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5. Os legados não cumpridos

5.1. As execuções de legados não cumpridos em Lisboa

Quando tratamos graficamente os rendimentos provenientes dos legados pios não cumpridos arrecadados pelo Hospital de Todos os Santos, a constatação mais imediata é a do valor muito significativo que já tem em 1586 – 700.000 réis –, a instabilidade dos anos seguintes e a subida em crescendo, depois de 1614, já na vigência da nova legislação filipina no sentido de controlar o sector. Nas vésperas do terramoto de 1755 atingia mais de 10.000.000 réis (gráfico 5).

Gráfico 5: Receita de Legados Não Cumpridos — Séculos XVI a XVIII

Fonte: Livros de receita. Hosp. S. José, , liv. 582; liv. 604; 631; liv. 658; liv. 686; liv. 713; liv. 741.

559 As bulas e os breves concederam a comutação dos legados não cumpridos, dentro das respetivas

dioceses, a favor do Hospital de Santo António no Porto; do Hospital de S. Marcos, em Braga; do Hospital do Espírito Santo, em Évora; e do Hospital de Nossa Senhora da Piedade, em Beja.

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A explicação para o decréscimo de receitas nos inícios do século XVII, para

valores idênticos aos recebidos 30 ou 40 anos antes560, devia-se aos abusos dos administradores das capelas561 e aos padres que passavam certidões falsas atestando que as missas tinham sido celebradas não o tendo sido, sem que o Hospital recebesse as respetivas verbas. Uma prática que o monarca tentou coarctar, pelo alvará de 3 de setembro de 1609, obrigando-os a prestar juramento sobre as declarações prestadas. Novo alvará, de 15 de Março de 1614, tornava as certidões anuais, sob juramento nas igrejas e mosteiros, determinando que clérigos e religiosos mostrassem os livros de registo dos ofícios de missas dos defuntos, quando solicitados pelo Hospital de Todos os Santos. Neste mesmo diploma o soberano explicitava um conjunto de normas a seguir, nomeadamente, quanto à forma de registo dos legados não cumpridos na Provedoria e ao modo como o mesmo deveria ser reproduzido para futura verificação e fiscalização no Hospital. Destas orientações destacamos a dirigida ao provedor das capelas, ao tempo, o doutor Gaspar Pegado, para que se munisse de dois livros iguais onde se registariam, em títulos separados, e em simultâneo, todos os testamentos e instituições de morgados e capelas que os escrivães do juízo tivessem nos seus cartórios com a indicação dos encargos de missas, esmolas e quaisquer outras obras pias pedidas pelo testador. À margem de cada adição e título, o provedor era compelido a declarar o que faltava cumprir. Um livro ficaria na posse do provedor das capelas e o outro seria entregue ao provedor do Hospital de Todos os Santos. O mordomo das demandas poderia solicitar o cotejamento de ambos os livros sempre que achasse por bem. Os testamentos com encargos pios que não tivessem sido cumpridos no prazo de um ano deviam ser entregues ao provedor, que os registaria num livro próprio, para depois os distribuir pelos escrivães das capelas que, por sua vez, os arrolariam nos dois livros mencionados. Todas as demandas deveriam ser examinadas por três desembargadores e

560 Vistos os anos de 1565, 1572 e 1579 cujos rendimentos de execuções não foram além dos 380.000

réis. ANTT, Hosp. S. José, liv. 568: liv. 574; liv. 579.

561 Ao administrador cabia a função de gerir a capela e entregar ao instituto religioso as rendas estipuladas

pelos instituidores. O trabalho passava por vigiar o património da capela, zelar para que todos os bens fossem devidamente utilizados, readquirir os que se tivessem perdido e, se necessário, intervir judicialmente. Em caso de inexistência da família natural, a administração podia ser confiada a uma família artificial. Por falta de sucessão e em conformidade com o testamento, a capela de Afonso Brás passou a ser administrada pelo Hospital. ANTT, Hosp. S. José, liv. 1187, fl. 558.

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irmãos da Misericórdia, de modo a evitar as despesas de contestação com os administradores, testamenteiros e herdeiros dos defuntos e, sobretudo, escusar sentenças vergonhosas contra o Hospital, o que, de facto, não se verificou, pelo menos não no imediato562.

As determinações administrativas impostas pelo alvará de 1614 tiveram repercussões nas receitas arrecadadas: se entre 1613 e 1615 o Hospital não chegou a receber 400.000 réis563, em 1628, ultrapassava já 1.000.000 réis e, em 1642, mais de 1.500.000 réis564. A partir de finais do mesmo século, os rendimentos de legados não cumpridos estendidos também às comarcas do patriarcado ultrapassavam já os 5.000.000 réis. A leitura do gráfico 5 permite, aliás como tem sido apontado por vários historiadores, verificar que houve, de facto, um investimento no Purgatório no decorrer do período moderno565.

Para arrecadar os legados não cumpridos, o Hospital de Todos os Santos tinha procuradores que trabalhavam nos escritórios dos tabeliães da Provedoria das Capelas566. No século XVIII, quando D. Jorge de Mendonça iniciou funções como

enfermeiro-mor, o Hospital contava com dois procuradores de legados não cumpridos que recebiam 5% de todas as cobranças realizadas (as despesas ficavam a cargo da

562 A 14 de novembro de 1679 ordenava a Mesa da Misericórdia que os oficiais da fazenda não fizessem

qualquer tipo de concerto que envolvesse legados não cumpridos sem primeiro informarem a Mesa. Sem outra explicação referia, ainda, que não convinha que fosse feito o que até então se costumava fazer. Em janeiro do ano seguinte especificava-se, em conformidade com o alvará de 15 de março de 1614, que qualquer decisão sobre o assunto precederia a consulta de três desembargadores, irmãos da Casa, para que se pronunciassem sobre a cobrança e o modo de a fazer licitamente. Este procedimento, sobre as execuções de legados não cumpridos, seguia em conformidade com o parecer que havia sido pedido a teólogos «na junta que se fez sobre este particular». ANTT, Hosp. S. José, liv. 941, fls. 385-386.

563 ANTT, Hosp. S. José, liv. 603; liv. 604; liv. 605.

564 ANTT, Hosp. S. José, liv. 617 e liv. 631, respetivamente. 565

O século XVII, segundo Michel Vovelle, foi o século do Purgatório. Michel Vovelle, La Mort et

l'Occident de 1300 à nos Jours …., p. 308. Sobre o apogeu do Purgatório, veja-se por exemplo, os

números de fundações perpétuas em Setúbal e Lisboa apresentado por Laurinda Abreu, «As Misericórdias de Filipe I a D. João V», Portugaliae Monumenta Misericordiarum, vol. 1, pp.56-57.

566 Em 1758, foi provido Marçal de Sousa para servir no lugar de procurador dos legados não cumpridos

no escritório de José da Cunha Machado. Lugar também ocupado por João Moreira do Couto, desta feita no escritório de António Pontes. Devido ao excesso de trabalho dos procuradores, o enfermeiro-mor, D. Jorge de Mendonça, ordenou que António Germano de Vilhena, escrivão dos assentos, os ajudasse (pelo que recebeu um acréscimo de 1.200 réis por mês, para além dos 2.000 réis que já recebia de ordenado). Nesta altura serviam, ainda, Diogo Lopes Botelho e Caetano Rodrigues da Silva que foi mais tarde substituído (em 1769) por Manuel Pinto de Carvalho. Em 1760, servia de procurador António José da Silva no escritório de António de Pontes. ANTT, Hosp. S. José, liv. 943, fls. 45, 55v, 57, 66v, 125v; Jorge Francisco Machado de Mendonça, op. cit., p. 55.

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instituição). Para controlar os encargos com estas cobranças, D. Jorge de Mendonça fixou em 90.000 réis o pagamento a cada procurador567. Na segunda metade de setecentos, os rendimentos dos legados não cumpridos oscilavam entre os seis e oito contos de réis, o que significava uma descida tendo em conta os 10 contos que receberia por altura do terramoto, como atrás referido568. Importa agora verificar como se procedeu à execução dos legados não cumpridos nas Provedorias das Comarcas.

5.2. As execuções de legados não cumpridos nas Provedorias das