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O livro neoclássico: dos Contos de La Fontaine ao

1.2 T RADUÇÃO E ARTES DO LIVRO

1.2.4 O livro neoclássico: dos Contos de La Fontaine ao

Ao iniciar-se o século XVII, numa Europa em crise político-econômica e face ao rígido controle exercido sobre a edição pelas monarquias abso- lutistas, as artes do livro parecem perder sua capacidade de inovação. Num primeiro momento, o livro adquire certo ar de grandeza, de “gran- diloquência barroca” diria Mandel (1998:143), que lhe impõe formatos maiores, ricos frontispícios, encadernações pesadas, requintadas ilustra- ções. Refletindo a imponência que cercava a monarquia e os padrões estéticos de uma corte afeita ao requinte e preciosismo, o livro importa menos por seu conteúdo que por seu poder de tocar a sensibilidade e estimular o imaginário. Torna-se objeto de desejo e prazer individual, ou

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A mesma Bibliothèque du Roi que sob Francisco I já reunia a maior coleção de manuscritos gregos do ocidente seria, no reinado de Luís XIV, enriquecida com uma coleção de manuscritos orientais comprados, a mando do ministro- cardeal de Richelieu, de um antigo embaixador de Henrique IV que os trouxera de Constantinopla. As respectivas punções e matrizes de seus caracteres, adqui-ridas na mesma ocasião e incorporadas ao acervo da Imprimerie royale, intro-duziram na França a tipografia oriental. (Exemplo, entre tantos outros, de apropriação sistemática de textos e formas de escrita, fornecido por Barbier, 2008:287).

mesmo de coleção: edições de luxo, valorizadas por ilustrações de grandes artistas graças à nova técnica da gravura em metal, impulsionam a bibliofilia.

Simultaneamente, porém, diante do alto preço das matérias- primas, da penúria ocasionada pelas guerras que devastavam a Europa, da censura e das perseguições, os editores, enquanto tratam de dar ao seu ofício uma estrutura capitalista, apta a defender seus interesses e eliminar a concorrência, vão firmando estratégias de sobrevivência: por meio de plágios e contrafações, edições populares impressas em mate- riais muitas vezes de má qualidade, exportação, edições clandestinas, venda por subscrição, etc., atendem de alguma forma à demanda de um crescente público leitor. A leitura é mais generalizada, aumenta a pre- sença do livro no cotidiano, publicam-se crônicas e relatos de viagem, romances e peças de teatro, contos morais ou satíricos. Viriam, em seguida, os ensaios e reflexões filosóficas, as grandes obras de refe- rência e divulgação científica – o Século das Luzes seria o século das enciclopédias e dicionários.

A obra de La Fontaine (1621-1695) pode ser citada em exemplo de como se manifestava então a reescrita no panorama literário e edi- torial. Próximo ao poder e à corte, membro da Académie, o “autor” das Fables choisies, mises en vers par M. de La Fontaine (Fábulas escolhi- das, postas em versos pelo sr. de La Fontaine) é um digno representante da cultura francesa deste século que, julgando ter “chegado à maioridade [...] imaginava-se como a verdadeira guardiã da poética do ocidente.” (LEFEVERE 2007:144). Suas Fables de fato compõem uma espécie de súmula das fábulas gregas e latinas da Antiguidade, adaptadas (ou “aperfeiçoadas”) para o leitor francês moderno: são em boa parte24 extraídas de Fedro e Esopo, reescritas em versos segundo as regras da métrica clássica e acrescidas de uma moralidade ao gosto do tempo.

Nisso não fazia mais que seguir a prática dominante numa cultura em que as grandes obras consistiam essencialmente na recriação de modelos estrangeiros consagrados, em especial da Antiguidade clássica. A noção de autoria não sendo então vinculada à originalidade ou escrita criativa, esperava-se de escritores e poetas que reescrevessem as grandes obras universais segundo as normas de uso da língua e os estilos ditados pela Académie – nela é que se definiu, pela interpretação, discussão e reelaboração dos princípios clássicos, uma estética orientada por um ideal de perfeição, fundado na razão, que se impôs a toda realização 24

Algumas são reescrita de fábulas orientais (sobretudo indianas), e outras são da lavra do próprio La Fontaine.

artística ou literária. Assim, por exemplo, neste que ficou na história literária francesa como o grande século do teatro, a obra de seus maiores expoentes é marcada pela reescrita de temas clássicos – como Fedra, de Racine (1677), inspirada em tragédias de Eurípides; Édipo de Corneille (1659), na tragédia de Sêneca; ou O avarento, de Molière (1668), numa comédia de Plauto.

La Fontaine logrou, com suas Fables, alçar ao nível da obra literária um gênero tido até então como didático ou sentencioso. Publicadas em vários volumes entre 1668 e 1694, obtiveram imenso e imediato sucesso entre os contemporâneos, mas não só: constantemente reeditadas e retraduzidas, muito se deve à sua reescrita essas histórias herdadas da Antiguidade continuarem sendo até hoje difundidas em vários países e línguas (mesmo que como um clássico da literatura francesa).

Imenso sucesso também mereceram na época seus Contes et nouvelles en vers, contos de temática ligeira com certo sabor licencioso. Divulgados a partir de 1665, censurados e proibidos por ordem do rei em 1675, só em 1685 seriam pela primeira vez reunidos numa coletânea, impressa em Amsterdã, sem “privilégio do rei”, por Henri Desbordes, impressor francês radicado na Holanda. Era prática corrente, nesses tempos de censura em que muitos editores eram acuados ao exílio, as obras serem impressas na Holanda, ou na Suíça, assim como era comum as publicações ostentarem nomes e endereços fictícios de gráficas estrangeiras. Tudo isso criava um ambiente propício para as contra- fações – que de fato proliferavam, e não só por motivos políticos. Segundo um livreiro de Yverdon (Suíça), citado por Labarre:

Bons livros pertencem não aos livreiros, mas à humanidade, a qual pede para ser esclarecida e educada para a virtude. [...] Impressores e livrei- ros são meros intermediários, e aqueles que, por meio de contrafações, procuram difundir mais abundante e prontamente os bons livros, merecem a gratidão da humanidade. (LABARRE, 1979:102)

Um discurso que, projetando inte- resses próprios na expectativa do leitor, parece justificar, pelo prisma do mercado livreiro-editorial, práticas hipertextuais que também imperavam na escrita e reescrita neoclássica em geral, e na obra de La Fontaine em particular. Seus Contes et nouvelles en vers, que foram durante muito tempo um paradigma da arte “galante”, eram em boa parte “tirados” das obras de Boccaccio, Ariosto ou Maquia- vel, conforme indicado na abertura de cada conto dessa edição holandesa. Na imagem ao lado (fig. 20) lê-se assim, sob o título, “O calendário dos velhos”: nouvelle tirée de Bocace (conto tirado de Boccaccio)25.

Dizia Nietzsche que o senso histórico de uma época pode ser medido “pelo modo como nela são realizadas as traduções e pelo modo como se incorporam o passado e os livros.” E descrevia, em referência aos antigos romanos, uma postura também característica dos neo- clássicos, para quem o passado, como tudo o que lhes soasse estranho, “era constrangedor” e precisava ser moldado às exigências do presente: tratava-se de “renovar o antigo”, dando “alma a este corpo inerte.” (NIETZSCHE, 2001:181-3). Uma intenção que é visível aqui não só na “tradução”, mas na edição como um todo, como atesta a ilustração de Romein de Hooge (acima), em que personagens de um conto escrito quatro séculos antes, e cuja narrativa se passa em Pisa, aparecem vesti- dos à moda francesa seiscentista.

Também é paratexto eloquente o prefácio ao segundo volume dos Contes et nouvelles en vers* – no qual em nenhum momento aparece, aliás, o termo “tradução”. Nele referindo a si mesmo como ao autor que “pôs em rimas esses contos”, revela La Fontaine que sua intenção primeira é “cativar”, entreter, agradar, o leitor (LA FONTAINE, 1762:iv). A figura 21, abaixo, mostra como se reafirma essa intenção pela forma que o texto adquire no livro.

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Trata-se da décima novela, segunda jornada, do Decameron.

Figura 21

Trata-se da página dupla (p. 234-5, 2º vol.) de uma edição dos mesmos contos*, produzida em Paris pelo impressor-livreiro Joseph Gérard Barbou (1762), cerca de 70 anos após a morte de La Fontaine.26 Aqui, os tipos de Fournier le Jeune, tidos como obra-prima da tipografia rococó,27 se adéquam à perfeição ao gosto ligeiro, elaborado mas gracio- so, que se encontram tanto nos versos do “poeta” como nas ilustrações (a água-forte é de Eisen, e a vinheta, de Choffard).

A delicadeza do traço, os efeitos de luz e sombra permitidos pela gravura em metal, imprimiam sofisticação às imagens e, ao livro como um todo, um luxuoso aspecto apto a refletir “o gosto de uma classe culta e superficial, leitora de textos galantes não raro permeados de erotismo. 26

O frontispício, decerto antecipando problemas com a censura, informa falsamente que o volume foi impresso em Amsterdã e não revela o nome do editor. (Cf. LA FONTAINE, 1762*).

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A tipografia, com algum atraso em relação às outras artes, viveu em meados do século XVIII um período de grande originalidade. À leveza graciosa dos tipos de Fournier se seguiram as linhas despojadas de William Caslon e, com John Baskerville, Firmin Didot e Giambattista Bodoni, a geometrização e sóbria regularidade. Percebe-se, em todos esses estilos, o mesmo padrão clássico de rigor e precisão que pautavam as artes e as letras.

Na França em especial, a ilustração buscava antes de mais nada agra- dar, e alcançou técnica inigualada.” (ARAÚJO, 1986:503, grifo meu).28

A mesma tendência a burilar o estilo que se verifica na arte da gravura se manifesta igualmente no uso da língua – já então estabelecida em suas linhas mestras (léxico, gramática...) e que agora cabia refinar em seus aspectos estéticos e formais. Para agradar a certo público leitor, a tradução se conformava às exigências estilísticas da língua clássica que pautavam toda prática literária:

A expressão literária da ideologia da classe domi- nante nos séculos XVII e XVIII era o classicismo, o qual codificara o “bom gosto” segundo regras determinadas, cuja estreiteza era uma estreiteza de classe. Às exigências impostas por este “bom gosto” deviam atender não só as obras literárias originais, como também as traduções, em detri- mento das particularidades do original. (Andrei Fedorov, apud BALLARD 1992:148)

La Fontaine, ao colocar-se como autor de fábulas e contos “tirados” da cultura da Antiguidade, não fazia mais que levar ao ex- tremo a tendência, dominante na época, de recriar, adaptar, censurar, alterar os originais com a assumida intenção de adequá-los às exigências estéticas das normas clássicas. Estava ele em perfeita sintonia com seu tempo ao afirmar, no prefácio, que o segredo para cativar o leitor nem sempre consiste na “correção ou na regularidade”. A perfeição, para um poeta, reside na “bela composição dos versos”, na “bela linguagem” (LA FONTAINE, 1762:iv), daí dar-se ele a liberdade de “burilar tanto o alheio como o seu próprio”, eliminando, acrescentando, alterando, até obter algo que já não é o mesmo, e sim, “um novo conto” em que o criador original custaria a reconhecer sua obra (LA FONTAINE, 1762:vi).

Nisso parece repetir as palavras de Perrot d’Ablancourt, o qual, no prefácio à sua tradução (1654) da História verdadeira de Luciano, reconhece que seu trabalho, à força de recriar o original, já não é “pro- priamente uma tradução, mas é melhor que uma tradução.” (BALLARD, 1992:171). Nicolas Perrot d’Ablancourt (1606-1664) foi o mais ilustre 28

A técnica da gravura em metal foi a grande inovação da ilustração seiscen- tista, e durante dois séculos iria dominar a arte da ilustração. Os traços muito finos permitiam maior precisão na representação de plantas, partes da anatomia, detalhes arquitetônicos, o que significou um importante avanço para a edição de obras científicas descritivas, relatos de viagem, enciclopédias, etc.

representante deste estilo exacerbadamente etnocêntrico de traduzir que ficou na história da tradução como o das belles infidèles. Estilo próprio de uma cultura que levou ao extremo o impulso narcisista de “ser autossuficiente para, a partir desta suficiência imaginária, brilhar sobre as outras ao mesmo tempo em que se apropria de seus patrimônios.” (BERMAN, 1984:16). Neste período em que o francês se firmava como língua europeia da cultura, tida como modelo de bom gosto e requinte, traduziram-se bela e infielmente obras de todos os gêneros – do romance ao teatro, do ensaio ao panfleto satírico – segundo um mesmo espírito de superação do texto original e uma mesma preocupação de promover seu embellissement através dos critérios estético-estilísticos dominantes.

Entretanto, à medida que se assentava a primazia da Razão e se fazia mais forte a reação ao absolutismo, publicações de luxo passavam a não representar mais que uma ínfima parte da produção editorial, e o livro se tornava mais importante por seu conteúdo do que por orna- mentos e ilustrações. No Século das Luzes, surgia sobretudo enquanto fermento, enquanto veículo privilegiado de transmissão e renovação das ideias. No entanto, os critérios que inicialmente atendiam às exigências de refinamento de uma elite já estavam então consagrados, incorporados como padrão de legibilidade em todas as instâncias da arte, da escrita e da cultura, inclusive pelos próprios opositores do sistema que lhes dera origem.

Voltaire (1694-1778), filósofo das luzes, arauto da razão, ensaís- ta, polemista, escritor que inovou em diferentes gêneros literários, tal como o romance (com Candide), ou o teatro trágico (Zaïre), é lembrado, além disso, como o tradutor que introduziu o teatro de Shakespeare na França. E isso apesar de só ter traduzido, na verdade, alguns excertos de tragédias shakespearianas – entre os quais, notadamente, um trecho do Hamlet.

O excerto, que não ocupa mais de duas páginas da edição fran- cesa, resume-se aos 33 versos do famoso monólogo de Hamlet (ainda reduzidos a 24 na tradução), e se integra – quase ao modo de uma citação – à “Lettre sur la tragédie”, 18ª Carta das Lettres philosophi- ques* (1734). Nessa “Carta sobre a tragédia”, em que tece conside- rações sobre o teatro inglês, Voltaire não deixa de advertir seus leitores: Não pensem que eu tenha aqui vertido o inglês palavra por palavra; ai dos fazedores de traduções literais que, traduzindo cada palavra, enfraquecem o sentido. Aí é que se pode mesmo dizer que a

letra mata & e o espírito comunica a vida.29 (VOLTAIRE, 1734:218)

Voltaire, que por esta época já era ele próprio um aclamado dramaturgo trágico, trata visivelmente de adequar o texto original às expectativas do público francês: os pentâmetros iâmbicos de Shakes- peare são naturalmente transpostos para o obrigatório alexandrino da tragédia francesa clássica, enquanto o monólogo adquire certo tom “filo- sófico” bem ao gosto do tempo – e ao gosto do próprio Voltaire, que via nas “tragédias filosóficas” um veículo privilegiado para a discussão de ideias. Sob sua pena, o célebre verso To be, or not to be: that is the question se torna

Demeure ; il faut choisir, et passer à l’instant De la vie à la mort, ou de l’être au néant. (VOLTAIRE, 1734:216)

[Fique; é preciso escolher, e passar desde já Da vida para a morte, ou do ser para o nada.] numa reescrita em que custamos a reconhecer o texto original: para nós, não se trata sequer de tradução, como constata Berman (1999:38), o qual acrescenta, porém, que para Voltaire, e para a sua época, “tradução devia ser assim”. Comentava o próprio Voltaire, em carta a Anne Dacier de 1720, que, embora houvesse na França poetas capazes de traduzir bem Homero, “ninguém os lerá caso não mudem, amenizem, desbastem quase tudo. Pelo simples motivo de que se deve escrever para o seu próprio tempo, e não para um tempo pretérito.” (VOLTAIRE, 1836:219).

A tradução voltairiana dos versos de Shakespeare expõe esse impulso etnocêntrico de só reconhecer o outro para melhor devorá-lo, anexá-lo, reduzi-lo, que foi levado ao extremo pela tradução neo- clássica. Impulso que parece se confirmar no que Berman denominaria o “projeto tradutivo” de Voltaire: sua decisão de trazer ao leitor apenas um excerto do Hamlet, e inserido em sua própria escrita autoral.

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Referência à Epístola de São Paulo aos Coríntios (2Coríntios, 3, 6). A Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Edições Paulinas, 1985, p. 2176) acrescenta em nota: “Trata-se da “letra”, lei escrita, exterior do AT, comparada ao Espírito, lei interior do NT, e não da oposição entre a “letra” e o “espírito” de determinado texto.” Na Epístola aos Romanos 7, 7, são Paulo já falava em “podermos servir em novidade de espírito e não na caducidade da letra”.

Um exame mais atento da Carta sobre a tragédia, porém, permite apreciar com outros olhos o projeto voltairiano. Sobretudo se a considerarmos como a um paratexto que “cerca” e “prolonga” os versos traduzidos de Shakespeare para “garantir sua presença no mundo, sua ‘recepção’ e seu consumo.” (GENETTE, 2009:9).

A Carta, que traz excertos traduzidos de outros poetas (como Dryden), e visa a apresentar o teatro inglês ao público francês, abre-se com a afirmação de que “os ingleses, assim como os espanhóis, já tinham um teatro na época em que, na França, este mal engatinhava.” (VOLTAIRE, 1734:211). E prossegue, a partir daí, entre ironia e ambigui-

dade, a contrastar ingleses e franceses, apontando ou aludindo a erros e acertos numa tática bastante próxima do “morde e assopra” – e que parece ter funcionado, já que foi lida por um público inédito de leitores ingleses e franceses. Assim, por exemplo, quando enaltece o gênio “forte e fecundo, natural e sublime” de Shakespeare, o qual, embora não possua uma centelha sequer de “bom gosto” nem o menor conhecimento das regras, continua sendo “imitado pela maioria dos autores modernos” (VOLTAIRE, 1734:211). Temos, de um lado, a sugestão implícita de que, à diferença de Shakespeare, os franceses dominam as regras do “bom gosto”. Mas, de outro, cria-se para esses um vago incômodo: afinal, um século após sua publicação na Inglaterra, as tragédias do autor tão “imitado” seguiam ignoradas na França, por não se encaixarem na estética clássica consagrada por Corneille ou Racine. Mais adiante, Voltaire afirma a excelência dos trágicos ingleses, cujas peças, “quase todas bárbaras, desprovidas de civilidade, ordem e verossimilhança, produzem, em meio ao breu, surpreendentes lampejos.” (VOLTAIRE, 1734:220, grifo meu). Embora pareça sugerir uma arte bruta ainda a ser lapidada para poder se adequar ao refinado leitor francês, não deixa de atiçar a curiosidade deste último. A alusão à “barbárie” dos ingleses e à falta de “bom gosto” de Shakespeare pode, por este ângulo, ser enten- dida como estratégia de mediação: ao antecipar a esperada reação do senso comum francês à rusticidade alheia, desarma o leitor e o predispõe a acolher o texto. É sintomático, neste sentido, ele se referir a Shakes- peare como ao “Corneille inglês” (VOLTAIRE, 1734:211), aproximando o “estranho” do “conhecido”, valorizando o dramaturgo estrangeiro pela associação com seu aclamado colega nacional, e assim autorizando o interesse do leitor.

Chama especialmente a atenção Voltaire pedir aos leitores que “desculpem a cópia em favor do original, e lembrem sempre que, ao ver uma tradução, não estão vendo mais que o pálido reflexo de um belo quadro.” (VOLTAIRE, 1734:216) Reitera assim esta que é a função

primeira de todo texto traduzido – remeter o leitor ao original. E o que é mais: embora se curve, e curve o texto, às regras estilísticas de seu tempo, reconhece, à diferença de La Fontaine ou D’Ablancourt, a superioridade deste original.

A Carta sobre a tragédia contraria, assim, a pura e simples domesticação que a tradução dos versos permitia supor, e afirma, na verdade, a vocação de todo gesto tradutório de “fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro” (BERMAN, 1984:16). Uma contradição que parece reproduzir o conflito latente que já minava então o regime absolutista sob o qual florescera a reescrita etnocêntrica. O contraste com o estrangeiro como meio de estimular a reflexão sobre o nacional, o contato com o outro como oportunidade de questionar, repensar o pró- prio é, aliás, o fio condutor das Cartas filosóficas como um todo, desde sua redação até sua conturbada trajetória editorial.

Tido como uma espécie de manifesto iluminista, este primeiro trabalho do Voltaire polêmico e revolucionário foi concebido como obra de vulgarização destinada a um emergente público de leitores ávidos, mas só medianamente cultos, que ele pretendia despertar para a reflexão crítica. Redigidas ao longo de seus dois anos (1726-28) de exílio na Inglaterra, país que Voltaire admirava e onde foi muito bem acolhido, as cartas abordam temas tão variados como religião, ciência, política, arte e filosofia, num tom de genuína admiração (não isento de crítica) pelo espírito inglês de liberdade e tolerância – e prenhe, nas entrelinhas e entre ironias, de ataques velados à ordem francesa estabelecida durante o Antigo Regime. Não podiam, portanto, ser divulgadas na França, e uma primeira tiragem, impressa em Rouen, foi mantida a sete chaves à espera de momento mais propício.

Entretanto, e depois de reescrevê-las ele mesmo em inglês, Voltaire mandava pu- blicar em Londres (1733) as Letters comcerning the english nation* 30. É