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CAPÍTULO 2: EM CENA, O CORPO

2.3 AS DIMENSÕES DO FEMININO NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA: CORPO,

O corpo em uma perspectiva histórica e de gênero, para este estudo, foi

considerado a partir do Concílio de Trento – (1545 – 1563). Foi nesse momento que

houve a reforma do catolicismo, e a Igreja Católica convidou os seu fieis a pensar o sacramento do matrimônio, representação de controle social, da garantia da união de riquezas, da igualdade das pessoas, e da garantia de que os recursos pudessem retornar à igreja na forma dízima (RAGO, 2003).

Jean Louis Flandrin em O sexo e o Ocidente (1988) afirma que o Concílio de

Trento propiciou às famílias uma “dupla moral”17, e a bipartição do papel da mulher. A

mulher ocidental, vivendo no seio familiar, exercia o papel de mãe, cuidadora; enquanto que a outro grupo de mulheres vivendo nas periferias dos bordeis tinha um papel de satisfazer as fantasias eróticas masculinas. Havia uma dualidade da mulher santa versus a mulher pecadora.

Foi também nesse período que as famílias eram responsabilizadas pela Igreja pela transmissão de valores, crenças e verdades. A igreja passou a penetrar nas intimidades dos casais, e com o advento da imprensa surgem os Manuais de Confessores para ensinar os casais católicos a maneira correta de praticar as relações sexuais (RAGO, 2003).

O sexo entre os casais era realizado de forma rápida, ‘limpa’ – com caráter quase cirúrgico, eliminando o viés erótico e as carícias – o prazer propriamente dito – em que, inclusive as posições sexuais eram pensadas de maneira a facilitar a concepção maternal. O corpo feminino passou a ser visto como uma incubadora, o casamento vai despindo a mulher, que passa a ter uma representatividade exclusiva do seu papel de mãe.

Não se observou grandes mudanças entre este período até o século XIX. A mulher neste intervalo temporal para ser amada e desejada tinha que ser doce, amável, meiga e elegante, sendo a beleza física um critério de segunda ordem nessa época. A mulher deveria possuir um comportamento pudico, a mulher santa, de um pudor

17 Quando uma pessoa ou um grupo afirma que algo é moralmente bom, mas faz o contrário, estamos

diante de uma moral dupla. Normalmente, o mecanismo deste tipo de moral é o seguinte: algo está proibido ou mal visto socialmente e apesar disso continua sendo praticado em segredo.

comparável à pureza de Nossa Senhora, ou seja, os atributos psicológicos convergentes à mulher do lar, a mulher pronta à maternidade eram muito mais relevante do que seus atributos físicos (DEL PRIORE, 2014).

O cenário foi novamente alterado no final do século XIX, como cita Del Priore (2014). A evolução da medicina e, consequentemente, o crescimento das escolas médicas altera o trato da sexualidade do corpo da mulher. Agora, são os médicos que enfatizam os preceitos antes estabelecidos pela Igreja, porém, com outro viés: o sexo era visto como uma prática específica de concepção biológica e, portanto, deveria resultar no menor desgaste físico possível.

O desgaste excessivo nas relações sexuais deveria ser evitado diminuindo-se a frequência sexual, e se resumindo às posições recomendadas para esta prática voltada à procriação e, que, agora, passavam a serem postuladas nas cartilhas médicas. No lugar dos Manuais de Confessores (Igreja Católica), Manuais Médicos com recomendações para o uso da sexualidade.

Concomitantemente, o aspecto burguês da vida social induzia o papel da mulher na família como cuidadora, e o quarto do casal era como uma espécie de altar- laboratório voltado para a concepção de novos membros familiares. A agenda basilar feminina incluía o casamento, o cuidado com a casa, a disposição e capacidade à maternidade, que deveria gerar muitos filhos para dar continuidade ao ciclo de consumo gerado pela ascensão da burguesia. O uso do corpo era dado aos cuidados domésticos e maternais, e pouco era exposto na vida social e também na intimidade entre o casal. O sexo praticado de maneira padronizada dentro dos seios familiares, o corpo santo da esposa e da mãe, talvez tenham sido um convite às relações extraconjugais, conforme afirma Del Priore (2014). A presença das prostitutas francesas, que naquela época eram chamadas de Le Cocottes, alteram a concepção do corpo e do seu uso. Foi nessa época que houve um refinamento no consumo para corpo: shampoos, sabonetes, maquiagens, desodorantes, bijuterias, tecidos finos e vários outros produtos passaram a servir a um ideal de corpo belo, admirável.

Imagem 04: Prostitutas francesas e o estilo de vida da época Fonte: Sant’Anna (2016)

O comportamento, especialmente mais aprimorado da mulher francesa, a sofisticação de seus gestos manifestados em um corpo bonito e desejável, alterou de sobremaneira a percepção do corpo e das relações de consumo em todo o mundo. O refinamento passou a ser copiado por toda Europa, Américas e também em parte da Ásia.

O estilo de vida vivenciado pela mulher francesa, e mais especificamente em seu comportamento sexual, provocou uma mudança significativa nas práticas sexuais no Brasil promovendo, inclusive, o refinamento do erotismo e das formas de fazer sexo nessa época. A aproximação amorosa, delicada e sensual é incorporada pela mulher francesa nas relações extraconjugais praticadas pelos distintos maridos, no pleno exercício de dupla moral, nos bordeis e que, posteriormente, retornavam aos lares oficiais nos encontros pudicos de corpos com suas esposas, conforme cita Del Priore (2014).

Segundo a trajetória histórica dada pelo viés da sexualidade, o século XX é um período de revolução. Caminhou-se entre avanços e retrocessos, a mulher sofreu ainda com repressão vinda de um controle exacerbado e do forte moralismo social, mas também foi um momento de grandes conquistas para a libertação feminina. Foi um momento de transição que conjugou uma série de invenções tecnológicas que tiveram

impacto no conhecimento do corpo, e nas relações que os sujeitos exercem com seus corpos.

Com a fotografia erótica, passou a circular ainda mais facilmente as imagens de corpos desnudos a partir da segunda metade do século XIX e no século XX. Em geral, eram fotos semi ou desnudas por completo de artistas (atrizes) ou de prostitutas francesas. Outro grande avanço da exposição corporal no século XX veio por meio da

invenção do cinema, pelos irmãos Lumiére (1862 – 1954). De imediato o filme de

conteúdo erótico, pornô como conhecemos, passou a ser produzido com conteúdo bastante denso para época e com a exposição de práticas sexuais consideradas pesadas à época, como sexo oral e anal.

Comparativamente ao que se tem nos dias atuais, é importante destacar o primeiro veículo midiático a retratar o corpo feminino nu no Brasil chamado O Rio Nu, uma revista produzida por um grupo restrito de jornalistas e pelos frequentadores de bordeis que escreviam e davam sugestões, como também publicavam as novidades que envolviam aquele recém mercado criado para vender a pornografia na cidade do Rio de Janeiro (DEL PRIORE, 2012).

Imagem 05: Periódico carioca O Rio Nu Fonte: Sant’Anna (2016)18

18 O Rio Nu: periódico semanal caustico humorístico e ilustrado, que trazia para a sociedade carioca os

prazeres da carne e mostrava uma cidade picante, irreverente, maliciosa e escrachada. Criado em 1898 e dirigido inicialmente por Heitor Quintanilha, Gil Moreno e Vaz Simão, O Rio Nu foi a primeira publicação

A terceira forma de controle e mediação da sexualidade em relação ao corpo feminino, feita inicialmente pela Igreja e Medicina, nos anos 1930 passou a ser feita pela ótica moral Estado. A primeira etapa do governo de Getúlio Vargas (nascido em 1882 – falecido em 1954) ocorreu entre os anos de 1930 – 1945 e foi o período em que se divulgou amplamente campanhas para que as famílias procriassem gerando filhos para a Pátria, onde a mulher exercia um papel biológico sagrado (da maternidade) e socialmente um papel importantíssimo de educadoras do cidadão, alterando a noção da identidade nacional. A mulher através do seu corpo passou a ser uma contribuinte do Estado: parindo filhos que serviriam à Pátria.

Del Priore (2012) afirma que um comportamento de mudança em relação ao corpo da mulher só teve início nas duas décadas seguintes. Assim, após a ampla divulgação da fotografia, a chegada do rádio e do cinema passaram a ditar os novos padrões de relação e de comportamento em relação à sexualidade vão começar a ser percebidos. O beijo, por exemplo, tornou-se um sinônimo de amor entre os apaixonados e a possibilidade de contato físico mais naturalizado.

Imagem 06: O beijo no cinema na década de 1940 Fonte: Reprodução Google Imagens (2018)

Na obra Histórias e conversas de Mulher, a autora, Mary Del Priore (2014) comenta sobre a virgindade feminina. O toque no sexo oposto era de dada maneira possível, a companhia de um homem também era algo plausível mas não ousaria a

da imprensa brasileira destinada exclusivamente ao público masculino. O sucesso foi tanto que o jornal logo passou a circular duas vezes por semana, e manteve-se ativo por dezenove anos. Recheadas de versos, contos e desenhos provocantes, suas páginas podem ser apreciadas na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.

mulher a entregar o seu corpo para aquele que não a escolhesse como esposa. As que cometiam um ‘mal passo’ chamadas de meninas furadas, e que segundo relatos haviam homens que diziam reconhecer as moças furadas pelo seu modo de andar cercando essa mulher que cedia ao sexo antes de caminhar para o altar de uma série de preconceitos.

A virgindade era sagrada. Na prática, isso significava sexo vetado para os namorados ou noivos e obrigatório para os cônjuges. Tratava-se de uma dupla condenação. Na vida de solteiro, sexo limitado aos prolegômenos. Na vida de casado, o sexo regido pela obrigação. Não existia liberdade, e foi contra isso que a revolução dos anos 1960 se fez. Ela foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis; e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. O que caracterizou esse movimento foi a sua amplitude. Era uma reivindicação aberta, divulgada com estardalhaço na imprensa, cujo papel foi fundamental (DEL PRIORE, 2014, p. 78).

A libertação da mulher não foi apenas uma ação ideológica, mas alterou e ampliou o seu controle sobre o corpo, tendo como marco desse momento a descoberta da pílula anticoncepcional. A década de 1970 foi uma época áurea da sexualidade feminina, pois foi uma janela entre duas enfermidades mortais decorrentes da prática sexual: a sífilis do século XIX e o HIV do século seguinte. Pela primeira vez, em muito tempo, o sexo primava sobre o amor, e a hipocrisia inerente ao modelo anterior de casamento estava sendo desqualificada (DEL PRIORE, 2006).

Na TV, em 1980, o seriado As Panteras deu início à divulgação de um modelo de corpo novo, que se denominou como modelo Barbie. A ideologia impregnada nessa boneca era de um corpo alto, magro e elegante, e que ensinava a mulher a gastar, a consumir, ao contrário do conceito embutido nas bonecas antigas, que ensinava a menina a ser materna. O comportamento feminino após o seriado Panteras (para as mulheres), e após a divulgação da Barbie (para as meninas) é alterado de sobremaneira, e estas passam a ficar interessadas na ideia de poderem realizar tratamentos estéticos (massagens, academias, exercícios, drenagens, limpezas, silicones etc.).

O curioso é que essa linha ideológica da mulher pantera que vive a sua sexualidade em plenitude parece não ter se sustentado, e o comportamento e discurso da mulher, como se regredisse, volta-se novamente para o conforto do lar. Na mídia, as chamadas revistas femininas ensinavam nas manchetes: “Como manter o seu casamento! Como pegar seu marido pelo estômago?” (RAGO, 2003).

A década de 1980 explodiu em violência. Del Priore (2006) cita que os crimes contra a mulher nesse período multiplicaram-se e eram amplamente divulgados pela mídia. A violência doméstica marcada por crimes passionais, uma marca traumática na história do corpo e da sexualidade da mulher brasileira na década de 1990. O corpo da mulher ganhou uma imagem de produto vendável ao turismo sexual.