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2.3 O TRATAMENTO DIFERENCIADO NO ÂMBITO MATERIAL DAS NORMAS DA

2.3.2 As externalidades negativas geradas pelas normas de tratamento diferenciado

Neste tópico, procura-se relevar quais as consequências negativas geradas a partir da imposição de exceções em favor de países em desenvolvimento e busca-se analisar como o atual sistema se lhes apresenta.

A normatização proposta pela OMC pode se apresentar benéfica, pois: a) entre os países desenvolvidos, funciona como um mecanismo de “mútua contenção” entre sujeitos com força econômica e grau de desenvolvimento semelhantes; b) entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, as normas constituem uma garantia de controle da atuação dos países menos desenvolvidos, conferindo-lhes maior previsibilidade (NASSER, 2003, p. 82). Logo, as normas do sistema apresentam-se, em primeira vista, benéficas a todos os membros da OMC.

Em face deste cenário ideal, não obstante, pode-se apontar que as exceções criadas para beneficiar países em desenvolvimento apresentam um caráter excepcional e são

74 insuficientes para equalizar os níveis de competitividade no comércio internacional (NASSER, 2003, p. 25-26). Uma das questões levantadas é a necessidade de integração plena no sistema, que sujeita todos os países a um mesmo regime jurídico, desconsiderando diferenças entre eles57.

A característica do single undertaking58 pode comprometer interesses dos países em desenvolvimento: como os acordos devem ser aceitos de maneira integral, ainda que o sistema permita que temas como agricultura, vestuário e têxteis se sujeitem de forma mais eficaz às regras do SMC, os PMDs são obrigados a lidar com a redução de flexibilidade na escolha dos acordos em que tomem parte, o que limita as políticas nacionais de promoção do desenvolvimento para que sejam compatíveis com tais acordos (SOUSA, 2006, p. 67).

O impasse de como abarcar diversos sistemas econômicos e países de diferentes níveis de desenvolvimento ao Sistema Multilateral de Comércio já foi suscitado neste trabalho, devendo-se ressaltar a proposição de John H. Jackson (1999, p. 331-332) para que se crie um sistema de dupla salvaguarda59, buscando, por exemplo, adequar a inserção de economias planificadas no comércio internacional. Prevaleceu, no entanto, o parâmetro do single undertaking, e um dos problemas advindos desta inserção defeituosa seria a visão, por parte dos países desenvolvidos, de que a reciprocidade deva ser respeitada, em revelia às exceções previstas60.

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A conjugação do reforço do SMC, inspirado na ideologia econômica liberal, e a integração plena no sistema a que se obrigaram os Estados-membros, faz com que fiquem sujeitos a um mesmo regime jurídico, desconsiderando as diferenças existentes entre eles, especialmente quanto ao nível de desenvolvimento (NASSER, 2003, p. 85).

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Princípio pelo qual todos os itens da negociação são parte de um todo indivisível e não podem ser negociados separadamente.

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O autor propõe que se estabeleça um sistema duplo de salvaguarda (two-track safeguard system): um protocolo de acessão poderia, primeiramente, exigir a transparência, publicação de regulações e administração das alfândegas por parte do Membro; um segundo protocolo, posteriormente, se aplicaria nos casos mais excepcionais, atuando na interface entre economias planificadas ou agentes econômicos estatais com as instituições da OMC, incluindo medidas de salvaguarda, consultas e requerimentos de negociação para aliviar as diferenças entre os Membros. O two-track system tem por intuito acompanhar a evolução do Estado de economia planificada e sua inserção no mercado internacional (JACKSON, 1999, p. 331-332).

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Na Rodada do Uruguai, muitos países em desenvolvimento resistiram que serviços, investimentos estrangeiros e propriedade intelectual se tornassem objetos de negociações do GATT. Como resultado, a eles foi dado um período maior para adequar seus mercados com as novas regras estabelecidas, mas tal Rodada reflete, largamente, a rejeição da visão de que a reciprocidade nos compromissos assumidos por países em desenvolvimento de liberalização comercial não precise ser respeitada (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 387- 388).

75 Isso suscitou uma série de retaliações por parte de países desenvolvidos61, inconformados por terem que beneficiar membros em desenvolvimento sem obter nada em troca: nos países mais poderosos, grupos organizados exigem nível alto de proteção contra competidores estrangeiros. Tal debate político cria uma contradição entre a retórica do liberalismo e a prática protecionista das grandes potências. A persistência de tais práticas enseja a sensação de hipocrisia por parte de países em desenvolvimento, o que dificulta as negociações nos foros multilaterais de comércio (BARRAL, 2006, p. 33).

Se, por um lado, foi dado aos países em desenvolvimento benefícios significativos em relação à disciplina do SMC, como pela possibilidade de adoção de políticas de substituição de importação, de estratégias de proteção de indústrias em ascensão, além de concessões tarifárias; por outro, os países desenvolvidos mantiveram barreiras tarifárias extremamente altas em relação a produtos que poderiam constituir estratégia de crescimento por exportação, por parte dos países em desenvolvimento, como produtos têxteis, manufaturas leves e produtos agrícolas (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 368).

Isso evidencia que a OMC não tem se focado no desenvolvimento e bem-estar social de países em desenvolvimento, mas na imposição de políticas públicas que tragam benefícios ao Sistema Multilateral do Comércio. Dessa maneira, as cláusulas de tratamento diferenciado têm servido para fomentar uma discriminação a países em desenvolvimento, incentivando-os a se oporem à liberalização, dando menos segurança e previsibilidade ao comércio internacional (HOEKMAN, 2005, p. 15).

Outro problema seria a falta de obrigatoriedade das normas de tratamento diferenciado. Isso tem por consequência resultados desiguais, pois o poder de barganha dos países em desenvolvimento é menor. A maior parte das regras de tratamento especial e diferenciado no âmbito da OMC induz aos melhores esforços, sem estipulação de obrigações para países desenvolvidos. As últimas conferências ministeriais permitiram vislumbrar que os países em desenvolvimento, embora tenham adotado um discurso comum e mais enfático, têm, no máximo, conseguido poder de veto à agenda dos países desenvolvidos. Aqueles países ainda estão longe de exercer liderança no sistema (BARRAL, 2006, p. 33-34).

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É necessário reiterar que as retaliações possuem efeitos diferentes em um país desenvolvido em relação a um em desenvolvimento, sendo muito mais nocivas para estes, levando-se em consideração seu impacto comercial irrisório em relação aos países desenvolvidos (FAIS, 2006, p. 140).

76 Os países em desenvolvimento concentraram suas propostas na implementação e no cumprimento das cláusulas de tratamento especial e diferenciado nos acordos já negociados na Rodada do Uruguai, evitando engajar-se em processo negociador novo (AMORIM, 2006, p. 342). Para que sejam implementadas de forma efetiva, tais cláusulas devem deixar de ser princípios ou compromissos morais para se tornar compromissos exigíveis. Reitera-se, ainda, que normas e políticas que se voltem para o desenvolvimento não devem ser atacadas e impedidas pelas regras de comércio internacional (SOUSA, 2006, p. 82-83).

Todo o exposto evidencia uma instabilidade nas normas da OMC, que, embora apresentem princípios democráticos, são reiteradamente ignoradas por países desenvolvidos. Faz-se necessária uma maior idoneidade e efetividade normativa, estimulando um comportamento institucional que se comprometa com o desenvolvimento como um todo, não somente com seu aspecto econômico (FAIS, 2006, p. 139).

Pode-se, em suma, reunir três principais externalidades negativas associadas ao tratamento diferenciado: a) a submissão de todos os membros a um mesmo regime jurídico, sendo que tais exceções apenas mascaram a falta de representatividade de países em desenvolvimento na organização, impedindo que estes promovam políticas de desenvolvimento mais compatíveis com suas necessidades (SOUSA, 2006, p. 67); b) retaliações por parte dos países desenvolvidos, que divergem do entendimento de que a reciprocidade nas relações comerciais possa ser desrespeitada em prol do desenvolvimento de seus parceiros comerciais (HOEKMAN, 2005, p. 15); c) falta de obrigatoriedade no cumprimento destas normas por parte dos países desenvolvidos, o que acarreta ampla inefetividade destas cláusulas (BARRAL, 2006, p. 33).