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24. Correlação entre os níveis espaciais e renda domiciliar

1.2.1 As dimensões da reprodução social na pesquisa

O processo reprodutivo capitalista típico, para se efetivar, não mais se restringe aos espaços de produção. E não poderia ter sido diferente, pois o processo da industrialização-urbanização já apontava como tendência à instauração da sociedade urbana, logo, como assinala Damiani (1999b), quando o processo reprodutivo se vinculou ao espaço, ao urbano, ao tempo e ao cotidiano, significa dizer que a reprodução social se expandiu para além dos espaços produtivos.

De todas essas dimensões apontadas por Damiani, duas interessam diretamente a esta pesquisa: a espacial e a urbana; aquela porque abriga o habitar e esta porque inclui o trabalho e ambas por um motivo simples, a reprodução social entrelaça, no plano imediato ou da prática socioespacial, a moradia concomitantemente à realização de atividade humana (trabalho). Como nossa problemática de pesquisa busca compreender os termos da reprodução social da classe trabalhadora em um espaço periférico metropolitano, decidimos então seguir um caminho no qual essas duas dimensões fossem tratadas por duas abordagens teóricas: uma chamada aqui de alienação, centrada em Léfèbvre, e outra, nomeada de resistência, centrada em Certeau.

41 Por que tratar a reprodução a partir dessas duas abordagens? Porque entendemos que as diferenças entre essas duas abordagens podem gerar uma potência explicativa em relação ao objeto de pesquisa. Por outro lado, reconhecemos que existem várias diferenças de concepção teórica que não podem ser sublevadas ou suprimidas, sendo que a maior seja talvez a seguinte: a abordagem da alienação é eminentemente sociológica, uma vez que seu nível de abstração leva em conta conjuntos sociais, como classe social, movimento social e, consequentemente, a historicidade dos fenômenos. Enquanto a abordagem da resistência foca sua teorização em uma antropologia das práticas sociais, logo, em uma dimensão mais restrita da realidade onde estão os indivíduos. O que esta diferença aponta é que tais abordagens pensam a reprodução social a partir de níveis de realidade distintos.

É válido afirmar que a escolha de um nível de realidade define um quadro de referências para se realizar a pesquisa. Contudo, da mesma maneira que ocorre a implicação entre os níveis de realidade socioespacial, também ocorre o mesmo entre o que é sociológico e o que é antropológico. Compete-nos, portanto, não negligenciar tais diferenças nas etapas posteriores da pesquisa.

Como a reprodução social é entendida pelas duas abordagens? Até onde nossa compreensão permitiu atingir para a abordagem da alienação as permanências são estratégias de classe e servem de controle das práticas reprodutivas. Para a efetivação dessa contenda, as formas sociais tiveram que ser ressignificadas segundo os desígnios da sociedade burguesa, por isso, para esta abordagem, a reprodução social se caracteriza pelo conflito entre permanências e transformações (rupturas). Já a abordagem da resistência lê a sociedade capitalista através de um “sistema de produção” de mercadorias, logo, a reprodução social age sobre o indivíduo, reduzindo-o à função de consumidor, mas o indivíduo comum procurar “burlar” este “sistema” por táticas de resistência que desviam as formas, justamente pelas práticas de uso e apropriação. Por isso, esta abordagem não define horizontes de transformação reprodutiva.

42 Então, o que está enjeu quando trazemos estas duas abordagens para pesquisar e refletir sobre reprodução social? Que a leitura lefebvriana da temática em questão é suficiente e necessária para a discussão da reprodução ao nível das estruturas o que inclui, evidentemente, o conflito de classes. Por outro lado, quando avançamos para as conjunturas e os indivíduos, a leitura certeauniana da reprodução se torna mais eficiente porque revela a temática a partir do sensível. Em outros termos, o primeiro nível é o das decisões de caráter estratégico que geram funções, valores e modelos que implicam ao nível micro. Já este é das decisões de caráter tático, onde predominam as ações que não deixam “traço” e, portanto, são ocultas à estrutura social. Tal compreensão desses dois níveis de realidade do objeto de pesquisa tem consequência direta nas dimensões de reprodução, isto é, o espaço e o urbano, porque, uma vez aceito que a reprodução social se imbricou com essas duas dimensões, e considerando que nossa problemática de pesquisa busca dialogar com dois sistemas explicativos. Cabe-nos agora discorrer como cada abordagem problematiza as duas dimensões reprodutivas.

O espaço

Por que tratar teoricamente o espaço social na reprodução social? Na realidade, trata-se justamente do movimento que relacionou espaço, industrialização e capitalismo. Léfèbvre (2000; 2004) foi um dos poucos teóricos a ter a “ousadia” de afirmar que o capitalismo sobreviveu ao longo do século XX porque ele incorporou o espaço como um mecanismo que aliviava as crises cíclicas do capital, através das constantes recomposições de capitais. Por isso, sua problemática é hoje central para se entender a sociedade moderna, ou seja, o espaço se tornou condição e meio pela qual ocorre também a reprodução social. Ele reage dialeticamente com a produção, portanto, ele se tornou peça-chave na continuidade da sociedade capitalista ao ser equiparado à forma mercadoria.

A forma mercadoria é o equivalente universal de trocas na sociedade capitalista, e mesmo pressupondo um uso, é verdade, este está subordinado à troca. No caso do espaço, a forma mercadoria serve para homogeneizá-lo e, esta codificação,

43 chamada de direito à propriedade nas constituições republicanas, é um dos pilares centrais para que a reprodução social ocorra. Não obstante a sua homogeneização, também ocorre a fragmentação – só se consegue comprar o espaço se ele é fracionado em pedaços geométricos, por isso, o espaço define onde e sob que condições materiais a reprodução social ocorrerá, através dos processos de hierarquização (mediação) entre as espacialidades, notadamente os centros e as periferias.

Certeau (2003) não é um pesquisador das estruturas, mas das ações ou percursos por entre elas. Por isso, sua concepção de espaço é de ordem fenomenológica porque apenas através da experimentação perceptiva (operações) organizamos noções de espaço. Neste aspecto, Certeau cria uma cisão entre aqueles que produzem o espaço e os que dele se apropriam, deixando para estes a capacidade de construção de uma história. Isto não deixa de ser intrigante uma vez que Léfèbvre encara a história como um produto coletivo.

Apesar de sua discussão se polarizar entre lugar e espaço, o que não deixa de ser muito próxima da discussão lefebvriana de espaços concebido e percebido, Certeau está interessado na apropriação pelo uso, ou como ele define “nas operações que especificam espaços” (2003, p. 205). Abordar a dimensão do espaço na reprodução social sob a “leitura” certeauniana só faz sentido na dimensão microssociológica da pesquisa, aquela ligada ao bairro e a trajetória de seus moradores na qual a apropriação do espaço entra a partir dos termos possíveis do habitar e da vida de bairro.

O urbano (modo de vida)

O urbano ou modo de vida urbano também é uma dimensão privilegiada de análise da reprodução social. Por ser uma camada sociológica fruto do processo de industrialização, o urbano se encontra ainda muito imbricado ao período industrial porque está submetido, em muitos aspectos, à sua lógica de crescimento e

44 acumulação. Porém, de acordo com Carlos, a “ideia de urbano transcende a de mera concentração do processo produtivo (...) não só no que se refere à determinação econômica do processo, mas também as sociais (...) o urbano é um modo de vida”. (2008, p. 84). Dessa maneira, por quais mecanismos e de que maneira o urbano se relaciona com as formas reprodutivas da sociedade? Se o urbano é um modo de vida, a sua força colonizadora se dialetiza com as demais dimensões reprodutivas, mas deve atuar principalmente em duas práticas urbanas correlatas, o trabalho e o consumo.

Ao reunir espacialmente, o urbano favorece o acontecer de inúmeras práticas sociais de reprodução material (fenômeno da simultaneidade), mas como, a partir dele, podemos refletir sobre as permanências, as transformações e os desvios do processo reprodutivo? Pelos conflitos que se estabelecem pelos modos e níveis de vida.

O modo de vida burguês se baseia na acumulação e no consumo incessante de novas mercadorias. Seu “modus operandi” tende a se disseminar como representação geral do modo de vida urbano, entretanto, além do modo de vida há também o nível de acumulação que promove o processo de hierarquização socioespacial. É evidente que para a classe trabalhadora, a convivência com tal modo e nível de vida, não acontece senão através do conflito. Nesse conflito, as insatisfações, as necessidades e desejos reprimidos, tendem a se manifestar, às vezes, de modo violento. Para Léfèbvre (1970) essa potência de interação social que o urbano congrega, pois também é uma forma social, favoreceria a transformação ou superação do modelo burguês de reprodução social. Isto é uma tese sobre o urbano.

O urbano ou o modo de vida urbano aparece na obra de Certeau (2003), principalmente, como a qualidade da diferença. Certeau deixa entrever que a diferenciação social, para além dos limites de classe, é um fato do modo de vida urbano. Além disso, ele entende que a diferenciação social é fruto de táticas urbanas que burlam os limites da reprodução sendo, portanto, impossível de ser gerida pelos

45 sistemas de controle social. Contudo, uma ressalva deve ser feita, se a estruturação de classes impõe um modo de vida e níveis de rendimentos, então, a qualidade da diferença certeuniana nos possibilita apreender as táticas de manipulação do que está posto, e isso só é possível em situações específicas, onde a formalização do urbano é débil ou insuficiente, portanto, abaixo de um plano estrutural.

Enfim, a reprodução social é uma equação social complexa. O “espraiamento” das relações de reprodução social para essas dimensões selecionadas para a pesquisa nos diz que o projeto de um “sistema total” foi revisado e ampliado, porém, ao mesmo tempo, pode-se afirmar que essas dimensões produziram “novas” contradições e “novas” derivações à equação da reprodução. Convém doravante que nos detenhamos no aprofundamento teórico da reprodução social, refletindo sobre seus níveis e práticas sociais.