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As entrevistas com os usuários

No documento ramonsilvacosta (páginas 61-64)

2 CAMINHOS METODOLÓGICOS

2.9 As entrevistas com os usuários

A entrevista é um instrumento qualitativo para a coleta de dados, que depreende a interação entre o entrevistador e seus entrevistados. Desse modo, as entrevistas permitem a reunião de dados mais complexos para uma exploração em profundidade (MARCONI; LAKATOS, 2011, p. 280). Esse foi justamente o objetivo das entrevistas no presente trabalho: aprofundar o que foi coletado pela observação dos perfis no app.

Nesse sentido, criei um roteiro de entrevista semiestruturada (APÊNDICE A), que consiste em um esquema de perguntas para conduzir as entrevistas, mas que não objetiva uma aplicação categórica, isto é, não necessariamente precisa ser seguido em ordem, bem como, compreende a possibilidade de questionamentos extras ou suprimento e modificação de algumas questões, levando em conta as especificidades dos entrevistados e as condições em que ocorreu cada entrevista.

A entrevista foi dividida em duas partes. A primeira objetivou compreender a forma como o usuário utiliza o Grindr e suas percepções acerca do app, enquanto a segunda parte

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NSFW é uma abreviação do termo inglês "Not Safe for Work" que significa "Não seguro para o trabalho". É uma gíria utilizada na internet como uma indicação de alerta para conteúdos impróprios para serem visualizados em locais públicos ou no local de trabalho, por exemplo, fotos contendo nudez, as chamadas nudes.

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A Profilaxia Pré-Exposição ao HIV é um método de prevenção à infecção pelo HIV. A PrEP consiste na tomada diária de um comprimido que impede que o vírus causador da aids infecte o organismo, antes de a pessoa ter contato com o vírus.

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visou à compreensão acerca da perspectiva dos entrevistados sobre seus direitos e possíveis violações que tenham sofrido ou venham a sofrer no app. Os resultados das entrevistas foram analisados por meio da TFD, seguindo as três etapas de codificação dos dados, assim como

foi feito em relação à observação.

As entrevistas ocorreram no período de julho a novembro de 2019. Foram 37 entrevistados, com idades entre 18 e 58 anos, sendo 14 entrevistas presenciais e 23 feitas por meio de chamadas de vídeo no Whatsapp, Skype e Gmail. A opção sobre a forma e local que a entrevista ocorreria ficou a cargo dos entrevistados para que a entrevista ocorresse da maneira mais confortável possível para eles. Os horários das entrevistas também foram estipulados pelos entrevistados, sempre que possível tentei conciliar com os meus horários. O tempo de duração das entrevistas variou. A entrevista mais extensa foi por vídeo-chamada e durou uma hora e dez minutos, enquanto a mais curta durou apenas dezesseis minutos e foi presencial. Mas, em geral, as entrevistas duraram o tempo previsto de 20 a 30 minutos.

A seleção dos entrevistados se deu de forma aleatória, convidei todos os 100 perfis observados para a entrevista, mas não obtive resposta de todos e parte deles não aceitaram participar da pesquisa. Os indivíduos que aceitaram participar foram sendo entrevistados, até que os dados mostraram uma saturação, com a repetição dos tipos de respostas para as mais diversas perguntas. Assim, optei por finalizar as entrevistas. O processo para alcançar esse número foi extenso, tive que insistir em alguns casos e esperar até que fosse possível o encontro com alguns entrevistados.

Um exemplo das diferenciações entre a população foram dois participantes que com a justificativa de serem casados apenas aceitaram ser entrevistados de forma presencial, sem que houvesse a gravação de áudio. Em outras ocasiões, participantes optaram por meios digitais, quatro deles pediram para desligar a câmera durante a conversa por se sentirem envergonhados. Em relação às entrevistas presenciais, por exemplo, nove delas ocorreram na UFJF por escolha dos entrevistados. As únicas limitações que estipulei quanto aos locais de entrevistas foram a minha casa e a casa dos entrevistados, pois tive receio que ambientes extremamente pessoais dificultassem a aplicação do instrumento. Esses exemplos demonstram meu exercício de adaptação ao campo, pois em alguns momentos as técnicas preliminarmente pensadas, como o uso do gravador do celular ou câmera do computador, não foram aplicáveis. Além disso, foi preciso me adequar às necessidades e opções de cada entrevistado.

Jeanne Favret-Saada (1990) descreveu em sua experiência67 como “ser afetado”. Esta afetação para qual a pesquisadora chama atenção refere-se ao lugar dos afetos no campo de pesquisa e nas interações humanas. Ela discute a importância em se deixar ser afetado pelo campo como uma forma de conduzir a pesquisa e obter resultados satisfatórios. A minha experiência com as entrevistas me proporcionou uma interpretação semelhante sobre o campo. Antes de começar a entrevistar os usuários do Grindr eu já carregava percepções da minha própria experiência enquanto utilizador de redes de relacionamento, mas a partir da interação com os entrevistados fui afetado por dimensões que desconhecia e que foram cruciais para esta pesquisa.

Compreender as formas de uso do app por diferentes homens, a partir de suas experiências e perspectivas foi o que impulsionou a efetividade do método. Conheci realidades distantes da minha experiência, como homens que se relacionam com outros homens em sigilo, homossexuais que temem que a homossexualidade se torne pública em virtude da família ou do ambiente de trabalho, pessoas que sofreram graves violências homofóbicas no app e em espaços não digitais, usuários que são perseguidos, chantageados e assediados, dentre outras realidades. Esses são apenas alguns exemplos que me afetaram na condução desta pesquisa e contribuíram em sua constituição.

As minhas interações com os entrevistados foram diversas. Alguns compreenderam a proposta e mostraram-se totalmente interessados em contribuir, outros renderam muito pouco, fornecendo respostas objetivas e pouco reflexivas. As reações e comportamentos dos interlocutores também variaram, ocorrendo situações como paqueras, investidas sexuais, ironias, piadas, dentre outras, que funcionaram como momentos de exercício de maleabilidade na aplicação do método de pesquisa. Foi preciso dar espaço aos usuários para que falassem e também respeitar suas limitações. Tive que ouvir sobre as experiências e frustrações sexuais e amorosas dos entrevistados, segurar, ou não, o riso, quando me contavam algumas histórias engraçadas, ou até mesmo a emoção diante de histórias de superação ou violência. Ouvir foi o maior exercício de todos, e esta posição, até então pouco comum em minha vida, foi essencial para que eu captasse a perspectiva dos interlocutores e distanciasse às minhas próprias percepções em um limite razoável.

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A partir de sua pesquisa sobre feitiçaria no Bocage francês, a pesquisadora centralizou uma discussão sobre os afetos no campo de pesquisa, propondo uma reinterpretação destes na Antropologia, tendo em vista sua constatação que a literatura anglo-saxã demonstrava ignorá-los ou nega-los na experiência humana. Favret-Saada discute a possibilidade de ser afetado no campo de pesquisa e de que forma isso configura um importante papel em pesquisas empíricas (FAVRET-SAADA, 1990).

3 A SOCIEDADE DIGITAL, O MERCADO DE DADOS E AS REDES DE

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