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As escolas como espaços sociais de interação: tentativas de tipificação.

Parte I: Reflexões sociológicas para a construção de um marco teórico “Como reconstruir as bases de uma ciência social

3. François Dubet e Nancy Fraser: um diálogo possível.

3.2. Dubet e a Sociologia da Experiência.

3.2.1. As escolas como espaços sociais de interação: tentativas de tipificação.

O reposicionamento das escolas a partir da sociologia da experiência e a partir da teoria da justiça de Fraser permite, em grande medida, a superação da dicotomia entre a escola como aparelho ideológico do Estado e como instrumento da reprodução social de um lado, e como espaço de transformação e de construção de liberdade e autonomia do outro.

A teoria da justiça de Fraser nos permite não apenas definir parâmetros para o mapeamento do cenário social encontrado nos espaços escolares, como também definir um horizonte possível, de ampliação de justiça social, a partir da educação escolar. Pensar as escolas e a educação formal a partir das três dimensões de injustiça propostas pela autora abre amplas possibilidades explicativas e interpretativas do mundo social das escolas, reconhecendo-o como um campo essencialmente político. Isso abre a possibilidade de uma abordagem da educação escolar a partir de um paradigma de transformação, comprometido com a superação das desigualdades e das injustiças sociais em suas dimensões econômicas, cultural-simbólicas e políticas.

Do ponto de vista da sociologia da experiência, nesse cenário – estruturado sobre injustiças – convergem, articulam-se e se combinam, na experiência de cada sujeito, todas as lógicas de ação propostas por Dubet: a integração, a estratégia e a subjetivação – e as lógicas de ação decorrentes dos sistemas de princípios e estruturas que governam nossa sociedade – o capitalismo, o racismo e o patriarcado.

A escola é o espaço social em que todas essas lógicas de ação convivem e se conflitam permanentemente. É, ao mesmo tempo, um instrumento de socialização que reproduz e reforça as desigualdades estruturantes da sociedade, concebido e dirigido pelo Estado, no qual opera a lógica da integração tanto no funcionamento das escolas, quanto no comportamento padrão esperado e adotado pelos atores que nela interagem.

É também, ou pelo menos se propõe a ser, um instrumento de mobilidade social, voltado para a formação de uma classe trabalhadora produtiva, que atenda às exigências do mercado, no qual também opera a lógica da estratégia. E é, além disso, um espaço de construção de subjetividades em oposição direta e permanente com a ordem hegemônica, no qual opera a lógica da subjetivação.

Lócus privilegiado da experiência social, espaço de eclosão de tensões e conflitos e de permanente mediação e combinação entre as diferentes lógicas propostas por Dubet, a escola se torna tanto um poderoso instrumento de reprodução de hegemonias, quanto de ruptura de hegemonias. Os resultados serão diferentes conforme diferirem as combinações e as mediações entre as três diferentes lógicas.

Abordaremos aqui, em mais detalhe, as três lógicas propostas por Dubet, de modo a aprofundar a caracterização da escola como um espaço social, propondo uma tipificação que parte da sociologia da experiência e da dimensão do funcionamento interno desse

espaço. No próximo capítulo (4), voltaremos às escolas, mas dessa vez para situá-las como instituições inter-atuantes com os demais espaços e instituições sociais.

Wautier (2003: 187) elabora, a partir da obra de Dubet, um quadro em que organiza as lógicas de ação em torno dos seguintes eixos: sistema social; mecanismos de articulação entre lógicas e sistemas de ação; e dimensão essencial da vida social. Ela situa as instituições como dimensões essenciais da vida social segundo a lógica da integração, sendo a socialização o mecanismo de articulação entre diferentes lógicas e sistemas. O sistema social organizado a partir da lógica da integração é o sistema de integração, que “fornece ferramentas culturais e sociais para construir uma lógica de integração”, sendo a ação determinada e derivada do próprio sistema.

Traduzindo esse esquema para um tipo ideal de escola e de processo de escolarização, teríamos a escola reprodutora no modelo proposto por Bourdieu e Passeron. Assim, ao predominar a lógica da integração, podemos pensar em uma escola de caráter reprodutor e, portanto, conservador. Como resultado, uma escolarização que tende a reproduzir as condições sociais hegemônicas, suas desigualdades e normas.

No quadro de Wautier, a lógica da estratégia constrói um sistema de interdependência entre ações individuais que funciona a partir de um “modelo de racionalidade limitada”. Aqui, “o sistema deriva da ação, produto de condutas individuais”. O mecanismo de articulação predominante é o do jogo e a dimensão essencial da vida social associada à lógica da estratégia é a das classes sociais.

Pensar em um segundo tipo ideal de escola a partir da lógica da estratégia nos conduz à educação mercadológica, voltada para a formação de quadros técnicos e profissionais e orientada pela meritocracia e pela ideia de esforço individual e de construção individual do sucesso escolar. Essa escola tenderia a reproduzir, de um lado, elites educadas e, por outro, abriria espaço para a mobilidade e ascensão social de jovens de classes populares, tendo também, portanto, um caráter conservador.

A noção da mobilidade social como um elemento de transformação deve ser considerada nesse cenário. Em um contexto de profunda desigualdade social como o enfrentado no Brasil, a possibilidade real de que a educação abra possibilidades de ascensão social e que, com isso, refaça o desenho de nossa sociedade pode ser reorganizadora de nossa estrutura social em sua dimensão econômica.

No entanto, a redefinição das estruturas econômicas e de classe da sociedade não implica na redefinição das estruturas culturais e políticas dessa sociedade. Portanto, se entendemos as transformações sociais como produtoras de justiça social ampliada, há que se considerar as limitações dessa mobilidade para a ruptura com outras estruturas e sistemas produtores de desigualdades – o sistema racista e o sistema patriarcal, por exemplo.

Há, no entanto, um conjunto de políticas de ação afirmativa que pode compor uma estratégia de intervenção que, ainda que mantendo a lógica da estratégia, incorpore também outras dimensões das desigualdades. Assim acontece, por exemplo, com o caso das cotas raciais nas universidades públicas. Trata-se de uma política fundada na lógica da estratégia, que enfrenta o princípio da meritocracia dialogando com ele, ponderada pela compreensão de que o racismo se impõe como dimensão inescapável e estruturante de nossa sociedade e de nosso sistema educacional, exigindo intervenção direta e específica. A política de cotas refuta a crença na igualdade de oportunidades na qual está fundada a meritocracia, propondo-se a corrigir, de maneira imediata e emergencial, a injustiça que inviabiliza qualquer possibilidade de igualdade.

Finalmente, a lógica da subjetivação aparece, no quadro de Wautier, vinculada ao

sistema de ação histórica. “Existe tensão entre comunidade e mercado, entre cultura e

relações sociais de dominação: tensão que fornece elementos para uma crítica da sociedade” (2003:187). O mecanismo de articulação preponderante é o da tensão dialética, a partir da qual se estabelece a luta contra a alienação (de si mesmo). A dimensão essencial da vida social associada à lógica da subjetivação é a cultura.

A noção de alienação em Dubet se refere, como já vimos, a um processo de alheamento de si mesmo experimentado pelo indivíduo desencantado, estranho ao sistema. Ao falhar a integração, abre-se o processo de estranhamento e de deslocamento do ator/sujeito em relação à estrutura. E a reconstrução de vínculos, sentidos e repertórios sociais possíveis apenas será possível caso o processo de subjetivação se complete, no sentido da construção de sujeitos com identidades autônomas, porém capazes de dialogar com o sistema.

A escola é um espaço fortemente integrativo, no sentido de Dubet. No entanto, é, ao mesmo tempo, um espaço institucional de alta permeabilidade social, atingido cotidianamente por toda a sorte de conflitos e tensões presentes nos demais espaços sociais

e também na subjetividade dos indivíduos que ali interagem. Neste espaço, portanto, temos dois cenários possíveis, pensando a partir da lógica da subjetivação.

O primeiro seria o do fracasso escolar pela impossibilidade de vencer a alienação. A identidade dissociada não se recompõe e a integração se inviabiliza. O segundo seria o da reconstrução da identidade dissociada e da construção da identidade autônoma bem- sucedida. Este é um cenário em que a dissociação subjetiva é superada por uma construção identitária que recupere o sentido estratégico da educação (garantindo o sucesso escolar

stricto sensu) e que desenvolva mecanismos de integração a partir de uma subjetividade

situada e posicionada politicamente na sociedade. Quer dizer, o sujeito dissociado se redefine como sujeito na medida em que se percebe politicamente situado em um contexto social particular. E é precisamente este o processo que nos interessa aqui.

Nossa hipótese, em realidade, está fundada no entendimento de que (i) a alienação, no sentido de Dubet, somente poderá ser superada por meio de um processo de subjetivação que se apoie na construção política da subjetividade e, portanto, na construção de identidade; (ii) esses processos de subjetivação e de construção de identidade tem forte potencial disruptivo e podem ser geradores ou disparadores de transformações sociais; (iii) as escolas são instituições sociais privilegiadas para a condução desses processos, uma vez que se prestam à socialização e à construção da cidadania de um Estado, mediando permanentemente subjetividades e hegemonias sociais; indivíduos e estruturas.

O fato de o primeiro cenário – o do fracasso escolar – ter-se tornado tendência hegemônica nas escolas públicas brasileiras sinaliza para a necessidade de se repensar a escola a partir da lógica da subjetivação.

3.3. A articulação entre a sociologia da experiência e a teoria da justiça social: um