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4 PESQUISAS SOBRE TRADUÇÃO DE LÍNGUA DE SINAIS Neste capítulo situaremos a produção acadêmica das teses e

4.1 OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO SOBRE LÍNGUA DE SINAIS NO BRASIL

4.1.2 As dissertações sobre tradução de língua de sinais

Apresentar, contextualizar e problematizar as dissertações em tradução de língua de sinais compreendidas entre o período de 1990 a 2010 é falar de um processo em emergência, visto que temos o registro de apenas quatro dissertações. A seguir, com o intuito de visualizar melhor as produções realizadas em tradução de língua de sinais, propusemos a divisão de períodos, tal como realizada no capítulo 3 desta tese. Cabe ressaltar que o texto foi organizado na perspectiva de apresentar os principais pontos levantados pelas pesquisas realizadas nas dissertações, mas também as implicações que os resultados podem trazer para a formação de tradutores e da evolução desta subárea.

Nesse sentido, discutimos ao longo do texto algumas tendências preliminares que foram constatadas durante o processo de análise das dissertações. Com esse intuito, poderemos nos capítulos posteriores contextualizar alguns dos elementos com que os estudos sobre TILS podem contribuir para os Estudos da Tradução de forma geral. Dessa forma, a apresentação das dissertações sobre tradução de língua de sinais foi organizada em dois momentos, de acordo com o número de publicações existentes. O primeiro período foi composto pelas dissertações produzidas de 1990 a 2000, o que consistiu em apenas uma pesquisa, e o segundo foi organizado com as dissertações produzidas de 2001 a 2010, sendo que apenas três pesquisas foram registradas — todas no ano de 2010.

4.1.2.1 Período de 1990 a 2000

Com relação a dissertações produzidas entre os anos de 1990 e 2010, registramos apenas uma pesquisa: Ramos (1995), que tratou de uma proposta de tradução cultural, a partir da interface entre a língua de sinais e a Literatura. Essa foi uma das primeiras dissertações sobre tradução de língua de sinais da qual temos registro, inaugurando novos olhares e até mesmo dando os primeiros passos da institucionalização desta subárea no ensino superior. Ramos (1995) desenvolveu a fundamentação teórica detalhando aspectos como: história dos estudos da linguagem, a problematização dos conceitos de linguagem e língua no século XX e a justificativa da Libras como língua. Ainda que tal afirmação não esteja explícita na pesquisa da autora, foi possível observar o percurso da investigação nesta primeira parte do referencial teórico. Ou seja, pesquisar sobre a tradução cultural e os procedimentos adotados no processo tradutório que envolvia Libras é argumentar primeiramente sobre pesquisas que envolvem a história da linguagem. Em outras palavras, é explicar e fundamentar para o sistema acadêmico por que a língua de sinais é uma língua natural.

Isto não ocorreu apenas na pesquisa de Ramos (1995), pois, conforme foi mencionado no capítulo 3, esta tendência foi frequente em grande parte das teses e dissertações sobre TILS analisadas até o ano de 2010. É como se devêssemos revisitar o passado, buscar argumentos que justifiquem e autorizem a presença da língua de sinais e da educação de surdos no meio acadêmico no início da década de noventa. Visto sob outro prisma, os mesmos discursos históricos sobre a língua de sinais funcionaram como reinvenção da própria língua e da educação de surdos. Articulados aos estudos sobre a linguagem, tais referenciais ampliaram a abrangência teórica e de análise das pesquisas sobre tradução dessa época, desconstruindo tradições que insistiam em subalternizar e normalizar as pessoas surdas, assim como, sua língua. Embora não tenha sido mencionada por Ramos (1995), inferimos que uma das formas de reinventar a educação de surdos, a Libras, a tradução de língua de sinais pode ser percebida por meio da interface com o campo da Literatura. Os processos de tradução em língua de sinais por meio das traduções culturais propõem novos olhares, novas formas de perceber a língua de sinais.

As traduções culturais também podem servir como resistência de um determinado grupo no sentido de preservar marcas culturais e tradutórias importantes naquele público ou local. Nosso argumento é de que a tradução, além de ser um processo de aproximação cultural e

linguístico entre dois grupos, pode ser também um processo de “contra- resposta” cultural e linguística exercida por grupos que ora estiveram em posições de subalternidade. Costa (2007) foi uma das pesquisas que exemplificou essa perspectiva que estamos abordando, pois como o próprio título assinala (“Traduções e marcas culturais dos surdos capixabas: os discursos desconstruídos quando a resistência conta a história”), a pesquisa buscou por meio das narrativas dos participantes da investigação elencar outras formas de tradução que os surdos colocam em cena em seus cotidianos.

Essas formas de observar as traduções e as respectivas posições de poder que elas ocupam ou que ao mesmo tempo engendram determinadas concepções ou ainda os impactos que determinadas formas tradutórias causam em diversos grupos são também interesses de pesquisadores em Estudos da Tradução. Esses pesquisadores primam suas análises pelas decisões tradutórias que foram tomadas em determinados textos e as razões que possivelmente motivaram o tradutor a tais escolhas. Tais investigações se articulam aos estudos pós- colonialistas, possíveis diálogos para além da técnica e dos exercícios tradutórios. Ou seja, o papel que as traduções desempenham na formação de determinados países ou grupos e as relações de poder implicadas nesse processo podem oferecer elementos para a formação de tradutores e intérpretes, afinal é preciso refletir sobre as tensões e negociações aí envolvidas.

Essas formas de recepção das traduções variam de acordo com as diferentes filosofias que concebem a educação de surdos nos mais diversos países, pois podem visibilizar escolhas tradutórias mais próximas dos textos-fonte ou dos textos-alvo. Nesse sentido, uma das seções na pesquisa de Ramos (1995) tratou da filosofia educacional do bilinguismo para surdos57 e contextualizou as raízes históricas das

57Atualmente, este ainda é um tema espinhoso para o Brasil, pois o país se depara com o

paradoxo em relação às políticas linguísticas em torno da língua de sinais. De um lado, vários investimentos empregados na promoção da Libras, como: oficialização da lei de Libras 10.436/02, regulamentação do decreto 5626/05, criação de cursos superiores como o Letras- Libras, implementação da disciplina de Libras nas licenciaturas do ensino superior e cursos de Fonoaudiologia, entre outras ações governamentais. Por outro lado, o ensino fundamental e médio carece de políticas linguísticas de atendimento efetivo para os surdos atendidos nesses contextos, que frequentemente se deparam com problemas de infraestrutura, como demanda de profissionais qualificados para o exercício das funções para as quais foram contratados, demanda de materiais bilíngues que possam subsidiar as práticas pedagógicas, e com tantos outros agravantes no sistema público brasileiro. Em razão desses problemas observados é que se criou a Proposta de Política Nacional de Educação Bilíngue para Surdos, resultado das

línguas de sinais e a história da datilologia. Além disso, um pequeno relato foi apresentado sobre a educação de surdos no mundo, mencionando países como Austrália, Alemanha, Holanda, França, entre vários outros tratados ao longo do trabalho. Por fim, a autora encerrou a seção tratando da realidade do Brasil com relação à educação de surdos e a questão do biculturalismo.

Nesse contexto, Ramos (1995) optou pela tradução de Alice no

País das Maravilhas, uma tradução interlingual (de uma língua para

outra língua, no caso Inglês/Português para a Libras). No entanto, o clássico também é constituído por aspectos semióticos que são tratados na pesquisa de Ramos (1995) a partir de fundamentos semiológicos, tomando como base principalmente os estudos58 de Propp (1977) e Greimas (1975). Em um segundo momento, Ramos (1995) apresentou uma incursão profunda no objeto de sua pesquisa, a saber: a personagem Alice a partir de diferentes perspectivas e leituras realizadas, contemplando temas como: uma abordagem histórica, o conto de fadas e Alice, uma visão psicanalítica sobre essa personagem, o encontro de Alice com a filosofia.

Com a intenção de sorvermos também em nossa língua materna, o português, o vigor da narração carroliniana e além disso, como mais um subsídio para nosso trabalho futuro de tradução cultural para a LIBRAS, realizamos uma tradução pessoal. […] optamos por fazer nossa leitura seguindo a ordenação dos capítulos para facilitar o trabalho futuro de tradução cultural e adaptação do texto,

reivindicações dos cidadãos surdos representados pela FENEIS. Conforme consta na apresentação dessa proposta, em sua página 4: “As propostas que se seguem apresentadas, além das Escolas Bilíngues, reivindicam outras propostas que precisam ser incluídas e implementadas para o sucesso da proposta global de uma Política Nacional de Educação Bilíngue para Surdos. Entre outras reivindicações, propõe-se a instituição e nomeação, pela Presidenta Dilma, de uma equipe/comissão que terá a responsabilidade de traçar essa Política Nacional de Educação Bilíngue para Surdos no país, em conjunto com os Ministérios da Educação, da Saúde, dos Direitos Humanos e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com representação institucional da Feneis, que é a entidade civil nacional representativa dos

surdos brasileiros”. Disponível em:

https://docs.google.com/file/d/0B8A54snAq1jAVnRnWUVXOGxBQ3M/edit.

58 Não é nosso objetivo descrever detalhadamente os estudos desses autores, pois tal descrição

foi realizada na pesquisa de Ramos (1995). No entanto, no intuito de contextualizar o leitor, de acordo com Ramos (1995, p. 87) “Podemos dizer, a grosso modo [sic], que estes trabalhos que se realizam a partir dos pressupostos teóricos de Greimas estão na linha da semiótica, de fundamentação filosófica estruturalista [sic].”

destacando blocos de sentido que denominamos genericamente de jogos. Nossa proposta é, então, a criação de um texto poético-literário em LIBRAS. (RAMOS, 1995, p. 27)

A pesquisa de Ramos (1995) apresentou características comuns ao gênero da tradução comentada, pois foi realizado todo um projeto de tradução, sendo que Ramos (1995) faz um estudo detalhado do texto- fonte. Em seguida, as decisões tradutórias são justificadas à luz dos fundamentos semiológicos, tomando como base principalmente os estudos de Propp (1977) e Greimas (1975). O texto apresentou reflexões detalhadas do processo de tradução, mostrando exemplos sobre os resultados da tradução cultural e comentando as escolhas realizadas na pesquisa. Um exemplo disso ocorreu na passagem em que Ramos (1995) realizou algumas pontuações sobre o nível sintático e a inversão sintática de elementos de uma determinada frase encontrados no processo de tradução.

Do cats eat bats?/Gatos comem morcegos?" e "Do bats eat cats?/Morcegos comem gatos?. Infelizmente na tradução para o português é impossível manter o jogo da maneira como proposto pelo autor, mas em LIBRAS os dois sinais acontecem na face do falante e com o apoio dos dedos indicador e polegar, o que poderá restabelecer a brincadeira. (RAMOS, 1995, p. 129)

A inversão sintática realizada como estratégia de tradução para a Libras (texto-alvo) conseguiu atender a brincadeira que tinha sido estabelecida no texto-fonte. Esse é um dos motivos que, associados à descrição do projeto e dos processos de tradução, aos procedimentos adotados durante as diversas etapas, aos comentários que embasam os resultados, assinalam características importantes e mais comuns no gênero da tradução comentada. Não é possível atribuir uma metodologia fixa para a produção de uma tradução comentada, pois o tradutor trabalha com a autonomia de decisões em seu processo de tradução. Williams & Chesterman (2002, p. 7)59 afirmam que a: