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As escolas de samba de Florianópolis na década de 60

No documento FREDERICO FREIRE DE LIMA NEIBERT BEZERRA (páginas 58-65)

CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

1.3 Panorama do Samba-Enredo em Florianópolis

1.3.2 As escolas de samba de Florianópolis na década de 60

Em princípios da década de 60, as escolas locais não representavam qualquer hegemonia cultural no carnaval florianopolitano. Todavia, já em 1960, o concurso já apresentava uma separação entre as escolas de samba e os blocos, com os quais as escolas tem dividido as atenções dos jurados até hoje. Cabe ressaltar que várias outras “pequenas escolas” passaram a fazer parte do quadro, embora boa parte delas não permanece sem interrupções. Esses fatos contribuem para a cada vez maior disputa acirrada entre as duas “grandes escolas” da cidade: Protegidos e Copa Lord.

Outro grande passo dado pelo poder público ocorreu em 1961, quando da oficialização das escolas de samba e também dos blocos carnavalescos. Esse fato passa a demandar duas posturas: o controle sobre programação das entidades no período do carnaval, estabelecido pelo Setor de Turismo, ligado ao Departamento de Educação e Cultura do município. No mesmo ano, as apresentações dos “carros de mutação” das grandes sociedades, foram vistas pela imprensa como “um espetáculo deprimente” (TRAMONTE, 1995, p. 101). As escolas tornaram-se a “alma do carnaval”, e inclusive passaram a alcançar algum reconhecimento na

região sul do país, fato este comprovado pela participação da já citada Escola Filhos do Continente no Carnaval de Curitiba, em 1962, viagem esta que a fez desistir do concurso daquele ano em Florianópolis.

Os jornais locais já apontam desde 1957 a existência de concursos de músicas de carnaval, concursos estes que darão origem aos Festivais de Músicas de Carnaval, anos depois. Nestes festivais, era possível perceber a coexistência dos dois principais gêneros musicais do carnaval local, a marcha e o samba. Ao assumir que, neste período, a marcha se encontrava em pé de igualdade com o samba nos festivais, percebe-se que a importância da marcha – identificada com as classes mais abastadas economicamente – nessa sociedade refletia o peso social de outras classes que não se identificavam imediatamente com o samba. Relembrando o evidente eclipsamento das atividades culturais praticadas por negros em Florianópolis (SILVA, 2006), podemos perceber que o samba ainda precisaria de mais tempo para se afirmar nesta sociedade. E os respingos destas dificuldades de afirmação alcançariam também as escolas de samba.

Com o apoio do governo municipal e ainda de três empresas privadas para o Carnaval de 1968, os desfiles que se sucedem tendem, cada vez mais, a primar por um visual mais requintado e elaborado, alcançando neste mesmo ano, por exemplo, a inclusão de algumas das fantasias mais luxuosas no Baile de Gala Municipal, reduto no qual a elite local tinha um de seus meios de diversão. Esse exemplo contribui também para a perceptível penetração das escolas de samba em espaços cada vez mais amplos da sociedade, passando a ser reconhecidas, pelas próprias palavras do prefeito, como um “compromisso do poder público” (TRAMONTE, 1995, p. 115). E esse compromisso também significa a total dependência no que tange a aspectos financeiros dos desfiles, seja com dinheiro, seja como mediadora destes investimentos junto ao setor privado (idem). Os recursos advindos do município eram esperados com angústia pelas escolas, sem o qual nada poderia ser feito. Estabelecia-se, dessa forma, um circuito de pressões que tomaria como pilares a Escola de Samba, a Imprensa e o Poder Público.

Outro aspecto relevante é que, depois de mais de vinte anos de desfiles, o contingente de foliões que desfilava em média em cada Escola não ultrapassava os 230, como foi divulgado pela Escola Protegidos para o carnaval de 1971. Se compararmos com o universo de 1200 a 4000 pessoas que desfilavam nas escolas do Rio de Janeiro na mesma época, podemos assinalar que as diretrizes que permeiam os desfiles das escolas locais em nada se assemelha com as diretrizes cariocas já estabelecidas, onde já imperam sistemas organizacionais de desfile e quadros administrativos nestas entidades extremamente complexos. Os ideais de

gigantismo nas escolas de samba locais acabarão por ocorrer na década de 80, sendo necessárias algumas medidas propostas pelo poder público no intuito de torná-las geradoras de espetáculos (SILVA, 2006).

1.3.3 Legitimando o samba local Vejamos as seguintes citações:

O samba, composto em homenagem às outras quatro escolas louva o presidente norte-americano Kennedy e fala de preconceito racial [...] É a primeira vez que os jornais noticiam um samba feito especialmente para o desfile, prenúncio certamente dos belos sambas-enredo que os compositores locais produziriam. (TRAMONTE, 1995, p. 105)

No primeiro desfile [em 1955] a Copa Lord se apresentou cantando o samba-enredo

Exaltação a Tiradentes, que foi apresentado em 1949 pela escola de samba Império

Serrano, do Rio de Janeiro. Como já mencionado, as escolas de samba cariocas tiveram influência fundamental na formação do carnaval local. Prova disso é que nos primeiros desfiles em Florianópolis era uma prática comum as escolas desfilarem com sambas do Rio de Janeiro que haviam adquirido muita popularidade. A Copa Lord desfilou também em 1957 com Uma Romaria na Bahia, samba apresentado pela escola carioca Acadêmicos do Salgueiro em 1954 e com os sambas Recordar é

viver, Canário das Laranjeiras e A Fonte Secou, nos carnavais de 1961, 1962, 1963,

respectivamente. (SILVA, 2006, p.67-68)

Através da literatura relacionada ao carnaval florianopolitano, pode-se perceber o fenômeno apontado pelas duas citações: a recorrente utilização de sambas-enredo cariocas nos desfiles locais das escolas de samba.

De 1948 (data da fundação da segunda Escola de Samba da capital, a Protegidos da Princesa) até 1964 não se havia noticiado um samba enredo local que fosse feito especialmente para o desfile. É evidente que esse fato não pode ser levado como garantia de sua ausência até a presente data, mas, de qualquer forma, refere-se a uma prática que guarda possibilidades interessantes para sua interpretação.

Considera-se que o primeiro samba florianopolitano feito para desfile – acusado, curiosamente, pelo próprio autor, Abelardo Blumemberg, em seu livro Quem vem lá? A história da Copa Lord (2005, p. 22-23) – teria sido composto para o carnaval de 1956 da Escola Embaixada Copa Lord (a segunda escola mais antiga da cidade, atualmente). O fato é que essa “rarefação composicional” que durou mais de vinte anos gerou um hiato que só foi

superado, segundo o próprio trabalho de Cristiana Tramonte (1995), a partir dos anos 70, fato também destacado por interlocutores que consultei.14

Entretanto, mais intrigante é encontrar referências de outros tipos de samba sendo compostos na cidade, como nos mostra mais uma vez Tramonte ao chamar a atenção para os diversos Festivais de Músicas Carnavalescas, espaço destinado a sambas e marchas compostos para o carnaval (TRAMONTE, 1995, p. 95). Outras referências são os “sambas de quadra”, compostos por diversos autores locais (BLUMEMBERG, 2005). Visto que os primeiros eram obras que não necessariamente se identificavam com as camadas sociais que constituíam o universo do samba ilhéu, e os segundos, relacionados a obras que – como vimos no panorama carioca – não eram compostas e tampouco se destinavam ao desfile das agremiações, percebemos que os sambas cariocas constituíam a única manifestação musical no desfile dessas escolas.

Dessa maneira, o samba carioca pode ser entendido como uma prática cosmopolita, ou seja, amplamente reconhecida que confere a primazia estética atribuída a localizada onde surgiu – o Rio de Janeiro. É verdade que o samba possui definições e origens diversas, mas é sabido que a vertente carnavalesca assumida como samba-enredo é identificada unanimemente por sua insurgência carioca

Enquanto cosmopolita, a prática carioca consagrada serviu de base para sua colonização cultural, que se deu pela propagação do modelo plástico e musical constituinte de sua prática. Uma vez instalado em Florianópolis, o padrão artístico, como aponta Tramonte, sofreu muitas resistências devido ao contexto sócio-cultural local, que não tomou as práticas culturais afro-brasileiras como imagem auto-representativa daquela sociedade (TRAMONTE, 1995; SILVA, 2006). Desse modo, a utilização de sambas cariocas se tornaria uma estratégia inteligente, tanto por não se dispor de instituições tão articuladas a ponto de estabelecer alas de compositores como por não promoverem concursos próprios para a escolha de seus sambas. Ainda, o perfil dos sambas escolhidos para os desfiles representava o que havia de mais popular e consagrado na capital carioca. Sambas tidos como “clássicos” também contribuem para a aceitação do samba no âmbito local, podendo abrir caminho para a aceitação do samba do âmbito local, fato ocorrido décadas depois, como já assinalado. O samba Exaltação a Tiradentes, presente na primeira citação, é um caso exemplar. Devido à sua fama no Rio de Janeiro, a obra serviu como um ícone para o primeiro grande momento da Escola de Samba Copa Lord no seu carnaval, quando de sua estréia.



14 Conforme relatado por Márcio de Souza e Beloni, compositores da Escola de Samba Protegidos da Princesa,

É importante considerar que este samba data de 1949, e configura-se como um dos sambas que trazem os gérmens dos primeiros sambas de enredo de fato. Isso se torna interessante pelo fato de que Florianópolis produz suas primeiras escolas de samba justamente no período de sedimentação deste sub-gênero no Rio de Janeiro. Assim, posso dizer que, entre 1949 e fins da década de 60, Florianópolis teve sambas-enredo, embora estes não possuíssem o elemento característico primordial: a correlação entre o samba e o enredo, desenvolvido no desfile.

Argumento que os sambas apresentados em Florianópolis eram sambas-enredo pelo fato de já representarem obras que falam de algum enredo proposto, pela preocupação de referir-se a aspectos do tema a ser desenvolvido no desfile de uma escola de samba. Esse também é o período em que a figura dos primeiros carnavalescos aporta no carnaval, produzindo as transformações estéticas que geraram a inter-relação entre todos os segmentos que compõem um desfile (musical, plástico, dança, etc.)

Entretanto, esta preocupação de tratar o desfile como um objeto onde um enredo é trabalhado durante o decorrer das alas não fazia parte da realidade das escolas de samba locais, como atestam as muitas referências de títulos das alas, divulgadas por cada escola nesse período (TRAMONTE, 1995). Em seu trabalho, Cristiana Tramonte apresenta todas as relações de alas divulgadas desde os desfiles de 1957 (no qual somente consta a relação de alas da Protegidos da Princesa). Não cabe aqui estabelecer uma lista que comprove esse fato, mas a primeira obra que aparece representada de alguma maneira nos segmentos visuais do desfile aconteceu em 1965, na Escola Filhos do Continente, quando da composição local do samba-enredo para o enredo Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos, de Abelardo Blumemberg (idem, p. 109), onde um “carro-enredo”, como foi chamado, estabelecia uma conexão entre os segmentos musical e visual. As alas, ao contrário, não criavam este diálogo.

Assim, se observarmos a definição de samba-enredo que abrange “uma modalidade de samba [...] cuja letra deve compreender o resumo poético do tema histórico, folclórico, literário biográfico ou mesmo de criação livre, que for escolhido para enredo ou assunto da apresentação da escola de samba em seu desfile...” (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 2000, grifo nosso), perceberemos que estas obras se identificam com essas características, entretanto, no seu emprego original, ou seja, no contexto no qual estas foram utilizadas nas escolas do Rio de Janeiro. Dessa forma, um samba-enredo que não descreve um enredo nesta nova “aplicação” (ou função) não pode ser considerado funcional nesta acepção, a não ser no puro sentido de ser utilizado para fornecer base musical ao desfile.

A partir do que foi analisado, podemos considerar um primeiro período da história dos sambas enredo em Florianópolis aquele que compreende os anos de 1949 a 1968, quando da reunião de dois aspectos essenciais para essa divisão: por ser em 1967 o ano de incorporação do quesito “samba-enredo” na cidade, onde até essa data o conjunto de quesitos empregado no concurso local não considerava o samba; e também, pela efervescência de sambas compostos a partir de 1964 que, tornando-se habitual, pode ter provocado a ascensão deste quesito alguns anos depois.

Em 1964, com o advento do samba Paladino da Democracia (também conhecido como Preconceito Racial), de autoria de Pernambuco, da Escola de Samba Unidos da Coloninha, fundada em 1962, resulta, como vimos na citação inicial, a primeira menção a um samba-enredo constante em jornais da época, como atesta Tramonte. No ano seguinte, com três obras compostas para três escolas diferentes (Copa Lord, Protegidos da Princesa e Filhos do Continente), o compositor carioca residente em Florianópolis “Avez-vous” (ou popularmente “Avevú”) provocou a afirmação de sambas-enredo feitos “nessa” e “para essa” cidade, Brique Negreiro (Protegidos), Florianópolis, paraíso do amor (Copa) e Anita Garibaldi, a heroína de dois mundos (já mencionado, da Filhos do Continente). Como afirmei, a intensificação de sambas compostos em Florianópolis veio provocar a inclusão do quesito “samba-enredo”, já que, obviamente, não haveria motivo de incluí-lo sem haver, de fato, sambas-enredo na cidade. Dessa maneira, podemos considerar que, ao contrário do ocorrido no Rio de Janeiro, quando da criação de regulamentos culminando com a exigência, em 1939, de sambas identificados com aspectos históricos do país, em Florianópolis, a norma veio em decorrência da prática musical, a partir do fortalecimento do samba local, assim como pela sua valorização.

Creio que prover uma análise de algumas obras referentes ao período compreendido entre 1950 e 1969 não pode ser considerado algo muito significativo, justamente por entender que a prática do samba-enredo em Florianópolis se deu de maneira muito isolada, incapaz, neste período, de permitir caracterizações mais amplas. De qualquer forma, podemos tomar o samba de 1964 da Unidos da Coloninha como um marco referencial do samba-enredo local. Neste samba estão claramente expressas as intenções do enredo, que se desenrola por toda a obra. Esta consiste de poucos versos mas tem um caráter muito marcado dos sambas-lençol do Rio de Janeiro, não pelo comprimento da obra, mas pela maneira formalizada com que descreve o seu personagem, John Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos morto em atentado. A disposição dos versos, em duas estrofes com um refrão, lembra em muito a estrutura encontrada no sambas-de-terreiro (ou samba-corrido, segundo Nei Lopes), como

aquele de 1936 da Unidos da Tijuca, apresentado neste trabalho. O diferencial reside no fato de expressar claramente o enredo proposto, diferente das obras encontradas no Rio de Janeiro até o início dos anos 50, inclusive por não apresentar improviso. Vejamos sua letra:

Unidos da Coloninha (1964) Enredo: Paladino da Democracia

Autor: Pernambuco

Defendendo o preconceito Sobre o mundo racial

Um libertador afeito A união e ao direito Pereceu em seu torrão natal Abalando a trilha do progresso

O mundo em si chora hoje (bis) A grande ausência de John Kennedy

Pavilhão da glória, união, labor Novo selo da história De quem nasce “de cor” Abalando a trilha ... (bis)

Podemos perceber que o rigor em relação ao samba e sua relação com os aspectos plásticos do desfile ainda não eram muito evidentes. Por estas terras o rigor exigido pelos carnavalescos ainda não chegou a interferir nas organizações carnavalescas. A identificação de fantasias com os aspectos temáticos do desfile também não era obrigatória, assim como o percurso a ser realizado pelas escolas permanecia em constantes transformações: em 1966, os desfiles iniciavam-se na Praça XV, tomando as ruas Felipe Schmidt, Conselheiro Mafra e terminando na Praça Pio XII, perfazendo um percurso também em forma de quadrado. Em 1967, os pontos de partida e de chegada foram trocados, de modo que o desfile terminava na própria Praça XV. Como já apresentado, a disposição de desfile ainda identificava um trajeto

mais próximo aos anseios de um bloco carnavalesco, percorrendo as ruas da cidade; desse modo, podemos perceber o conjunto de fatores que contribuem para uma manifestação menos rigorosa e mais “brincada”, para dizer de maneira coloquial.

A busca de sambas cariocas veio, dessa maneira, legitimar a prática carnavalesca dessas entidades, de modo a prover, nas próximas décadas, o predomínio desta manifestação sobre todas as demais realizadas na capital catarinense. Através destas conquistas, aliada a uma maior complexidade organizativa, os elementos musicais passaram a se afirmar, consequentemente. É o que veremos em seguida, quando as escolas de samba de Florianópolis passam por transformações bruscas, tornando-se, agora, visadas pela classe média local e assumindo status de “compromisso” do poder público para com a população (TRAMONTE, 1995, p. 115).

No documento FREDERICO FREIRE DE LIMA NEIBERT BEZERRA (páginas 58-65)