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Parte III: Trajetórias escolares

6. Caminhos e escolhas metodológicas.

6.1. Recuperando conceitos e abordagens.

A tensão entre ação e estrutura nas formulações da Sociologia contemporânea sobre a vida social é central para o desenho desta tese, seja do ponto de vista conceitual, seja do ponto de vista metodológico. Na verdade, buscamos, nos capítulos anteriores, imbricar o conceitual e o metodológico de maneira tal, que um não fizesse sentido sem o outro. Ou seja, a metodologia de pesquisa desenhada pediu o referencial teórico construído, na mesma medida em que este último ajudou a dar formas ao primeiro.

A composição do caminho metodológico adotado nesta pesquisa apoiou-se no pensamento de alguns autores, dentre os quais se destacam Fraser (1997) e Dubet (1994). As abordagens de Latour (2004, 2005), Lahire (2002, 2004), Giddens (1989), Bourdieu (1980) e Sewell (1992) também adquiriram relevância e responderam a inquietações e lacunas importantes, tanto no desenho da pesquisa, quanto no desenho do percurso interpretativo adotado.

De Latour (2004, 2005) e de Lahire (2002, 2004), tomamos de empréstimo a noção de que é a própria realidade estudada que deve orientar a pesquisa e as reflexões sobre a realidade social abordada. É preciso atentar para o que essa realidade e para o que os sujeitos que a constroem e que nela atuam comunicam para que se possa recorrer ao instrumental explicativo mais apropriado para entendê-la.

Latour, especificamente, fez ecoar a ideia de colocar foco nos rastros das ações, em lugar de observar suas causas. O estudo de trajetórias dialoga com essa abordagem, na medida em que parte das narrativas dos próprios sujeitos para identificar, em nosso caso,

como se processam ações disruptivas e processos de transformações sociais por elas desencadeados.

As narrativas de cada uma das cinco trajetórias pesquisadas nos oferece precisamente isso: rastros para a compreensão de como se processam as ações disruptivas no caso do Projeto Onda. A construção de relações de causalidade entre as trajetórias e as rupturas e transformações sociais não está, contudo, totalmente abandonada. Mas o foco prioritário nos rastros e no como, em lugar das causas e dos porquês, nos permite olhar para os sujeitos reconhecendo-lhes a autonomia de ação que acreditamos que eles, afinal, têm. Significa também manter-se o máximo possível afastada de grandes generalizações e da pretensão de uma grande receita de transformação social, possível de ser replicada em qualquer situação com quaisquer sujeitos.

Queremos entender como se processam as transformações que as rupturas produzidas a partir do Projeto Onda desencadeiam. Queremos entender como os sujeitos se movem e processam essas rupturas e transformações em suas próprias vidas e experiências sociais. Porque as rupturas e as transformações existem – elas eclodem pelo mundo social e no espaço escolar o tempo todo, em dimensões, intensidades e níveis diversos. Como elas ocorrem e como elas podem ser multiplicadas a partir de ações deliberadamente transformadoras – as ações disruptivas – é o que queremos investigar.

Da mesma forma, entendemos que as estruturas e os sistemas sociais também existem e se fazem sentir no mundo e na vida social, também com intensidades variadas, muito a depender, precisamente, de sua apreensão e interação com os sujeitos sociais. Reconhecer o lugar das estruturas e sistemas na vida social nos conduziu ao diálogo com Lahire (2002, 2004), em primeiro lugar.

Ao propor que a ação social parte de disposições carregadas de história e de contexto, e que sua leitura e interpretação deve partir sempre do individuo, Lahire (2004) dá centralidade aos sujeitos ao mesmo tempo em que os situa em um mundo social, em nossos termos, polissêmico, polifônico e multivalente – quer dizer, repleto de sentidos, de vozes e com múltiplas possibilidades de combinações entre seus elementos constitutivos. Entender como as disposições se desdobram em ações é o que inquieta Lahire e é também, em grande medida, o que nos inquieta.

Essa inquietação faz com que o autor conduza suas investigações com foco nas histórias de vida dos sujeitos. São mergulhos de grande profundidade e complexos esforços

de decodificação dessas histórias – dos dispositivos para a ação que ele localiza nelas. Não fomos tão longe, ainda que tenhamos sido profundamente inspiradas pelos estudos desse sociólogo francês.

Bourdieu (1980) e Giddens (1989) nos emprestaram elementos para aprofundarmos a reflexão e o entendimento acerca das relações entre os sujeitos e os sistemas e estruturas sociais. Mais radicais que Lahire no reconhecimento da presença inescapável das últimas na vida social, propõem duas noções fundamentais para nossas análises.

A primeira, proposta por Bourdieu (1980), refere-se à tendência à reprodução das condições sociais conforme organizadas em uma determinada ordem hegemônica. A compreensão dos mecanismos da reprodução de desigualdades sociais e o lugar da escola nesse processo é fundamental para abordarmos nosso objeto de estudo – ainda que nossa percepção relativize e flexibilize bastante a teoria da reprodução de Bourdieu. A segunda, apresentada por Giddens (1989), imprime maleabilidade às estruturas sociais, ao defini-las como “presenças espaço-temporais”.

Sewell (1992) articula, precisamente, essas duas propostas para construir um interessante modelo explicativo das mudanças sociais, baseado nos “axioma-chaves” (i) da multiplicidade de estruturas, (ii) da transposicionalidade dos esquemas, (iii) da imprevisibilidade da acumulação de recursos, (iv) da polissemia dos recursos e (v) da interseção de estruturas. O caráter maleável contido nessa noção de estrutura social é o que leva o autor a reconhecer o “risco” que ela corre a cada interação social.

Essa abordagem nos permitiu construir a proposta de que as transformações e as rupturas sociais são plurais – elas podem ocorrer em diferentes circunstâncias, em diferentes momentos, com diferentes intensidades. O que nos conduziu à melhor compreensão delas – das transformações e rupturas.

Buscamos, na compreensão do desvio e da transgressão, as chaves para a construção de um conceito de transformação social e de ação social de caráter transformador que pudesse fazer sentido para a interpretação das trajetórias e da experiência do Projeto Onda. Diferenciamos a transgressão do desvio, reconhecendo na primeira a intencionalidade que o segundo não carrega. Depois, identificamos transgressões individuais e coletivas, definindo nosso foco no segundo tipo, onde reconhecemos um maior potencial transformador.

E, pensando nessas ações transgressoras coletivas, de potencial transformador, propusemos o conceito de ação disruptiva, como sendo uma ação transgressora, com um

sentido intencional de ruptura com uma ordem social hegemônica e com um objetivo programado e compartilhado coletivamente de transformação social. É a partir desse

conceito que caracterizamos e analisamos o Projeto Onda e, mais especificamente, as trajetórias escolares estudadas.

Dialogando com Alexander (2003) e, de novo, com Lahire, entendendo ser necessário recuperar o cenário social no qual as ações disruptivas se desenrolam, propusemos ainda que as transformações sociais deverão variar de acordo com sua dimensão, suas propriedades de desenvolvimento e propagação, e seus resultados – afirmativos ou transformativos.

Percurso feito, alcançamos um ponto minimamente confortável no debate sobre a tensão ação e estrutura para pensar nas ações disruptivas e nas transformações sociais nos espaços de educação escolar e, mais especificamente, no Projeto Onda e nas trajetórias escolares pesquisadas a partir dele. Passamos, a partir daí, a um diálogo mais aprofundado com Fraser (1997) e Dubet (1994), autores que nos ajudaram a situar as escolas e as experiências sociais dos sujeitos nesta pesquisa.

Recuperamos a teoria da justiça social de Fraser (1997), sobre a qual nos debruçamos em dissertação de mestrado (Madsen, 2008), para emoldurar a leitura do contexto social no qual a escola brasileira está situada – um contexto marcado e definido por profundas desigualdades sociais, configuradoras de um cenário geral de injustiça social, conformado pelas dimensões econômica, cultural-simbólica e política. Dimensões que produzem expressões concretas – objetivas e subjetivas – dos sistemas racista, capitalista e patriarcal que organizam, hegemonicamente, a nossa sociedade.

São dimensões intersectantes e interdependentes, de forma tal, que apenas as transformações capazes de articular os três níveis de respostas serão capazes de produzir justiça social, efetivamente. Quer dizer, não bastam políticas redistributivas, quando não se alcança o reconhecimento das identidades e das desiguais experiências dos sujeitos que as vivem. Conforme argumentou Souza (2012), há uma dimensão econômica e uma dimensão política na ausência de reconhecimento, assim como a injustiça distributiva produz efeitos culturais e simbólicos, no nível do reconhecimento.

Essas dimensões, suas articulações e expressões, são aqui apreendidas, na análise do Projeto Onda e das possibilidades de transformação social que ele carrega, nas experiências sociais dos sujeitos entrevistados, absorvidas por meio de suas trajetórias escolares.

O conceito de experiência social, conforme definido por Dubet, é uma tentativa de, ao reconhecer na ação dos sujeitos as chaves interpretativas do transcorrer da vida social, ser capaz de articulá-la com as demais dimensões da sociedade, seus sistemas e suas estruturas, de modo a compreender, afinal, como cada sujeito age socialmente e como, a partir daí, a sociedade se organiza.