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2.2 U M VASTO PROJETO TRADUTIVO : AS SAGAS ISLANDESAS

2.2.1 As escolhas do tradutor

Numa das raras observações que nos deixou sobre o ato de traduzir, afirmava Morris, em carta a Eiríkr Magnússon de janeiro de 1874, estar “profundamente convencido da necessidade de fazer traduções literais. 4

A Saga de Gunnlaug seria posteriormente incluída em Three Northern Love Stories, and Other Tales (1875) – (apêndice A), inteiramente revisada: 232 alterações no texto em prosa, e na métrica dos 23 versos. (AHO, 1996:xxii)

Só que elas têm de ser em língua inglesa e, ao mesmo tempo, num inglês não degradado; vem daí, em suma, toda a dificuldade da tradução.” (KEVIN; MORRIS, 1984:213). E é consenso entre os críticos que as traduções que ambos fizeram da literatura islandesa eram extre- mamente precisas e fiéis ao seu texto-fonte.

Trata Morris de manter a similaridade sintática com o original, não raro modificando para isso a ordem estabelecida das palavras e estruturas inglesas, preferindo, por exemplo, empregar go not up do que not go up para verter o islandês gongum ekki upp (BARRIBEAU

1982:249). Preferia, igualmente, render por “Cast off grief from thee, and take up gladness” uma frase que poderia mais simplesmente ficar “Push away this sorrow from you and be glad” (UGOLNIK, 1977:46) – com isso, guardava fidelidade ao original e explorava, além disso, as ricas possibilidades poéticas que acreditava existirem nas raízes germânicas da língua. Sendo o islandês uma das línguas escandinavas do antigo grupo germânico, tem com o inglês antigo certa afinidade que Morris buscava resgatar na tradução das sagas, convencido de que

sua dignidade de estilo não pode ser obtida em inglês pelo elemento românico. Se puder ser obtida – e assim mesmo, só aproximadamente – será mediante o elemento teutônico de nossa linguagem, o mais próximo do islandês. (apud WHITLA, 2001:68, grifo meu)

Do original adota igualmente a farta utilização do presente narrativo livremente alternado com o pretérito – às vezes numa mesma sentença –, algo característico do texto islandês, mas que não deixa de causar estranheza, ou mesmo confundir o leitor moderno. Mais de um século depois, porém, em sua tradução da Volsunga Saga, a pesqui- sadora Kaaren Grimstad observa a mesma postura, julgando importante ser preservada esta particular feature of a text from medieval Iceland (GRIMSTAD, 2000:70). E Théo Moosburger, em sua tradução brasileira, procura “suavizar” esta alternância verbal, mas sem abolir o que consi- dera um “elemento de teatralidade na narração [...], vital da dicção das sagas”: o presente emergindo dramaticamente no pretérito referido pelo contador (MOOSBURGER 2009:32)

A maior estranheza causada pela tradução de Morris, contudo, vinha de suas escolhas concernentes ao vocabulário. Ao contrário do que ocorre no islandês, o léxico do moderno English idiom é marcado por uma forte presença de termos emprestados do latim ou. do francês

ao longo dos séculos e dominações sucessivas. Morris, como alguns autores ingleses já desde o século XVI, lamentava que, após a conquista normanda em 1066, o inglês tivesse se tornado um dialeto do latim, e sua literatura, a partir de Chaucer, sido escrita num dialeto francês (MORRIS, “Early England”, apud WHITLA, 2001:68).

Cuidava, portanto, de evitar latinismos, recorrendo sempre que possível a termos ingleses que, mesmo em desuso, fossem mais pró- ximos do islandês. Na Volsunga Saga, por exemplo, traduz “a við lesa” (respigar) por “leasing”, um termo antigo mais similar ao islandês e ainda em uso no interior da Inglaterra, de preferência ao termo moderno “gleaning”, derivado do latim “glenare” pelo francês “glaner”. (MA-

GNÚSSON; MORRIS, 1870:218) Os vários cognatos comuns entre as duas línguas permitiam, através do islandês, a redescoberta de possibilidades esquecidas do inglês.

Alguns desses cognatos eram razoavelmente aceitáveis para o leitor comum, como o uso de fare (atualmente com sentido de “passar”) para o islandês fara (ninguém goes a lugar nenhum nas sagas traduzidas por Morris, e sim, fares). Causavam incômodo, porém, quando não rejeição, os cognatos que remetiam a obscuros termos de um inglês bas- tante arcaico, não raro dialetal. Como tyned, por exemplo, um vocábulo restrito ao norte da Inglaterra, originalmente tomado do Old Norse, que Morris emprega para traduzir týnt (lost).

Ashurst (2007:53) cita o exemplo de uma fala da personagem Brynhild (Volsunga Saga), que Morris traduz por “Who gained greeting / For thee, O Gudrun”. Morris usa o termo greeting (do verbo to greet, “saudar”) no sentido arcaico de “chorar” (weep no inglês atual), sentido que só sobrevive em alguns dialetos da Escócia ou do norte da Ingla- terra. Comentava Eiríkr Magnússon (1905:xiv), a este propósito, que “o dialeto de nossa tradução não era o inglês da rainha, mas ajudava a penetrar no espírito da antiga linguagem.” A escolha de “greeting”, ao invés de “weeping”, preserva, além disso, o efeito aliterativo da frase islandesa. Ora, as aliterações eram um elemento essencial da antiga poe- sia nórdica, mas também da poesia inglesa antiga. Se Morris atentava especialmente para elas era, em parte, para preservar o ritmo do original islandês empregando o recurso rítmico consagrado pelos poetas e contadores das sagas desde antes de seu registro escrito. Simultanea- mente, estava também sendo fiel à sua própria tradição literária. Da mesma forma como, ao optar pelo uso de cognatos, remontava às raízes de sua própria língua enquanto era fiel ao léxico do original.

Chamam particularmente atenção certas liberdades criativas em que Morris incorre para se manter próximo à estrutura lexical islandesa:

uma vez que nesta língua o prefixo ó-, por exemplo, tem função de negação, lança mão de um sufixo equivalente em inglês para traduzir óvinir (enemies) por unfriends, ou ófrelsi (tyranny) por unfreedom (BARRIBEAU 1982:246).

Também fundados em afinidades com o original eram os neolo- gismos que cunhava, alguns dos quais ficaram na língua inglesa. (Vale lembrar aqui as palavras de Antoine Berman (1999:108), para quem “toda grande tradução se caracteriza por sua riqueza neológica”.) Um deles, pelo menos, alcançou indiretamente a língua portuguesa no Bra- sil. O termo barrow-wight (barrow: pequenos montes que eram outrora erigidos sobre os túmulos; wight: “criatura”, em middle English) é regis- trado pela primeira vez em inglês em 1869, na tradução da Grettir’s Saga5. Foi posteriormente retomado por Tolkien em O Senhor dos Anéis para designar os seres fantásticos (“criaturas tumulares” na tradução brasileira) que, na “Terra do Meio”, habitam as “Colinas dos Túmulos”. Neste mesmo sentido ia o gesto de Morris em relação à kenning – essa figura de linguagem característica das antigas línguas nórdicas, encontrada na poesia medieval islandesa e anglo-saxônica e que, pela associação de dois termos, compõe um terceiro de significado abso- lutamente distinto (kenna við = “expressar uma coisa em termos de outra”). Para citar um conhecido exemplo de kenning bastante simples (que aparece em Beowulf), o “oceano” podia ser referido como “cami- nho da baleia” (hwæl-weġ). Tais associações, contudo, podiam ser extremamente complexas e, embora fossem facilmente entendidas pela audiência da época, essas “circumlocutory phrases that seek to call something by anything but its most usual name” (GUTMAN, 1962:78) resultam bastante obscuras para os leitores modernos desfamiliarizados com seus códigos. Daí Snorri, na Edda em Prosa, ter tido a preocupação de registrar a chave para decifrá-las (em prol da legibilidade, uma das primeiras versões escritas das sagas já vinha acompanhada de um para- texto explicativo...). Para contornar sua obscuridade, os tradutores, no mais das vezes, simplesmente desconheciam as kennings, tidas como meros ornamentos retóricos de narrativas que, no mais, se prestam perfeitamente a traduções mais enxutas e coloquiais. Morris opta por reproduzi-las literalmente, em toda a sua “ilegibilidade”. Runnr Gunnar torna-se assim tree of battle (árvore de batalha), para designar warrior (guerreiro, em islandês þorsteinn). (BARRIBEAU, 1982:248) Preserva

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Cf. Online Etymology Dictionnary (acesso em 30 jan. 2015): <http://www.etymonline.com/index.php?search=occupied>

assim, contudo, junto com a obscuridade do sentido, o tom laudatório e os eventuais efeitos satíricos tão típicos da poesia escáldica.

Morris, de modo geral, opta por uma tradução que, enquanto mais árida e impenetrável à primeira leitura, preserva isso que ele chama de dignity of style e tanto o tocava nas sagas, um tom que julgava dificil- mente reproduzível em inglês moderno sem ser traído. É o que pode ser observado se compararmos sua versão de um trecho da Volsunga Saga (capítulo XXXI), com aquela, bastante respeitada, publicada em 1965 por R. G. Finch numa edição bilíngue:

Original: Heldr en þú deyir, vil ek þik eiga, en fyrirláta Guðrúnu, segir Sigurðr, en svá þrútnuðu hans síður at í sundr gengr brynjuhringar.

“Quero antes ter-te e abdicar de Gudrun que deixar-te morrer”, disse Sigurd, e tanto inflaram-se seus flancos que as argolas da cota de malha se partiram.

[na tradução brasileira de Théo Moosburger (2009:109)] Finch: “Rather than you should die, I’ll marry you and

leave Gudrun”, said Sigurd, and his breast so heaved that the links of his hauberk snapped.

Morris: “Rather than thou die, I will wed thee, and put away Gudrun”, said Sigurd. But therewithal so swelled the heart betwixt the sides of him, that the rings of his byrny burst asunder.

Segundo Ashurst (2007:52), Morris é mais fiel ao texto original, do qual mantém inclusive as aliterações, e imprime um ritmo que melhor reproduz o clímax deste diálogo final entre Brynhild e Sigurd. Além disso, ao traduzir en por but (e não por and, como Finch) capta melhor a dramaticidade da cena e dá mais sentido à subsequente reação de Brynhild, que o despede, furiosa. (Sigurd, embora prestes a deixar a esposa por Brynhild, não deixa, afinal, de sentir afeto por Gudrun).

Quase um século separa a tradução de Finch da de Morris, meio século já nos separa da tradução de Finch, e o diálogo entre Sigurd e Brynhild foi vertido em inglês outras quatro vezes.

Vão seria tentar avaliar, com o olhar e sensibilidade de hoje, as escolhas feitas por Morris em seu inglês vitoriano, que a nós soa como

um linguajar intrincado e opulento, e em que termos arcaizantes como thou ou thee, por exemplo, ainda eram familiares aos leitores.

Cabe verificar, porém, na avaliação de seus contemporâneos e de críticas posteriores, em que medida suas escolhas se inscrevem nos modos tradutivos e literários de seu tempo. Ou em que medida “suas” sagas islandesas permanecem como um testemunho da língua, da literatura, da estética de uma época.