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O samba entre os anos 40 e 60

No documento FREDERICO FREIRE DE LIMA NEIBERT BEZERRA (páginas 39-44)

CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS HISTÓRICAS

1.2 Panorama Histórico dos Sambas-Enredo no Rio de Janeiro

1.2.4 O samba entre os anos 40 e 60

Vejamos o que alguns autores dizem sobre o surgimento de um novo tipo de samba presente a partir da década de 40:

De maneira geral, no entanto, o estilo mais comum de sambas de enredo – que a partir da década de 50 seria chamado simplesmente de samba-enredo – ia ser na verdade, até o fim dos anos 60, o dos longos poemas descritivos, revestidos de melodia ampla e solene, e apoiados naquele ritmo de marcação muito segura que constituía um dos característicos da percussão das escolas desde meados da década de 30. (TINHORÃO, 1974, p. 180)

Ana Maria Rodrigues confirma as características apresentadas por Tinhorão ao mesmo tempo em que expõe as dificuldades literárias e, ao seu modo, musicais.

A partir da recomendação de que os temas de desfiles de escolas de samba fossem ligados à História do Brasil, as letras se modificam profundamente: passam a ser extremamente longas, difíceis de ser controladas pela parte musical. Os sambas perdem sua espontaneidade e graça, tornam-se arrastados [...]. (RODRIGUES, 1984, p. 56, grifo nosso)

Os dois autores apresentam descrições que apresentam valores emocionais opostos. Indispensável é que, com a imposição de enredos patrióticos, compositores precisaram experimentar novas formas para adequar seus sambas a um novo desafio. Desse modo, cria-se o que pode ser caracterizado como o primeiro estilo de samba-enredo: o chamado samba lençol.

Como atestam os compositores do Salgueiro Alberto Mussa, Simas e Edigar8, o samba- enredo – em sua primeira forma conhecida como “lençol” – necessitou de uma “lenta evolução de uns 15 anos” para se diferenciar do chamado samba de terreiro. Coube-lhe, como alternativa, assumir o objetivo de “cobrir” o enredo de uma maneira abrangente, como um “lençol”, justificando sua denominação, ao sabor do carioca.

Segundo Simas, alguns sambas já procuravam se adequar à nova proposta, mas foi em 1951 que uma obra da Escola de Samba Império Serrano alcançou esse formato. O enredo Sessenta e um anos de República foi a inspiração para um dos maiores compositores de sambas-enredo elaborar seu samba: Silas de Oliveira.



G.R.E.S. Império Serrano (1951) Enredo: Sessenta e um anos de República

(Silas de Oliveira)

Apresentamos A parte mais importante

Da nossa história Se não nos falha a memória

Foi quando vultos notáveis Deixaram suas rubricas Através de 61 anos de República Depois de sua vitória proclamada

A constituinte votada Foi a mesma promulgada

Apesar do existente forte zum-zum-zum Em 1891, sem causa perca Era eleito Deodoro da Fonseca

Cujo governo foi bem audaz Entregou a Floriano Peixoto E este a Prudente de Morais

Que apesar de tudo

Terminou com a guerra de Canudos Restabelecendo assim a paz (bis)

Terminando enfim todos os males Em seguida veio Campos Sales

Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca e outros mais

Hoje a justiça Numa glória opulenta A 3 de outubro de 1950

Que sempre socorreu a Pátria Em horas amargas O eminente estadista

Getúlio Vargas

Eleito pela soberania do povo Sua vitória imponente e altaneira Marcará por certo um capítulo novo

Na história da República brasileira (refrão)

O samba, predominantemente, passava a não ter mais refrões elaborados sobre mais de um verso. A tendência mais comum, também verificável no exemplo apresentado, era a entonação de linhas melódicas longas que sustentavam sílabas (como lá-ia lá-ia) ou simplesmente vogais (como ôôô). Muitas vezes, diferente do exemplo dado, era possível encontrar sambas sem o refrão intermediário – restabelecendo enfim a paz.

No que tange aos aspectos melódicos, podemos dizer que cada frase verbal da obra possui um motivo melódico quase que individual e irrepetível. Essa insurgência de materiais motívicos acaba por não permitir uma percepção de unidade musical entre grupos de versos que se sucedem, o que contribui para a obra ser percebida de momento à momento, com pouca fluidez e ausência de um direcionamento melódico.

De modo a ressaltar esses universos em miniatura, a harmonia configura-se complexa e, em geral, instável. Esta também ajuda a transferir ansiedade e tensão à composição. O centro tonal em dó menor, embora recorrente em toda a peça, cede espaço a vários pequenos centros tonais com poucos momentos conclusivos.

O texto verbal traz seu ritmo marcado pela rimas estabelecidas, basicamente, por versos que logo se sucedem – em geral, de dois-a-dois – o que contribui para uma audição mais curta e momentânea, assim como nos aspectos musicais considerados. A assimetria entre os versos – às vezes, uma palavra, em outras, seis – estabelece uma instabilidade métrica que se soma à instabilidade melódica e harmônica. Grande parte das rimas são estabelecidas de maneira imperfeita, sendo raros os momentos onde o contrário acontece (como em proclamada/votada/promulgada). A escolha das palavras promove um texto que, muitas vezes, é pesado e que pouco apela para uma linguagem coloquial, o que denota a preocupação do autor com a transmissão das informações que o texto necessita expressar.

Quadro 2. Diagrama dos aspectos formais do samba-enredo Sessenta e um anos de República (1951).

No quadro 2 podemos perceber a consolidação da forma contínua onde estabelecem-se seções que se sucedem, ao invés de se intercalarem, como visto no samba-corrido. O novo modelo privilegia a continuidade onde a cada seção materiais melódico-verbais se renovam. Podemos perceber a alternância entre coro e solistas, o que realça os trechos de extensão mínima atribuídos aqui com pequenos refrões, onde o coro contribui mais marcadamente. Talvez esses refrões possam, na realidade, contribuir mais como uma “quebra” do texto extenso e pesado, cedendo à ânsia do canto coletivo por parte do grande efetivo, como que a aguardar sua participação.

Outras características se somam ao aspecto do samba: já em fins da década de 40, quando cada agremiação desfilava, em média, com um contingente de 500 pessoas. Esse aspecto pode ser uma das justificativas para a afirmação de Tinhorão (1974), quando os sambas eram “apoiados naquele ritmo de marcação muito segura”. A necessidade de fazer as pessoas “caminharem” garantia a necessidade de mecanismos para essa realização. Uma marcação segura garantia o andamento do desfile, ao mesmo tempo em que procurava evitar o tradicional “atravessamento do samba”, quando várias partes diferentes de um samba eram

cantadas ao mesmo tempo, por descuido da agremiação, o que gerava desentendimento e muita confusão.

As letras longas, conforme o esclarecimento de Simas, surgem da necessidade de “cobrir toda a ideia do samba”. Sambas de cunho histórico, como o aqui citado, esmeravam-se em descrever “de Deodoro da Fonseca até Getúlio Vargas”. Por isso a indignação de Rodrigues quando uma obra perde em “espontaneidade e graça”. Esses fatores limitadores exigiam muito apuro técnico que, como não podia ser diferente, não constituem a maioria.

Desse modo, o samba de enredo – segundo entrevista de um sambista à pesquisadora Monique Augras – pode ser denominado como “uma coisa longa feita a capricho” (apud AUGRAS, 1998, p. 81). Outros esclarecimentos encontrados em seu livro O Brasil do Samba- enredo tangem ao processo de criação dos sambistas. Nele, aponta-se que o sambista, para dar conta da empreitada, recorria a livros didáticos onde bebiam das informações para serem referidas em suas obras. Fato também constante era o estabelecimento de fusões de sambas. Isso ocorria quando um sambista, satisfeito com um parte de sua obra, procurava outro compositor que possuísse uma outra parte de seu interesse, de modo a reuni-las em uma única obra, estabelecendo-se, assim, uma parceria. Esse processo é denominado por Augras como colagem, fortalecendo aquilo que chamou de parceria criativa (id., 1998, p. 83).

Ainda outro tipo de parceria era muito popular nos redutos do samba a parceria por conveniência. Esta ocorria pela inclusão de um nome entre os autores de uma obra devido a auxílios que representassem uma vantagem à obra, tais como auxílio para gravação, divulgação da obra para seu sucesso, auxílio financeiro, entre outros, de modo a contribuir para o estabelecimento de uma parceria mais forte para a disputa. Novamente atestamos a consciência do compositor enquanto personagem envolvido numa rede de interesses, dentre os quais o próprio. Com essas reflexões, é difícil atribuir a uma dicotomia dominador x dominado aos domínios da Escola de Samba. Aqui vemos o compositor estabelecendo suas conexões e estratégias para alcançar seus objetivos. Outros recursos que também fazem parte desta estratégia são os já comentados encontros promovidos para a divulgação de uma obra na comunidade e, quando possível, o apoio de personalidades importantes dentro da agremiação, como o de uma pastora que confira legitimidade à obra na quadra.

De maneira simplificada, podemos resumir que a geração de uma obra exige o desempenho de parcerias criativas, parcerias de conveniência, personalidades que legitimem a obra, fusões, descrição épica do enredo, capacidades musicais para a evolução e o canto no desfile e, por fim, a aceitação de toda a comunidade.

Além destes fatores considerados cruciais na escolha e concepção da obra, surge um elemento que interfere nesse processo. O carnavalesco, depois da década de 60, também passa a interferir na escolha do samba. Um exemplo é o próprio Fernando Pamplona que passa a organizar uma discussão coletiva em torna da escolha da obra, como atesta a citação extraída do livro de Ana Maria Rodrigues:

Salgueiro escolhe samba-enredo do seguinte modo: os compositores apresentam suas músicas que serão gravadas. O Sr. Fernando Pamplona pegará as gravações e fará uma enquête entre compositores, escritores, homens do povo e sambistas. Depois os sambas serão ensinados às pastoras, que são realmente o grande árbitro. (Jornal do Brasil, 08 jan.1961 apud RODRIGUES, 1984, p. 69)

Como podemos verificar, sutilmente a escolha passa a ser centralizada pela figura do carnavalesco que, na citação, é o primeiro recebedor das gravações. Mesmo procurando um processo mais coletivo de escolha, como o demonstrado neste exemplo, é possível marcar que essa centralização torna-se cada vez mais recorrente, atingindo seu auge na da década de 70, com a mudança do principal papel no desfile – que, até então, correspondia ao Diretor de Harmonia – transferida ao carnavalesco.

No próximo item observaremos como se modificaram os rumos do samba-enredo, almejando solucionar alguns dos problemas encontrados no atual samba lençol, alicerçado pelas inovações fonográficas, na popularidade e nos benefícios que estas inovações trazem ao compositor de sambas-enredo.

No documento FREDERICO FREIRE DE LIMA NEIBERT BEZERRA (páginas 39-44)