciada, a partir de suas particularidades, ainda que houvesse leis universais. No que diz respeito aos índios, o quadro de variações tão gritantes na aplicação das leis – que Cunha chamou de “vazio legislativo” – nos leva a concluir que as particularidades de cada região estavam diretamente relacionadas a tais situações heterogêneas e às políticas de governadores, capitães-mores e diretores. O próprio Diretório, como demonstra o trabalho de Mauro Cezar Coelho, foi concebido inicialmente para o Grão-Pará como uma adaptação das "leis de liberdade" – surgidas no bojo da influência do pensamento iluminista ibérico – às demandas dos colonos por força de trabalho barata e de acesso ilimitado. O autor atribui a construção da lei pombalina “ao contexto imediato da Colônia” que, no caso paraense, se relacionava com “os conflitos vividos em torno do

controle da mão-de-obra indígena”.42

Ao ser estendida para o restante do Brasil, as distintas formas de aplicação da lei reforçam a ideia de que a colônia, em toda a sua diversidade de contextos, e bem mais do que os desígnios da metrópole, era quem definia a leitura dos textos legislativos e os rumos das práticas políticas populacionais. No Rio de Janeiro, segundo Luís Rafael Corrêa, até 1763,

40 Cf. CARTA Régia de 18 de agosto de 1803. Apud. CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas, p. 186-188. 41 CANCELA, Francisco Eduardo Torres. De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias

na colonização reformista da antiga capitania de Porto Seguro (1763-1808). Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2012, 280-281.

42 COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a

partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, 2005, p. 152

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nenhuma das antigas aldeias jesuíticas havia sido elevada a vila,43 e em São Paulo as

diretrizes pombalinas tiveram repercussões frouxas, de acordo com John Monteiro.44 O

trabalho de Fabrício Santos analisa as dificuldades em se aplicar o Diretório na Bahia, onde escrivães acabavam assumindo o papel de diretores por falta de pessoas capacitadas para o

cargo.45 No Mato Grosso, como destaca Alessandra Blau, os casamentos entre índios e negros

eram incentivados por conta do baixo número de brancos nas povoações,46 e em Pernambuco

e suas capitanias anexas chegou-se ao extremo de se aprovar a “Direção”, como vimos acima. Nesses estudos, o período mais amplamente abordado é a segunda metade do século XVIII e, mesmo quando se estendem ao XIX, não analisam de forma densa sua permanência nos oitocentos e menos ainda no pós-independência.

Tal balanço historiográfico pode nos ajudar a refletir sobre o caráter plural das leis e da sociedade corporativa do Antigo Regime português. Elías Palti explica que de “cada corpo emanava sua própria legislação, sendo que o monarca tinha a missão de compatibilizá-las

mutuamente e assim preservar uma ordem natural (que se condensava na ideia de justiça)”.47

Mas, ainda que os índios vassalos demandassem uma legislação própria enquanto membros do corpo social, a heterogeneidade desta população e dos lugares onde habitavam eram outras variantes que os definiam enquanto fontes de direito. Para Carlos Garriga e Andreia Slemian, tal pluralismo jurídico integrou o Novo Mundo por meio da colonização “em um prolongado processo de territorialização”. Com isso, o direito na América portuguesa era “produto da

casuística adaptação da ordem metropolitana às circunstâncias ultramarinas”.48 De maneira

semelhante argumenta Antônio Manoel Hespanha, segundo o qual "a realidade seria tão multiforme que bem se podia conceber que alguma utilidade particular exigisse a correção da norma geral", se esta houvesse, como era o caso da legislação indigenista. A ordem jurídica no Brasil colonial era "produto da dinâmica de fatores locais, de ordem geográfica, ecológica, humana e política".49

43 CORRÊA, Luís Rafael de Araújo. A aplicação da política indigenista pombalina nas antigas aldeias do

Rio de Janeiro: dinâmicas locais sob o Diretório dos Índios (1758-1818). Dissertação (mestrado) –

Universidade Federal Fluminense, 2012, p. 154-155

44 MONTEIRO, John Manuel. A memória das aldeias de São Paulo: índios, paulistas e portugueses em Arouche

e Machado de Oliveira. Dimensões, vol. 14, 2002, p. 18.

45 SANTOS, Fabrício Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia (1750-1800).

Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2012, p. 206-207.

46 BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da capitania do Mato

Grosso: 1752-1798. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Mato Grosso, 2007, p. 48

47 PALTI, Elías. Entre a natureza e o artifício: a concepção de nação nos tempos da independência. Lua Nova, n.

81, 2010, p. 35.

48 GARRIGA, Carlos. SLEMIAN, Andreia. “Em trajes brasileiros”, p. 191-192.

49 HESPANHA, Antônio Manoel. Direito comum e direito colonial. Panóptica, Vitória, ano 1, nº 3, 2006, p.

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Não era à toa que o Diretório foi aplicado de formas tão diversas quanto vimos acima. No caso da Direção de Pernambuco, segundo Ricardo Pinto de Medeiros, a lei se adaptou às circunstâncias ambientais e demográficas e às necessidades econômicas da região ao priorizar

atividades como a pecuária e as lavouras.50 Mesmo o Diretório tendo sido estendido para todo

o território brasileiro em 1758, a leitura e aplicação de seus artigos estava determinada justamente pela realidade multiforme da Colônia. Em se tratando do período após 1798, a legislação no império português não funcionava de maneira generalizante – e, sim, pontual e particularizante: por isso, nos lugares onde a Carta Régia não foi aplicada, funcionou o Diretório da forma que melhor se adaptava às realidades locais. Antes de 1798, a lei pombalina não era – e nem poderia ser – instaurada igualmente em todas as regiões. Não era contraditória, portanto, sua permanência, e muito menos resultado de incongruências, indecisões ou de um suposto "vazio legislativo".

Quando analisamos novamente o panorama da produção historiográfica, percebemos o quão necessário se faz observar a ambivalência da política indigenista de Portugal. Boa parte das pesquisas que se debruçaram sobre a temática indígena na passagem dos séculos XVIII e

XIX seleciona os chamados "sertões do leste"51 para a investigação empírica, por ter sido

palco das ações aonde se dirigiram as famosas Cartas Régias de guerra justa aos "botocudos", em 1808 e 1811. Como vimos acima, outros trabalhos importantes vêm, nos últimos anos, ampliando as perspectivas analíticas ao escolher outras regiões, com condições históricas distintas e particulares. Não obstante a qualidade das pesquisas, parte delas tende a generalizar a política indigenista do período joanino como tendo sido basicamente ofensiva, sem

50 MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política indigenista do período pombalino e seus reflexos nas capitanias do

norte da América portuguesa, p. 118.

51 BARICKMAN, Bert J. "Tame Indians", "wild heathens" and settlers in southern Bahia in the late eighteenth

and early nineteenth centuries. The Americas, v. 51, n. 03, 1995, pp. 325-368. LANGFUR, Hal. The Forbidden

Lands: Colonial Identity, Frontier Violence, and the Persistence of Brazil's Eastern Indians, 1750-1830.

Stanford, Calif.: Stanford University Press. 2006. LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência dos índios Coroados de Valença frente à expansão cafeeira do Vale do Paraíba (1788-1836). Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004. MATTOS, Izabel Missagia.

"Civilização" e "revolta": povos botocudos e indigenismo missionário na província de Minas. Tese

(doutorado) – UNICAMP, 2002. MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012, pp. 223-243. MALHEIROS, Márcia. Homens da fronteira: índios e capuchinhos na ocupação dos Sertões do Leste, do Paraíba ou Goytacazes (séculos XVIII e XIX). Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, 2008. MARINATO, Francieli Aparecida. Índios imperiais: os botocudos, os militares e a colonização do Rio Doce (Espírito Santo, 1824-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2007. MOREL, Marco. Independência, vida e morte: os contatos com os Botocudo durante o Primeiro Reinado. Dimensões, v. 14, 2002, pp. 91-113. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho. SILVA, Natalia Moreira da. Papel de índio: políticas indigenistas na província de Minas Gerais e Bahia na primeira metade dos oitocentos (1808-1845). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João Del-Rei, 2012. SILVA, Tarcísio Glauco da. Junta de civilização e conquista dos índios e navegação do rio Doce: fronteiras, apropriação de espaços e conflitos (1808-1814). Tese (doutorado) – Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.

Referências

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