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Críticas e fortuna crítica

2.2 U M VASTO PROJETO TRADUTIVO : AS SAGAS ISLANDESAS

2.2.2 Críticas e fortuna crítica

Já desde seu lançamento, como se viu, as traduções de Morris foram alvo tanto de críticas ácidas quanto de calorosos elogios. Robert Louis Stevenson, por exemplo, entusiástico apreciador das sagas e admirador de Morris, em carta a este último no início dos anos 1890, em que o chama de Master e declara sua eterna dívida pela Saga Library – recla- ma em seguida com muita graça do seu uso exagerado de whereas por where (AHO, 1996:xx).

Segundo James Barribeau (1982:240), muitos dos pais funda- dores dos modernos estudos medievais eram grandes admiradores de Morris. E de fato, declarava o poeta e erudito G. A Simcox, em sua resenha à Volsunga Saga, que “o estranho inglês arcaico da tradução, com sua dose exata de sabor estrangeiro, muito contribui para atenuar as irregularidades e incompletudes do original” (SIMCOX, 1870:278).

As críticas à sua literalidade e arcaísmo de linguagem, contudo, se estenderam pelo século XX. Dorothy Hoare, uma das mais ferrenhas opositoras de Morris, vê em sua tradução das sagas duas falhas maiores: é demasiado literal, e usa frases ou sintaxes distantes do uso moderno “dando assim um sabor remoto, medieval, a algo que é moderno em espírito.” (HOARE, 1937:54) Também Lee Hollander (apud BARRIBEAU, 1982:240) enxerga nas traduções morrisianas “a concepção equivocada de que as sagas requerem uma linguagem antiga temperada com dialetismos ingleses, praticamente ilegível hoje em dia.” Mesmo o filólogo E. V. Gordon, para quem Morris foi “o maior intérprete literário do norte que a Inglaterra já teve”, afirmava sobre suas traduções que, “embora se aproximem do original na força e concisão de estilo, o uso frequente e deliberado de arcaísmos gera um tom precioso e afetado totalmente contrário ao espírito das sagas”. (GORDON, 1957:lxxvi)

Já Eric Rücker Eddison, referindo-se à Egil’s Saga, julga tratar-se de “uma tradução que guarda a vida e o frescor de uma obra original e preserva, no conjunto, o exato tom e sabor da saga” (EDDISON,

1930:235). E Karl Litzenberg: “Nenhum outro escritor moderno recriou tão completa e adequadamente o espírito da literatura nórdica antiga” (LITZENBERG, 1947:2).

Críticas bastante similares às que se faziam a Morris foram feitas a outra célebre tradução da época, The Book of the Thousand Nights and a Night: A Plain and Literal Translation of the Arabian Nights’ Entertainments, de Richard Francis Burton, publicada em dez volumes em 1885-6. Também Burton foi acusado de anacronismo e criticado por sua linguagem obsoleta. Também ele privilegiava a literalidade, rechea- va o texto de vocábulos e expressões árabes que muitas vezes tornavam o texto difícil, ou traduzia literalmente provérbios, metáforas, criando efeitos estilísticos ausentes no original. Ora, Burton estava “plenamente afinado”, segundo Jean-François Gournay, com um modo contempo- râneo de traduzir bastante difundido, e “de que o melhor representante era, sem dúvida alguma, William Morris.” (apud BALLARD, 1992:2496).

O certo é que, em sua época, as traduções de Morris foram bastante aplaudidas pela crítica (BASSNET, 2003:116) e as das sagas islandesas, particularmente, obtiveram excelente recepção por parte do público. É inquestionável a importância da Saga Library para a divulgação da antiga literatura nórdica no final do século XIX (AHO, 1996:xxi), e não só entre os leitores ingleses – seu alcance se estendeu indiretamente a todo o Ocidente, em parte graças a seu impacto em outros escritores. Robert Louis Stevenson, por exemplo, toma por base um episódio da Eyrbyggja Saga para um de seus contos, The Waif Woman: A Cue, from a Saga (1914). Jorge Luis Borges, também apai- xonado pela literatura nórdica, também tradutor de sagas e de poemas da Edda Menor, e que empreendeu “no tres viajes, sino, como diría William Morris, tres peregrinaciones a Islandia”, relata a origem deste “culto del Norte” que o acompanharia a vida inteira: “Mi padre me regaló un ejemplar de la Volsunga Saga, traducida al inglés por William Morris; [...] me impresionó muchísimo; [...] quedé debida- mente deslumbrado.” (BORGES, 2005:242) Se a obra artística e literária de Morris, como um todo, foi uma das mais fortes influências de J. R. R. Tolkien, sabe-se que uma de suas primeiras aquisições em literatura nórdica, quando ainda estudante, foi a tradução da Volsunga Saga por Morris e Magnússon. Da Volsunga seriam tirados vários elementos, nomes e episódios do Senhor dos Anéis, por exemplo.

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GOURNAY, Jean-François. L’appel du Proche-Orient, Richard Francis Burton et son temps 1821-1890, Paris: Didier, 1983, p. 481.

Afirma o crítico e historiador literário Joseph Jacobs, em seu prefácio a Old French Romances Done into English by William Morris, que o estilo introduzido por este último a partir de 1869, com a tradução das sagas islandesas, vinha sendo adotado por “todos que desejam dar uma roupagem inglesa apropriada às suas versões de obras-primas clássicas ou medievais”. (JACOBS, 1914:x) Palavras hoje confirmadas por Florence Boos, pesquisadora responsável pela edição on-line da obra de Morris7, para quem sua Volsunga Saga “ainda é vista como um modelo de tradução vitoriana.” (BOOS, 2000)

Se as traduções de Morris puderam impactar o cânone literário de sua época; se, entre severas críticas e elogios superlativos, não passaram despercebidas nem caíram na indiferença, é porque suas escolhas, enquanto afinadas com os valores da sociedade em que vivia, eram também pautadas por um propósito pessoal muito claro. Um propósito que, alicerçado na visão que tinha de seu tempo e de seu papel enquanto artista e poeta, confere a sua obra, entre erros e acertos, a coesão e sistematicidade que validam toda reescrita.