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O propósito de William Morris

2.2 U M VASTO PROJETO TRADUTIVO : AS SAGAS ISLANDESAS

2.2.3 O propósito de William Morris

Ao seu tempo ele via como o “Century of Commerce”. Não que desmerecesse suas conquistas:

[Nosso século] derrubou muitos preconceitos e ensinou muitas lições que o mundo até então fora lento em aprender; trouxe a liberdade para muitos homens que em outros tempos seriam escravos, de corpo ou de mente, ou ambos; se não difundiu totalmente a paz e justiça pelo mundo [...] ao me- nos incitou novos anseios por paz e justiça; suas realizações têm sido boas e fartas. (MORRIS, 1880) Constatava, no entanto, que a civilização, tal como evoluíra, trouxera em seu rastro a alienação, um uso perverso da máquina (útil em si), o acirramento das barreiras sociais, a injusta divisão do trabalho, a massificação... Uma sociedade assim fragmentada, em que o indivíduo, já sem vínculos com a natureza, perdera sua capacidade de ver e sentir, só podia assistir à brutal decadência da arte. Utópico estudioso da história, acreditava, porém, que o estado de embrutecimento moral, 7

intelectual e estético da atual sociedade, longe de ser uma situação irreversível, constituía apenas um estágio da evolução:

Cada época, assim como tem seus próprios pro- blemas para perturbá-la, seus próprios desatinos para estorvá-la, tem também sua própria tarefa a cumprir, indicada por infalíveis sinais dos tempos. [...] Nós, na segunda metade do último quarto deste século, podemos fazer alguma coisa no sentido de colocar a casa em ordem. (MORRIS, 1880).

Acreditava ser essencial, no atual estágio da civilização, livrar-se das más concepções acumuladas, reelaborar valores perdidos em meio à agitação e a pressa, ou esquecidos em detrimento de objetivos mais prementes, e investir na educação, ou reeducação, do homem, para permitir-lhe uma clara percepção de seu mundo e consciência crítica de seu tempo. E nisso era fundamental o papel do artista:

Como educar, realmente, homens que levam vida de máquinas, que só pensam durante as poucas horas em que não estão trabalhando, homens que, em suma, passam a maior parte de suas vidas fazendo um trabalho impróprio ao digno desen- volvimento de seus corpos e mentes? Não se pode educar, não se pode civilizar um homem, sem lhe dar um quinhão de arte. (MORRIS, 1880)

Onde, porém, numa época destituída de valores estéticos, tomada pelo mau-gosto da produção em massa, encontrar inspiração para produzir uma arte que despertasse o desejo do belo? Como muitos artistas e intelectuais, insatisfeitos e angustiados diante do mundo que os cercava, era natural que se voltasse para o passado e, como eles, encon- trasse uma referência ideal na Idade Média – que se afigurava como um mundo anterior à fragmentação em massa, à alienação de valores essenciais à integridade humana. À diferença de muitos vitorianos, porém, não se voltava para o Medievo com o nostálgico sentimen- talismo de quem acalenta um sonho perdido. Num tempo em que arremedos de estilo gótico contaminavam, numa autêntica febre revivalista, todas as modalidades da arte e da literatura, Morris se opunha veementemente à mera imitação de modelos pretéritos: “Não copie nenhum estilo, crie o seu próprio; mas estude a história de sua arte

[...] estude todo ou qualquer estilo que traga em si um real floresci- mento.” (MORRIS, 1881)

Um retorno ao passado era para ele impossível, além de inútil e nocivo.

É uma estranha visão da história, a meu ver, essa que nos induz a voltar nossos passos para o passado, ao invés de nos oferecer uma centelha de percepção para o futuro. (MORRIS, 1884)

Nisso seguindo a noção marxista da reescrita, de que a história se move numa espiral que integra progressivamente o passado ao presente numa série de retornos cíclicos, entendia que o resgate de certos elementos do passado era essencial para se observar o presente com um olhar renovado. Que o conhecimento da história, da história da arte, inclusive, oferecia o distanciamento necessário para uma atitude crítica em relação ao presente e, por aí mesmo, infletir os rumos do futuro.

Todo progresso, cada etapa do progresso, implica um movimento tanto para trás, quanto para frente; o novo desenvolvimento retorna a um ponto que representa o antigo princípio alçado a um nível mais elevado; o antigo princípio ressurge trans- formado, purificado, fortalecido, e pronto para avançar na vida mais plena que adquiriu em sua aparente morte. (BAX;MORRIS, 1885)

Não tinha da Idade Média uma visão acrítica, nem desconsi- derava seus problemas de brutalidade e tirania. Mas enxergava nela uma unidade, uma harmonia entre o homem, a natureza, o trabalho e a arte já desaparecida na sociedade inglesa oitocentista, a qual acirrava inclusive, com suas desigualdades sociais, as barreiras entre os homens.

Daí seu fascínio pelas sagas islandesas. Via nelas o retrato de um mundo não necessariamente belo, nem vitorioso, mas um mundo uno, inteiro o suficiente para integrar inclusive as partes feias ou sombrias que fazem parte de um todo.

Histórias que contam aspiração dos homens por algo além do que a vida material lhes pode oferecer, suas lutas pela prosperidade futura de sua raça, seu amor altruísta, seu esforço desinteressado; coisas que são temas para a melhor arte; temas em que há esperança, sem

dúvida, embora possam ser bem tristes em aparência: a derrota, semente da vitória, e a morte, semente da vida, transparecem em muitas delas. (MORRIS, 1881)

Um mundo em que todos formavam um corpo e onde o indi- vidual, à diferença do individualismo que viceja num mundo massificado, se expressava em harmonia com o coletivo. No prefácio que assina com Magnússon à tradução da Grettir’s Saga, destaca a coerência do herói Grettir que, movido pelas circunstâncias de suas infindáveis tribulações, às quais se amolda em meio a contradições e conflitos, não se deixa alterar e se mantém, do início ao fim, o mesmo homem. Da mesma forma, as demais personagens, sempre subordinadas ao protagonista, nem por isso deixam de ter seu próprio perfil firme- mente delineado: “Longe de se comportar como mero fantoche, cada uma delas age como é esperado que aja, sempre se tendo em conta a atmosfera peculiar dessas histórias.” (MAGNÚSSON; MORRIS, 1869:xiv).

Destaca também que esta solidez das personagens só é possível graças à profunda integração do sagaman, que primeiro registrou as sagas por escrito, com seus leitores e com o universo que relata. À dife- rença dos poetas contemporâneos, obrigados a se expressar “numa linguagem não compreendida pelo povo”, o sagaman “compreendia totalmente os costumes, a vida e, mais que nada, a mentalidade dos atores envolvidos.” (MORRIS, 1883). Isto porque ainda se sentia inserido na tradição oral em que se construíam as sagas desde muitos séculos.

É essencial, na mundivisão morrisiana, a noção de que o artista, sem por isso abrir mão de sua originalidade, reconhece de uma ou outra forma seu pertencimento à tradição, já que “homem nenhum pode construir um prédio com as próprias mãos.” (MORRIS, 1884)

A tradução das sagas significava, portanto, inscrever-se na linhagem ancestral de sua transmissão, retomando-a no ponto em que tinha se interrompido para lhe dar continuidade. Retornando às fontes, resgatando as narrativas concebidas desde tempos imemoriais, cumpria assim a dupla função do poeta-contador: manter vivas as histórias e perpetuar, com elas, “the things which are for all ages true” que seu mestre John Ruskin (1893:24) mencionava a respeito dos mitos. Se histórias não contadas perecem ou se congelam em mitos ocos, sempre que recontadas revelam aspectos ainda insuspeitos de seu conteúdo arquetípico, e reatualizam suas “constant laws common to all human nature” (RUSKIN, 1893:24) para as sucessivas gerações de ouvintes.

Traduzir uma saga islandesa numa story inglesa significava apresentar à sociedade vitoriana um mundo fundado em valores culturais, morais e sociais – tais como integridade, autonomia, veracidade, individualidade – que se encontravam, segundo Morris, seriamente ameaçados, senão perdidos, numa Inglaterra em que impe- ravam os princípios do lucro e do comércio competitivo. Significava oferecer-lhe subsídios para repensar seu mundo pelo contraste com outra cultura.

Num momento em que impunham suas normas e valores por todo um imenso Império, sabiam os ingleses ser inevitável admitir a presença do estrangeiro entre eles. A tradução, enquanto exercício de alteridade, constituía decerto, naquele contexto, instrumento privilegiado para reco- nhecer essa presença. Mas podia também ser usada para, apropriando-a sem reconhecê-la, reiterar a superioridade britânica e fortalecer a ima- gem do Império. Exemplo extremo, quase caricatural, é a declaração do escritor e político conservador Thomas Macaulay, para quem “uma simples estante de uma boa biblioteca europeia vale o mesmo que toda a literatura nativa da Índia e da Arábia.” (apud EYSTEINSSON; WEISSBORT, 2006:197). Uma imperial arrogância denunciada por Morris quando, por exemplo, constatava o quão rapidamente vinha sucumbindo, face à conquista ocidental e ao comércio, a arte popular indiana (e do Oriente em geral): único orgulho, único traço distintivo deixado ao povo indiano após a conquista, esta arte vinha sendo, segundo ele, “assassinada pelo comércio da civilização moderna” e transformada em relíquia nos museus ingleses (MORRIS, 1880).

Queria Morris, por sua tradução, que a alteridade das sagas fosse acolhida nos seus próprios termos, e não naqueles do discurso imperial dominante. Sua fidelidade ao texto original denota, assim, uma intenção política clara. Sendo que, vale lembrar, embora o respeito pelo texto- fonte fosse uma tendência partilhada por boa parte dos tradutores vitorianos, este se manifestava sobretudo, como bem atesta a tradução assumidamente infiel de FitzGerald, nas traduções de obras clássicas ou de literaturas mais bem cotadas na hierarquia das línguas.

Traduzir as sagas não significava, para Morris, reduzi-las a um espelho que devolvesse à sociedade vitoriana sua própria imagem maquiada de exotismo. Mais do que aparar as diferenças, sua intenção era ressaltá-las, induzindo seus leitores, por via do estranhamento, a uma “new-seen”8 percepção de sua própria língua e cultura. O estrangeiro é visto, aqui, como um agente de transformação. Mais do que torná-lo 8

compreensível e assimilável, a tradução o mantém intencionalmente a certa distância, como preservando sua alteridade. Daí a escolha de inver- sões sintáticas, neologismos, obscuras kennings, estranhezas que reme- tem inevitavelmente ao texto islandês – reconhecido e honrado em sua precedência. Com isso honra e reconhece, ao mesmo tempo, o texto traduzido enquanto tal – texto distinto de um original que não pretende substituir, texto singular que traz as marcas do sujeito que o produz.

Todo objeto feito com arte, dizia Morris, “deve trazer marcas evidentes da mão do homem, guiada por seu cérebro.” (MORRIS, 1882). Por suas escolhas inusitadas, que não passam despercebidas porque forçam a atenção do leitor, seu texto traz marcas visíveis da mão que traduz. Marcas que tanto revelam a presença do tradutor como a recusa de “seu cérebro” a uma total absorção do estrangeiro – marcas que indicam que conviver com a diferença é se deixar transformar por ela.

Morris, assim, tornava visível o gesto de assimilação do outro num contexto em que o discurso vigente tratava de disfarçar a violência implícita do colonialismo (o próprio termo “império” mascara, ao absorvê-las, fronteiras e desigualdades). Cabe aqui a observação de Venuti sobre a profunda hipocrisia política subjacente à exigência de fluência na tradução que até hoje domina sua teoria e prática em língua inglesa, e que ele vê como

a discursive strategy ideally suited to domes- ticating translation, capable not only of executing the ethnocentric violence of domestication, but also of concealing this violence by producing the illusionistic effect of transparency. (VENUTI, 1995:61)

Venuti menciona em seguida, entre as pouquíssimas exceções a essa regra, “o arcaísmo vitoriano de Francis Newman e William Morris”.

Permitir que a língua inglesa se deixasse transformar pelos “estrangeirismos” na tradução, reconhecendo no “outro” um agente de transformação, já era, em si, significativo. Mais significativo ainda quando, no caso das sagas islandesas, o Outro detinha, preservados, elementos da língua e história próprias, e oferecia à sociedade vitoriana a oportunidade de se reapropriar de valores seculares que eram seus, e dos quais se alienara por força de um sistema corrompido que a apartava de suas raízes. Em outras palavras, o estrangeiro representado pelas sagas permitia à sociedade vitoriana resgatar aquilo que essa tornara estranho para si própria: seu passado e sua tradição.

Percebe-se aí um propósito de Morris expresso em toda a sua obra: reatualizar na sociedade em que vivia seu próprio passado a fim de promover uma visão crítica de seu presente. Todas as obras que esco- lheu traduzir revelavam (com exceção de Beowulf, antigo poema anglo- saxão), aspectos da cultura inglesa herdados de outros povos. Eram todas elas escritas em línguas mortas (grego e latim) ou arcaicas (inglês antigo, francês medieval). As sagas islandesas constituíam, neste senti- do, um caso à parte: a língua em que tinham sido registradas, seis séculos antes, ainda era viva e comumente falada no século XIX, como o próprio Morris pudera compreender nas duas viagens que fizera à Islândia, em 1871 e 1873. Daí sua imensa admiração por este povo que

soube preservar o registro da religião e tradições das tribos góticas, e indiretamente, das tribos teutônicas; o instrumento desta preservação é a língua de seus ancestrais, que permanece entre eles praticamente intacta. [...] Seu país é, para mim, uma Terra Prometida. (MORRIS, 1887-b) De uma forma ou de outra, porém, todos os textos traduzidos por Morris atendiam ao seu intento de transformar a sociedade em que vivia confrontando-a com sua própria história e tradição. Neste sentido, revela-se estratégico o uso recorrente de termos arcaicos. Se toda tradução aponta, numa língua de chegada, o que esta poderia ser se fosse outra, o arcaísmo, segundo George Steiner,

introduz uma existência alternativa, um “podia ter sido” ou um “poderá vir a ser” na substância e na condição histórica da nossa própria língua, lite- ratura e legado de sensibilidade. (apud BASSNETT, 2003:124)9

Traduzir as sagas era revelar, portanto, através delas, o “poderia ter sido” ou um ainda “pode vir a ser” da língua inglesa. Era dar a esta a oportunidade de se reinventar no contato com essas narrativas transmitidas oralmente ao longo dos séculos, cujo tom atemporal e arquetípico imprimia-lhes um caráter sagrado.

Um tom dificilmente recriado pela linguagem cotidiana contem- porânea. “Seria intolerável ler uma saga islandesa vertida no dialeto

9

dominante dos dias atuais – o dialeto do jornal inglês”, declarava Morris a Eiríkr Magnússon (apud WHITLA, 2001:68)

Ao dar ao seu texto um sabor obsoleto, Morris sublinha o fato de estar traduzindo de uma língua não só escrita muito tempo atrás, como escrita num tempo em que a linguagem ainda não se esvaziara de seu sentido pelo uso, em que os homens ainda tinham, como dizia Oscar Wilde, profunda consciência do real sentido das palavras. O próprio uso de arcaísmos, no que traz à tona sentidos e formas de há muito esque- cidos, evoca um mundo pretérito em que a linguagem ainda possuía seu pleno sentido. Mobiliza assim recursos de recriação da língua que, de outro modo, continuariam insuspeitados.

Se com isso refreia a compreensão e obscurantiza os significados, não deixa de remeter ao tempo mítico das sagas islandesas, cujas “things which are for all ages true” podem ser intuídas, vislumbradas pela sensibilidade, mas não apreendidas pela simples razão lógica. Não deixa de remeter, também, ao próprio gesto de traduzir que, ao expor os “intraduzíveis”, denuncia as lacunas da própria língua nativa e de toda linguagem – os indizíveis que, justamente, só encontram espaço no domínio da poesia. A arte, dizia ele, “para encher os olhos e contentar a mente, deve conter certo mistério.” (MORRIS, 1880).

Um mistério que a linguagem cotidiana, desgastada pelo uso, perdeu a capacidade de reproduzir. Em carta a Georgiana Burne-Jones, de janeiro de 1877, Morris comentava, a respeito da tradução de George Dasent de The Story of Burnt Njal: “Estive lendo Njala no original [...]: é ainda melhor do que eu lembrava; seu estilo é tão solene (Dasent usa, vez ou outra, termos demasiado simples [homely] que me parecem puxá- lo um pouco para baixo).” (KELVIN; MORRIS, 1984:344).

Enquanto o familiar, o “caseiro”, reduz a solenidade estilística da saga, o resgate de termos caídos em desuso, as transgressões a regras aceitas de gramática e sintaxe, os neologismos inspirados na estranha língua-fonte, são alguns dos recursos oferecidos pela tradução para revi- talizar sua própria língua nativa. Quando torna a linguagem “difícil”, desafiando seus padrões convencionais, quando dissocia o universo das sagas do mundo cotidiano e provoca uma desfamiliarização com a língua – Morris está cumprindo, pela tradução, uma das funções da poesia: “tornar claras, tornar estranhas, as coisas familiares” (familiar things made clear / made strange) nas palavras do narrador de seu Pilgrim of Hopes (1886).

O mistério das sagas islandesas preservado na tradução morri- siana exige, para ser vislumbrado, um esforço por parte do leitor – o esforço de se reapropriar do sentido original e profundo das palavras de

sua língua, desbanalizadas no contato com o espírito e a letra do mistério estrangeiro.

Embora Morris visasse um público amplo, medianamente educado, deixa ele claro, no prefácio que redige com Magnússon à tradução da Volsunga Saga:

Confiamos que o leitor com sensibilidade poética irá abrir caminho entre estranhas temáticas ou elementos inusitados, obstáculos que poderão eventualmente perturbá-lo de início, e descobrir toda a natureza e beleza [da obra]. (MAGNÚSSON; MORRIS, 1870: x, grifo meu)

E se confia que o leitor vai se dispor ao esforço de aceder ao mistério e poesia da Volsunga Saga, será em parte porque ele próprio, enquanto leitor, precisou superar a estranheza que lhe impunha a estrangeireza do texto.