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Contornos da educação escolar no Brasil contemporâneo.

Parte II: Reflexões sociológicas sobre a educação escolar no Brasil

5. Educação e escola no Brasil: você tem fome de quê?

5.2. Contornos da educação escolar no Brasil contemporâneo.

Como a realidade educacional brasileira se configura atualmente? E como se relaciona com as desigualdades observadas na sociedade de maneira ampliada? Nesta seção, sistematizamos leituras críticas acerca da educação escolar brasileira, de modo a encerrar o percurso histórico feito nesse capítulo.

Após um intenso processo de reformas educativas e de ampliação do acesso à educação básica, que conduziu as pesquisas do campo das políticas educacionais a um debate acirrado acerca dos seus sentidos e problemas, notamos, a partir do início dos anos 2000, uma ênfase no debate sobre a qualidade do ensino, sobre os impactos das desigualdades sociais nas trajetórias escolares e sobre o impacto das práticas docentes sobre a qualidade da aprendizagem nas escolas. Evasão escolar e repetência são consideradas problemas centrais do sistema educacional brasileiro hoje, e o sentido da escola como instituição social tem sido frequentemente questionado, particularmente no que se refere ao processo de escolarização de jovens no ensino médio.

Schwartzman (2005) identifica como os principais problemas da escola brasileira hoje, a (baixa) qualidade e a repetência. Busca explicar os altos índices de evasão entre alunos maiores de 15 anos, ainda que não considere as dimensões de raça e de classe em

35 O cálculo foi feito a partir da subtração simples entre os percentuais de cobertura para a população branca e a população negra, utilizando os valores totais para brancos e negros disponíveis no Retrato das

Gap entre jovens brancos e negros na cobertura escolar de crianças

e jovens35

Faixa Etária 1995 2002 2009

7 a 14 anos 6,3 pp 1,5 pp 0,5 pp 15 a 17 anos 8,9 pp 5,8 pp 3 pp

sua análise. Destaca a “participação ativa e a emancipação dos professores dos níveis fundamental, secundário e superior” como chave para a mudança desse cenário.

Peregrino (2010), por sua vez, chama a atenção para as conseqüências da ampliação do acesso das camadas populares à educação no Brasil e destaca as imbricações entre as desigualdades sociais e as desigualdades educacionais, situando as escolas no contexto mais amplo da sociedade em que estão inseridas:

“O ‘novo’ processo de escolarização das classes populares, que assegura acesso e adia a saída da instituição tornando mais extenso o tempo de ‘habitação’ da escola, vem criando novos circuitos no interior do espaço escolar, configurando novas vulnerabilidades no processo de escolarização e novos processos de marginalização. E, pensamos, em contrapartida, vem também remodelando a instituição” (pp. 62).

O fato é que, nem a evasão, nem a repetência, nem a qualidade do ensino podem ser explicadas ou sanadas olhando-se exclusivamente para o sistema educacional. Os problemas da escola estão também fora da escola – na mesma medida em que os problemas sociais estão dentro da escola. No entanto, conforme aponta Peregrino (2010), quando entram na escola, as desigualdades sociais se transformam, por meio de um perverso mecanismo de despolitização e de deslocamento da educação em relação à sociedade, em desigualdades escolares.

Bittar (2011), citando Arroyo (1992), sugere que a ausência de mudanças na estrutura da escola e dos processos educacionais que dessem conta de acompanhar a expansão do acesso ao ensino, terminou reforçando preconceitos, os quais, por sua vez, aprofundam o problema do fracasso escolar e reificam estigmas dentro e fora da escola. Considera-se que as classes populares estão fadadas ao fracasso escolar, e o fracasso escolar reforça o lugar subalternizado – da subcidadania (Souza, 2012) – dos integrantes das classes populares.

Paul e Barbosa (2008: 121), em estudo sobre as relações entre a qualidade docente e os bons resultados da escola, fazem o seguinte questionamento:

“É possível haver igualdade de oportunidades educacionais em sociedades altamente desiguais? Seria possível tornar os sistemas educativos mais igualitários, ao menos para reduzir a inércia que os leva a reproduzir as desigualdades iniciais?”

O estudo dos dois autores, assentado sobre a ideia de que bons professores são capazes de mudar a trajetória de seus alunos, analisa as características da atuação docente nas escolas para concluir que as escolas, ao alocarem os melhores professores nas “melhores” turmas, terminam por reforçar as condições de desigualdade enfrentadas pelos estudantes fora de sala de aula, eliminando a possibilidade de acesso a uma educação capaz de romper com certos padrões de desigualdades. É o que os autores chamam de “perversidade do efeito docente”:

“Se é inegável que os professores se constituem no fator decisivo do sucesso das trajetórias escolares, esses dados chamam a atenção para a necessidade de se investigar mais profundamente os efeitos específicos que os profissionais docentes têm sobre as tentativas de utilização dos sistemas escolares como instrumentos de democratização”. (Paul e Barbosa, 2008: 129).

Outra série de estudos investiga a relação do sucesso escolar com a classe social, rompendo com o senso comum de que estudantes de classes menos favorecidas tendem a fracassar na escola. Zago (2000:71-72) aponta para a “heterogeneidade das camadas populares” e sugere que estudos sobre sucesso e fracasso escolar “perdem em compreensão quando ignoram as relações de interdependência entre os elementos da realidade social”.

Brandão (2007), ao investigar a produção das elites escolares, chama a atenção para a relevância, encontrada nos resultados de sua pesquisa, da articulação entre diferentes aspectos institucionais das escolas, como a gestão das instituições e as relações entre pares, por exemplo, com elementos e experiências externas ao ambiente escolar – com destaque para a experiência familiar.

Mais recentemente, Brandão, junto com Canedo e Xavier (2012: 215), reafirma a articulação entre as instituições escola e família nos processos de escolarização. O estudo das autoras identificou “sinais de novas configurações no acompanhamento do ensino pelas famílias, um possível reflexo de alterações nos extratos médios da sociedade brasileira e no perfil das classes populares”.

A relação entre a família e escola também é abordada a partir da dimensão da produção do racismo na educação infantil por Cavalleiro (2012: 35), que pergunta: “Em que medida a escola está preparada para lidar com a questão étnica? A escola está

formando ou conformando os indivíduos a uma realidade já estabelecida, não possibilitando, assim, a alteração dessa realidade?”.

A autora destaca a produção do silêncio sobre o racismo no espaço doméstico, com a intenção de proteger e acolher a criança negra, já exposta ao preconceito cotidiano fora do lar, em articulação com o silêncio, dentro do ambiente escolar, sobre a experiência das crianças negras e sobre os efeitos do racismo sobre ela.

Silva (2001), por sua vez, ressalta o campo educacional como alvo prioritário da atuação política do Movimento Negro contemporâneo, apontando os estudos sobre o livro didático e o currículo escolar como os mais freqüentes. A autora afirma (2001: 66) que “é preciso compreender que a exclusão escolar é o início da exclusão social das crianças negras”.

Os efeitos do racismo na educação são percebidos na dimensão institucional do fenômeno, observada, por exemplo, nas taxas de escolarização mais baixas entre a população negra, quando comparada com a população branca, nos elevados índices de evasão escolar, especialmente do ensino médio, entre os jovens negros. E podem ser percebidos também nas dimensões interpessoal e subjetiva – e teremos a chance de aprofundar essa afirmação nas análises de algumas das trajetórias escolares pesquisadas.

O quadro abaixo revela que a taxa de escolarização36 para jovens negros e brancos,

do sexo feminino e masculino, não só cresceu no nível fundamental de ensino entre 1995 e 2002, como também teve revertido, em 2009, o gap entre brancos e negros registrado em 1995 e ainda em 2002.

No entanto, observamos no mesmo quadro o aumento do gap entre brancos e negros na taxa de escolarização do ensino médio no período de 1995 a 2002, para, no período seguinte, de 2002 a 2009, registrar queda, ainda que mantendo significativa diferença.

36 “A taxa de escolarização líquida fornece a proporção da população matriculada no nível de ensino considerado adequado conforme as seguintes faixas etárias: educação básica para menores de 6 anos (0 a 6 anos); ensino fundamental de 7 a 14 anos; ensino médio de 15 a 17 anos e ensino superior de 18 a 24 anos” (IPEA, 2014).

Tabela 3: Taxa de escolarização líquida, 1995/2002/2009.

Fonte: IPEA, Brasília: 2014.

O ensino médio é, de fato, a etapa do ciclo educacional que apresenta os maiores desafios hoje para a educação escolar brasileira. Não tendo alcançado ainda sequer os 90% de universalização, registra altos índices de evasão e de distorção idade-série, especialmente entre os jovens negros.

Paixão et alli (2010), apresentam vasta análise sobre as desigualdades raciais no campo educacional em seu Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-

2010. Referindo-se às inflexões na escolaridade média de homens e mulheres no período

de 1988 a 2008, destaca a mudança no indicador quando analisada a variável sexo: mulheres passaram a ter escolaridade média superior à dos homens em 2008. E acrescenta que, considerando-se a variável cor, o mesmo fenômeno não se observa, notando-se, ao contrário, a manutenção do padrão de desigualdade por todo o período. Afirmam os autores (2010: 218):

“Ao passo que , entre os grupos de sexo, ocorreu um momento de igualação e posterior superação da média de anos de estudos das mulheres em ralação aos homens, quando se analisam as desigualdades de cor ou raça no mesmo indicador, observa-se que no lapso 1988-2008 aquelas foram mesmo ampliadas”.

As análises aqui apresentadas acerca da realidade escolar do Brasil contemporâneo conformam o pano de fundo de nosso estudo das trajetórias escolares, ao qual nos

dedicamos na terceira e última parte desta tese. Destacamos os efeitos do racismo e das desigualdades de classe, aqui abordados, como dimensões explícitas nas narrativas apresentadas a seguir.

Recuperando as dimensões da justiça social propostas por Fraser (1997), podemos afirmar que a educação escolar brasileira, hoje, permanece deficitária e discriminatória no que se refere à distribuição do acesso e permanência na escola; ao reconhecimento, de parte das políticas educacionais, conteúdos curriculares e práticas docentes, das diversas identidades e das desigualdades que incidem sobre elas também nos espaços escolares; e à representatividade política dessas identidades nos espaços institucionais do sistema educacional.