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As estratégias de abordar o passado produzindo-o como visibilidade

No documento Universidade e lugares de memória (páginas 30-41)

Procuraremos, ainda que de maneira bastante breve, apresen- tar algumas dessas formas de produção de visibilidade; a fim de dei- xar mais claro nosso argumento: o de que a produção de objetos como integrantes de um patrimônio coletivo possui uma historici- dade, contrapondo-se, por esta perspectiva de análise, ao supos- to de que seria a própria natureza dos objetos patrimonializáveis 10 Consultar a respeito: POULOT, Dominique. Une histoire du patrimoine em Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2006.

a responsável por sua condição de legado e herança comum a ser preservada e transmitida de geração em geração.

a) A cultura antiquária.

Os objetos que modernamente aprendemos a olhar como integrantes de um patrimônio histórico e que supostamente deri- variam essa sua condição das marcas do tempo inscritas em suas formas, foram em muitos casos apreendidos e vistos segundo outros procedimentos de deciframento. Desempenharam papéis distintos para aqueles que deles se ocupavam e respondiam a demandas diferentes com relação à necessidade de sua preservação, con- servação e exibição ao olhar do outro. Estabeleciam, igualmente, uma forma distinta de mediação entre o tempo presente, o tempo dos colecionadores e de suas coleções, e o tempo pretérito, aquele dos objetos meticulosamente procurados e organizados segundo princípios bastante diversos daqueles que o tornarão, num outro quadro referencial e de significação, herança coletiva de uma comunidade ou prova material da existência do passado.

Essas não eram as preocupações e os interesses que dirigiam esses colecionadores da época moderna em sua busca por restos materiais do passado. A coleção presentificava o tempo passado, tornava-o novamente vivo aos olhos de seus proprietários, uma relação inviabilizada pelo moderno conceito de História que ao se afirmar no horizonte intelectual das sociedades européias da se- gunda metade do século XVIII, tornara o passado definitivamente um outro tempo distinto e radicalmente diverso do presente. E é exatamente pelo olhar construído a partir do moderno concei- to de história que aprendemos a ver no trabalho do antiquário um colecionismo desprovido de sentido e finalidade, como se os objetos reunidos por estes eruditos e letrados do começo da Época Moderna não obedecessem a nenhum critério de seleção e escolha.

É também partilhando o sentido moderno do conceito de História que educamos nosso olhar para ver as coleções de peças antigas, de vestígios do passado, como um trabalho diletante e por isso irreconciliável com as tarefas modernas que se esperava do traba- lho com a história e com os restos do passado.

Fortemente marcada pelos valores do pragmatismo, a cultura das Luzes estabelece uma separação radical com o sistema colecio- nista de objetos, formulando novas demandas para a tarefa de reunir os vestígios e restos do passado. Contudo, é preciso que tenhamos claro que a prática antiquária ao ser vista pelo olhar da História e do historiador pode e deve ganhar um outro sentido, libertando-a da visão da qual ficou prisioneira e tributária e que resultou da leitura das Luzes. Com isso queremos retomar nosso argumento de que antes de serem vistos como “patrimônio histórico”, muitos objetos foram vistos e interpretados de forma distinta, sendo o exemplo da coleção antiquária apenas uma dessas possíveis existências para tais objetos. Reforça-se assim nossa interpretação de que olhar o patrimônio importa em percebê-lo em sua historicidade e não em sua natureza.

b) O regime da história como “mestra da vida”.

“Eu o fiz percorrer muito rapidamente, diz Corinne a lorde Nelvil, alguns restos da história antiga; mas o senhor compre- enderá o prazer que se pode tirar destas pesquisas, ao mes- mo tempo eruditas e poéticas, que falam tanto à imaginação quanto à razão. Há em Roma um bom número de homens dis- tintos, cuja única ocupação é a de descobrir uma nova relação entre a história e as ruínas. Lorde Nelvil responde: este gênero de erudição é muito mais interessante do que aquele que se adquire pelos livros: pode-se dizer que faz-se reviver aquilo que descobrimos, e que o passado reaparece sob a poeira que o encobria.” (Corine de Mme. De Stael)

Ao entrar na cidade de Roma, Corinne, personagem título do livro de Madame de Staël, conduz o seu amado Oswald, lord Nel- vil, pelas ruínas da cidade emblema do passado e de sua grandeza, itinerário obrigatório para a boa formação do letrado europeu das Luzes e cidade também visitada pela autora do romance. A tensão dramática tem como cenário a própria história, presença visível através de seus restos materiais e constante indispensável para a cultura letrada do oitocentos, ela mesma se definindo como uma cultura histórica por excelência. Triunfo da História na sua capaci- dade de significar a vida dos homens, dando-lhes um sentido de continuidade para além do tempo presente de suas experiências finitas.

A História como parte central da cultura do oitocentos apa- rece agora, pelas palavras da personagem título do romance, não apenas como um conhecimento que pode evocar o pra- zer estético, da mesma ordem que a poesia, mas com seu co- nhecimento pode advir um conhecimento “savante”11, que ao

mesmo tempo satisfaça à imaginação como ao pensamen- to. Um conhecimento combinando assim o prazer estético e a demarche racional exigida pelos cânones da cultura iluminista. O passado deve agora poder ser racionalmente apropriado e para isso o trabalho de pesquisa se faz necessário e indispensável, o que segundo ainda a personagem do romance tem estimulado o tra- balho de um novo “homem cultivado”: aquele justamente que se ocupa de estabelecer as relações entre os restos visíveis na cidade de Roma e o seu passado. Estes traços e marcas do passado não se prestam apenas ao gosto do amante erudito do passado, cioso da sua conservação, mas sobretudo ao olhar que, ao pousar sobre estas ruínas, busca estabelecer relações que transformem a expe- riência do passado em explicação para o presente das sociedades humanas. E segundo o seu interlocutor, o nobre inglês Nelvil, esta seria uma profissão a que se dedicaria com prazer - ao invés da car- 11 Saber erudito (corresponde ao verbo savoir, na língua francesa).

reira das armas a que sua condição de nobre o obrigava - visto que a vê como uma forma de erudição superior à que se adquire pelos livros no sossêgo de sua biblioteca.

Mas o que seria exatamente novo nesta forma de erudição? O conhecimento que se adquire pela pesquisa das coisas do passado, significando desta forma que pode haver o que se conhecer deste passado, superando uma perspectiva, segundo a qual a erudição não alteraria substantivamente o conhecimento existente acerca do passado das sociedades humanas. Vitória definitiva dos modernos, que ao derrotarem a erudição, transformam definitivmente o pas- sado em História. Derrota igualmente de um regime de visualidade própria ao sistema colecionista e instauração de uma nova ordem visual, em que os objetos do objeto, seus traços, restos e vestígios deveriam cumprir uma função diferenciada para as demandas em vias de formulação pela cultura ilustrada do setecentos.

Prosseguindo seu percurso pela cidade de Roma e pela visita de seus monumentos históricos, um outro sentido central da cultu- ra histórica das Luzes delineia-se com clareza para os homens do presente: ao defrontarem-se com a história dos homens do passado poderiam aprender pelo exemplo, readquirindo assim, a História, o seu papel magistral. A contemplação de Roma e de seu passado, visível através dos restos disponíveis à contemplação do olhar, poderia estar a serviço de outro importante componente da cultura histórica das Luzes européia: desde os etruscos, agora já integrados à história de Roma, até o presente, o estudioso do passado pode- ria acompanhar a evolução do “espírito humano” através de suas realizações materializadas naquela cidade. Portanto, contemplar o passado adquire um sentido preciso. O de poder constatar e mesmo provar esta evolução, que para além de marcar as particularidades da sociedade romana, seria o sentido mesmo dos homens estarem no mundo, cabendo assim à História o papel de fundamentar este sentido.

Nas palavras da personagem principal, Roma como cidade não é apenas uma aglomeração de habitações, mas é sobretudo « l’his- toire du monde, figurée par divers emblèmes, et représentée sous diverses formes.”12 Visitar Roma era, para os cânones desta cultura

iluminista, muito mais do que visitar uma cidade ; era a própria pos- sibilidade de acesso à história dos homens, materializada de forma privilegiada no espaço da cidade. A visão do passado, mais do que a própria leitura dos textos, confere um novo poder de convencimen- to e persuasão para esta cultura iluminista, contribuindo para que o estudo deste passado adquira um novo valor e significado. Estes vestígios e traços parecem definitivamente libertos do diletantismo próprio ao colecionismo, segundo a avaliação dessa nova cultura histórica em emergência. E é nessa sua reaparição que o passado pode ensinar alguma coisa!

c) O moderno regime de historicidade. O futuro como projeto.

O século XIX afirmou-se definitivamente como o século da his- tória, dada a força que as imagens do passado adquirem para as sociedades ocidentais. O lugar central que estas imagens assumem para estas sociedades foi analisado em trabalhos clássicos do his- toriador inglês Stephen Bann13, que procurou apresentar um leque

variado de investimentos sociais em narrar o passado pelas socie- dades européias do dezenove. Da pintura histórica, passando pelos museus de história e até a afirmação do campo disciplinar no século XIX, o interesse central pelo passado marcou profundamente as sociedades ocidentais àquela altura. A história participava de um trabalho de luto pela consciência da perda definitiva do passado como referência e modelo para as sociedades do presente. A tra- 12 Madame de Staël. Madame de Staël. Corinne ou l’Italie. Paris: Gallimard, 1985. p. 136.

13 Consultar entre outros trabalhos: Stephen Bann. Romanticism and the rise of His-

tory. New York: Twayne Publishers, 1995. As invenções da História. Ensaios sobre a re-

dição, que até então parecia pautar as condutas e fornecer os mo- delos para ação, vê-se questionada e subtraída desse seu poder. O passado agora deveria cumprir funções diversas daquelas que até então haviam sido formuladas como demandas pelas coletivida- des humanas. O passado, transformado definitivamente em Histó- ria, será objeto de um conhecimento regrado por procedimentos controlados por uma comunidade de especialistas que assumem o papel de intérpretes desse tempo pretérito.

Na formulação clássica do historiador alemão Reinhard Kosel- leck14, espaço de experiência e horizonte de expectativa afastam-se

de maneira radical, produzindo a impossibilidade do espaço de experiência significar um sentido claro de orientação para as socie- dades humanas no futuro, tendo em vista a velocidade das transfor- mações do presente. A Modernidade, com sua experiência peculiar do tempo, inviabiliza por completo a possibilidade de que o hori- zonte de expectativas possa ser formulado tendo como base esse espaço de experiência. O futuro, segundo essa nova experiência temporal, pode comportar um leque variado e amplo de possibili- dades, não necessariamente dadas em um determinado espaço de experiência. A cultura histórica que então se afirma, torna o passado objeto de uma ciência específica, finalmente integrada aos quadros das disciplinas acadêmicas e universitárias. Do mesmo modo esta cultura histórica elabora estratégias de visualização do passado que se traduzem pela invenção do patrimônio e das “antiguidades nacionais”.

O conceito de patrimônio vincula-se, definitivamente, à noção de herança e legado para o futuro, agora não mais a partir de seu sentido original de herança familiar, mas de herança de uma cole- tividade, forma de congregar no presente e projetar para o futuro. Permanece, contudo, seu apelo afetivo próprio dos investimentos na memória, que convoca as sociedades à tarefa da recordação no 14 KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos his- tóricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

seu sentido de “recordare” (com o coração). Os monumentos (de monere; advertir, lembrar) operam como interrogadores da memó- ria, como sinalizadores de uma pergunta que deve ser formulada não apenas aos vivos no presente, mas para aqueles que viverão no futuro, operando os laços de continuidade entre estes dois tempos. O patrimônio inscreve-se, portanto, neste esforço oitocentista de produzir o passado como História de uma comunidade - a Nação moderna - cuja invenção recente deve ser combatida pela sua pro- jeção imaginada em direção a um passado remoto, capaz de asse- gurar sua legitimidade política no presente.

d) O presentismo e a patrimonialização recente.

Voltando ao nosso ponto de partida, afirmávamos que nossa contemporaneidade parece conferir especial atenção ao trabalho de patrimonialização dos bens considerados históricos como forma de protegê-los da inexorável passagem do tempo e dos seus efeitos sobre os restos e vestígios do passado. Uma sensibilidade aguçada em relação a esses vestígios parece conferir-lhes um valor peculiar que efetivamente em muito transcende seu valor como objetos em si. O que vem mudando em nossa relação com esses objetos, a que um autor denomina de “portas de entrada privilegiada para o passado?” 15 Por que as sociedades contemporâneas parecem mais

afetadas pelo desaparecimento desses bens colocados sob a pro- teção de uma política estatal? Retomo aqui as instigantes suges- tões de François Hartog16 em seu recente livro sobre os Regimes de

historicidade, em que diagnostica esta sensibilidade aguçada em relação ao patrimônio como parte de alterações ainda em curso em nossa relação com o tempo.

A percepção cada vez mais acelerada do tempo pelas socie- 15 BALLART, Josep. El 1. patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel, 2002.

16 HARTOG, François. Op. Cit. Consultar especialmente o capítulo 5 intitulado Patri- mônio e Presente.

dades contemporâneas, vem alterando nossa relação com o futuro e também com o passado. Ou melhor, essa nova percepção tem contribuído para novos investimentos afetivos em relação a essas temporalidades. O futuro, que estava no foco da Modernidade como o tempo das realizações e afirmação do progresso, parece ceder aos poucos lugar a um tempo que guardaria maiores possibilidades de certeza e segurança; o passado. As profundas transformações que tem alterado de maneira radical a relação dos homens com a Natu- reza na contemporaneidade, provocaram um desinvestimento com relação ao futuro, que no lugar de realizar o progresso acena-nos com crises as mais diferenciadas: desemprego, crise energética e alimentar, crises ecológicas. Assim, o futuro parece incerto e inseguro diferentemente daquilo que fora para a cultura histórica oitocen- tista. A esse tempo de incertezas e dúvidas investe-se no presente, que parece teimar em não passar, e, portanto, em transformar-se em história.

A confiança no futuro é substituída pela necessidade de preservação no presente como forma de salvaguardar-nos das incer- tezas desse tempo à nossa frente. A explosão recente das narrativas memorialísticas, dos discursos testemunhais e de uma febre patrimonial, articulam-se a esse processo de mudanças com relação à nossa percepção da passagem do tempo e de seus efeitos. São novas formas do presente capturar o passado e produzir sentido para as sociedades contemporâneas. Aqui cabe uma observação importante. É preciso, contudo, ter clareza que a esse crescimento vertiginoso do trabalho social da lembrança, não corresponde necessariamente uma relação mais crítica em relação ao passado. Se a defesa de uma política preservacionista integrou-se definitiva- mente às agendas políticas contemporâneas - o que é certamente positivo -, permitindo dessa forma que restos do passado permane- çam visíveis aos olhares de gerações futuras, a preservação não nos assegura por ela mesma uma relação mais crítica com o passado.

Em nossa contemporaneidade são inúmeros os interesses que se entrecruzam na tarefa de preservar o patrimônio histórico, inte-

resses muitas das vezes conflitantes e que devem ser equacionados na discussão acerca de uma política patrimonial. Do patrimônio como mercadoria ao patrimônio como forma de construção da cidadania são inúmeras as possibilidades de sua leitura e interpre- tação por parte daqueles que se engajam em favor da preservação. Aliás, desde o momento em que se constitui como um saber regra- do no século XIX, os inúmeros debates em torno de como e do que preservar, já indicavam a inexistência de um campo consensual no tratamento das questões relativas ao patrimônio histórico. Basta aqui a referência a dois modelos distintos e contrapostos relativos à preservação - o de Viollet-le-Duc e o de Ruskin -, para consta- tarmos como a disputa pelo passado e sua representação esteve também presente nos debates acerca da preservação de seus monumentos.17 Christophe Prochasson no livro a que fizemos

referência “L’Empire des émotions’18, diagnostica esse tempo como

sendo o de uma certa confusão entre história e memória, quando os apelos da emoção parecem mais adequados para o enfrenta- mento do passado do que as armas da crítica histórica. Segundo ele, o historiador contemporâneo deve, sobretudo, emocionar mais do que convidar à reflexão crítica, ela mesma menos confor- tadora e apaziguadora. Para o historiador francês, os historiadores contemporâneos estariam submetidos a um novo regime emo- cional. O retorno do drama faustiano, que marcou a experiência da modernidade, parece novamente presente apontando para os paradoxos do ser moderno: a necessidade de preencher com certezas - e com lembranças - aquilo que é incerto por sua própria condição. Como afirmava Adam Phillips, são tortuosos os caminhos pelos quais no conduz a memória e a recordação.

17 Ver a respeito: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2006. Especialmente o capítulo IV.

Referências

BALLART, Josep. El 1. patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel, 2002.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2006.

HARTOG, François. Regimes d’historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003.

KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

Madame de Staël. Corinne ou l’Italie. Pris: Gallimard, 1985

PROCHASSON, Christophe. L’Empire des émotions: les historiens dans la mêlée. Paris: Éditions Démopolis, 2008.

No documento Universidade e lugares de memória (páginas 30-41)