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3. AS ESTRUTURAS DO TRÁGICO NAS LETRAS DO TANGO-CANÇÃO

3.2. AS FACES TRÁGICAS DO FEMININO – A MULHER FATAL E A MÃE

O masculino no tango mantém uma relação constitutiva em relação aos estereótipos da mulher. A mulher não existe por si mesma, mas apenas através de um discurso masculino que a qualifica como tal, assim como também ao homem, pois esta assimetria é vazia de contingência. O discurso masculino define estatutos e limites para o feminino que, por sua vez, precisa encontrar uma identidade imaginária através da qual existir. Segundo Maingueneau (2007), o feminino contraria a oposição entre natureza e artífice, entre o ser e o simulacro, pois a feminilidade que o homem reconhece é tecida de estereótipos nos quais o elemento feminino é atirado e dentro dos quais toma forma. Ser mulher, como também salienta Beauvoir (2016), está imbrincado em uma série de saberes e de determinadas maneiras de ser e agir através dos quais reconhece-se os estereótipos.

Levando-se em consideração o dito acima, se existe, no tango, uma guerra dos sexos, seria, como salienta Maingueneau (2007), de um tipo muito particular, pois seria liderado pelo homem a fim de constituir um relacionamento entre os sexos em conflito, entre dois campos da mesma natureza. O cruel e negativo da pintura do masculino no tango faz com que o feminino seja um retrato tão cruel quanto ele próprio. Se no tango o homem nunca age, mas apenas reage às ações da mulher, que são sempre potencialmente perigosas, supõe-se disso a sua deficiência em se impor como indivíduo e a incapacidade de entender a mulher, pois como afirma Maingueneau (2007), o controle do estereótipo feminino pelo masculino possui um custo, pois permite que a mulher libere um resto irredutível a fim de puxar o homem para que embarque no feminino e converta a mulher em um verdadeiro enigma. Como define Fernandez (2000, p.126):

Ora brutal explorador de mulheres, ora corno assumido e até satisfeito, ora bêbado e socialmente marginalizado, ora apaixonado até a loucura, ora submisso e negociando a própria humilhação, ora agente de sua própria autodestruição, com todos os traços de irresponsabilidade, vaidade, jactância, convencimento, egoísmo e fatuidade. Se a representação da mulher no tango é uma pintura de um monstro, a consequente imagem do homem não fica atrás. À mulher má, traidora, aproveitadora e inconsequente corresponde um homem igual. Homem e mulher no tango se merecem, como duas faces da mesma moeda.

O feminino é a fonte da experiência do horror porque a sua emergência evidencia o egocentrismo da subjetividade baseada no falo e colocar o falo em estado de suspensão, como salienta Birman (1999), implica para a subjetividade uma ausência dos contornos e de certezas, pois a dissolução da ordem fálica, o solapar do sistema patriarcal, como coloca Maingueneau (2006), põe em questão as crenças mais fundamentais do homem, pois acreditar-se superior por possuir o falo é a maior crença da arrogância masculina sobre as mulheres e, por outro lado, a ausência do pênis marcaria uma inferioridade natural e social.

Ambos os sexos são construídos subjetivamente através do falo como referencial. No tango, o discurso falocrático é dominador e cruel para com a sua contraparte, a mulher que, em sua fala torna-se não só objeto de desejo, mas objeto fatal, do qual deve-se sempre manter cautela, pois pode (e o faz) apunhalar pelas costas.

No mundo do tango, duas faces femininas, dois estereótipos se chocam e rivalizam, embora sejam ambas os lados de uma mesma moeda. A prostituta e a mãe emergem da subjetividade do discurso falocrático do ethos tanguero e o sentimento trágico que está arraigado nesta dicotomia é justamente o temor ao abandono. A prostituta encarna o arquétipo da mulher fatal que representa o mal e a danação masculina, enquanto a mãe, no extremo oposto, é o bem e a salvação. Entretanto, esta mesma mãe, na grande maioria das vezes, é ou foi uma prostituta. Em Cafetín de Buenos Aires, Discépolo nos dá exatamente esta mensagem, ao afirmar que um cafetín portenho é o que mais lhe faz lembrar a sua própria “velha”:

Cómo olvidarte en esta queja, cafetín de Buenos Aires, si sos lo único en la vida que se pareció a mi vieja...

Essa relação antagônica e, ao mesmo tempo, simbiótica da puta com a mãe diz respeito ao próprio mundo no qual emerge o tango, um mundo prostituído por diversas culturas, dores, mágoas, rancores que se trespassavam, se desafiavam e se apunhalavam e que, no processo de se dar também sofria aculturação. E não esqueçamos que as personagens do tango, o imigrante e o gaucho, são seres que abandonaram e foram abandonados; no dizer de Salas (2004), a América como um todo nasceu como um continente bastardo. Portanto, a separação, a ausência, a partida feria como um punhal afiado e esse aspecto trágico do cancioneiro aproxima-se do trágico como o pensava Goethe. Como salienta Williams (1992), é o conflito internalizado e projetado das ambições, desejos e limitações do indivíduo humano que desemboca no que Goethe denomina de embate entre querer e dever. Ao contrário do que sucedia na tragédia ativa, cujo conflito dava-se entre sujeitos e reinos, agora transcorria dentro dos limites de uma subjetividade, os conflitos profundos do individualismo e a evidenciada gama de forças sociais em combate.

Para Goethe, segundo Szondi (2004), o essencial do conflito trágico não se deve dar na relação do herói trágico e o mundo que o cerca, tampouco na supremacia do divino ou do destino, mas antes no próprio indivíduo, no qual dever e querer mostrar-se-iam uma dialética trágica, opondo-se e ameaçando aniquilar o próprio Eu. Nessa perspectiva, a reconciliação impossível cinde o sujeito. No tango, esta bifurcação do dever e do querer apresenta-se

precisamente no antagonismo entre as figuras da mulher fatal (o querer) e da mãe (o dever), intimando o cancioneiro à uma escolha trágica da qual irremediavelmente toda a sua existência depende.

Inevitavelmente a escolha sempre recai na mulher fatal, no querer, no instinto, e que sempre é a ruína desse homem, que olha para a outra ponta e vê a mãe, o dever, agora inalcançável, por ele abandonada e que sofreu pela fuga do filho ingrato que a fez padecer. As duas faces femininas são constantemente postas em comparação nos tangos, salientando, por um lado, os aspectos obscuros da mulher, ou seja, sua autonomia, sua liberdade em tomar decisões, de ir e vir; e por outro, enaltecendo o que se espera dela, a passividade, o perdão e o refúgio para o qual o homem sempre retorna. Em Madre hay uma sola, temos o retrato da mãe no mundo do tango e que, se analisarmos não só o conteúdo da letra, mas também sua estruturação enunciativa, o protagonista pinta o retrato do comportamento esperado para a mulher:

Y nadie venga a arrancarme del lado de quien me adora de quien con fe bienhechora se esfuerza por consolarme de mi pasado dolor... Las tentaciones son vanas para burlar su cariño;

para ella soy siempre un niño, ¡Benditas sus canas!

¡Bendito su amor!

Vale salientar que a oposição puta/mãe remete à própria oposição do profano/sagrado, diabólico/santificado, e que ambas representam, em seus papéis estereotipados pelo discurso masculino, os dois únicos comportamentos sociais não só apenas permitidos, como naturalmente estabelecidos como sendo próprios da mulher: o sexo e a maternidade. A mulher como objeto sexual e a mulher como mãe parecem ser os exclusivos papeis sociais destinados ao elemento feminino em seus dois extremos, a puta e a mãe. Observe-se que a puta não está em contraste com uma suposta esposa legítima ou uma donzela, que também estariam ligadas ao ato sexual, mas à imagem da mulher que não se encontra em contato com o mundo sujo e pecaminoso do sexo. Era a idealização da mulher que, justamente por não fazer parte do mundo do sexo, não iria embora com outro homem, não abandonaria o protagonista, sendo sua atenção totalmente dele, ele como centro do mundo desta mulher. Essa complexa relação do cancioneiro com a figura materna fez Borges (2016) desdenhar de que o tango era um verdadeiro desfile de Édipos insatisfeitos.

outro. Recordar o amor materno com aflição e angústia após uma derrocada amorosa nos braços das filhas de Lilith é lugar comum nos tangos-canção. Somente o amor da mãe é confiável, pois jamais abandonará o filho (homem) para ir embora atrás de outro. Enquanto a figura da prostituta representa o mais vulgar e baixo na sociedade, a imagem da mãe é imaculada e sublime. Juntas, constituem opostos que, no entanto, se complementam, pois esta mãe também fora uma puta. No mundo do tango, apenas a figura da mãe conseguirá elevar e valorizar o gênero feminino, a parte isso, todas as outras mulheres são falsas, mentirosas, indecentes, devassas, inconstantes, desonestas. Esse antagonismo pode ser encontrado em um sem fim de letras de tango, desde o filho ingrato que abandona a mãe para ir atrás da mulher

fatal e que, ao ser por ela abandonado, retorna ao lar para descobrir que a mãe, que padecera o

inferno em vida após a sua fuga, morrera de tristeza:

Largo tiempo

después, cayó al hogar materno.

Para poder curar su enfermo y herido corazón. Y supo

que su viejita santa, la que él había dejado, el invierno pasado de frío se murió

Essa mãe que morre pelo filho que a abandona pode ser vista como uma metáfora do próprio sistema patriarcal. Ao entregar-se ao pdoer feminino, o homem solaparia as próprias regras do sistema. Ele mata o patriarcalismo. Outra face da maternidade, é aquela mãe que tudo perdoa e que espera ansiosamente a volta do filho pródigo ao lar com palavras carinhosas e lágrimas nos olhos, pois é o homem no tango quem comete o erro trágico de abandonar o mais puro dos amores, o amor que brinda a mãe:

Pagando antiguas locuras y ahogando mi triste queja volví a buscar en la vieja aquellas hondas ternuras que abandonadas dejé. Y al verme nada me dijo de mis torpezas pasadas, palabras dulcificadas de amor por el hijo, ¡tan sólo escuché!

Mais uma vez, podemos supor a mãe como o próprio sistema patriarcal, para o qual o homem retorna, como um refúgio para as ilusões de poder e supremacia que acredita lhe pertencer.

O medo ao abandono não era de todo infundado. Esta mãe imaculada em relação ao filho era ou havia sido, por sua vez, uma mulher fatal que, muito provavelmente, fora emprenhada por qualquer um e logo por um segundo e assim sucessivamente, até ser abandonada por um terceiro ou espancada por um quarto. O pai verdadeiro da criança se fora ou nem bem sabia de quem se tratava. Segundo Salas (2004), as estatísticas de filhos registrados como “de pai desconhecido” eram imensas, haja vista que as circunstâncias sociais eram prerrogativa para que homens abandonassem suas parceiras ao se inteirarem de que iriam precisar manter mais uma boca. A isto agregue-se o fato de que grande parte das gestações provinham de relações sexuais esporádicas e os homens negavam-se ao relacionamento com alguém a quem se haviam unido por uma atração sexual momentânea. Em Juan Nadie40, temos o retrato do que sofriam estas mulheres que, com um filho nos braços, encontravam-se sozinhas, abandonadas pelo parceiro e pela sociedade argentina:

La madre, como una esclava, se doblegaba en el yuyo: alguien le sacaba el jugo y encima la castigaba. El padre, de estirpe brava, murió cuando Juan nacía, y ni por fotografía

pudo entrever su semblante, pero lo sentía adelante, a veces, cuando sufría.

O cancioneiro do tango, filho de uma classe bastarda e ele mesmo um bastardo, carecendo não só de linhagem como também de uma família, centra seus afetos na figura da mãe. Não é à toa que Carlos Gardel, o grande arquétipo do tango, seu autêntico herói trágico, era imigrante, filho de pai desconhecido, criado por mãe solteira que fazia faxina em casas de nobres para sustentar o filho. A figura do pai é uma ausência notável nas letras dos tangos, nunca é nomeado ou mesmo citado, quase absolutamente nada, é uma personagem completamente inexistente. Foi natural, portanto, que nas letras dos tangos esta mãe que ocupava um duplo papel, pai/mãe, aparecesse como mulheres santas, para quem sempre se pode retornar e encontrar perdão, principalmente o perdão por tê-la abandonado por outra mulher, a mulher fatal, que resultou em sofrimento e ruína. Em La casita de mis viejos, temos novamente este perfil da mãe no tango:

Sólo una madre

nos perdona en esta vida, Es la única verdade, Es mentira lo demás.

A mulher fatal, sexuada, (a mãe nunca é sexuada, mas sempre imaculada na idealização do protagonista), leva consigo sempre a possibilidade do engano, da mentira, encarna em si a própria desgraça. Deve-se acautelar sempre no que diz respeito à mulher sexual, uma vez que ela é o próprio instrumento do mal. Por isso, Manuel Romero aconselha pelos lábios de Gardel:

De las mujeres mejor no hay que hablar, todas, amigo, dan muy mal pago y hoy mi experiencia lo puede afirmar.

E um bom amigo sempre irá advertir que “no te dejes engañar por su querer, por su mentir”, pois “es mujer y al nacer del engaño hizo un sentir”. Além da mentira e da perfídia, o quadro se completa, como bem demonstra Fernandes (2000), quando além de desdenhar de qualquer mulher sexuada, o protagonista ainda afirma que não há felicidade maior do que aquela de “vivir con mamá otra vez” e o mais importante que um homem pode dizer a uma mulher quando a ama é “te quiero como a mi madre” e tudo isto se depreende pelo fato de que:

Madre hay una sola Y aunque un día la olvidé Me enseñó al final e la vida Que a ese amor

Hay que volver.

Tudo isso porque a mãe afigura ser o único amor sem engano ou mentira. Querendo evitar a realidade muitas vezes desagradável e cruel, na qual a mulher, em qualquer de suas facetas, é sempre o protótipo da fraude, o cancioneiro, desiludido e sofrendo, anseia voltar ao colo materno, ao seu modo, o colo do próprio poder masculino, no qual está protegido de qualquer violência exterior. Carlos Bahr assim nos descreve esta relação:

Es por eso que tardé en ir a verte.

¡Me avergüenza encontrarme frente a vos! Pues aunque ya me cueste convencerte, para mí sos más grande que Dios... Porque si este es a veces implacable con los que se equivocan como yo, vos, mi vieja, por buena y por ser madre, sos la imagen más pura del perdón.

Nas letras dos tangos, portanto, há uma inversão sistemática que mascara uma profunda ansiedade, pois no tango jamais será a mãe quem abandona ao filho ou o troca por outro – que é o mais temido – mas o filho assume o papel de abandonar a mãe e deixá-la sozinha. A mãe nunca irá embora com outro porque é uma santa. A mulher fatal, por outro lado, é a própria imagem do Diabo, da serpente do Jardim do Éden que, tentando ao homem, fá-lo agir de maneira vil ao abandonar a mãe para ir-se com outra que irá, por sua vez,

abandoná-lo. Em Esta noche me emborracho, Discépolo comenta esta façanha da mulher

fatal, capaz de enlouquecer o homem e fazê-lo abandonar o amor mais singelo de todos: Que esto que hoy es un cascajo

fue la dulce metedura donde yo perdí el honor; que chiflao por su belleza le quité el pan a la vieja, me hice ruin y pechador...

Seja uma ou outra, vilipendiada ou idealizada pelo homem, o fato é que o elemento feminino está no tango para corresponder aos anseios masculinos. Segundo Beauvoir (2016, p.407), o estereótipo do caráter feminino permanece o mesmo desde os antigos gregos até os dias atuais, mesmo com mudanças superficiais ou profundas nas sociedades através dos tempos. De acordo com a pensadora francesa, e o seu pensamento representa o estereótipo do feminino fatal analisado por Maingueneau (2007) e emprega-se como uma luva na imagem da mulher pintada pelo tango, no discurso do ethos tanguero, a mulher continua chafurdando na imanência, ora prudente e mesquinha, com o seu espírito de contradição, ora sem senso da verdade nem de qualquer exatidão; “carece de moralidade, é baixamente utilitária, mentirosa, comediante, interesseira...”; Maingueneau (2007, p.40) ainda ressalta que a mulher é vista como “dépensière, bavarde, trompeuse”. Entretanto, salientemos que qualquer destas características colocadas como reconhecidamente femininas não são ditadas às mulheres pelos hormônios nem se encontram nos compartimentos cerebrais femininos, mas lhes são impostos de fora, por um discurso da dominação masculina.

No tango, esta mulher fatal não constitui uma sociedade autônoma e fechada, mas antes encontra-se integrada na coletividade criada, ditada e governada pelos homens, dentro da qual ocupam um lugar de subordinação e passividade. Há entre elas, como salienta Beauvoir (2016), uma solidariedade mecânica enquanto se reconhecem como mulheres, mas não uma orgânica através da qual pudessem assentar uma comunidade unificada. É dentro do universo masculino que elas ainda são postas como um mal necessário. E disto advém o trágico da situação do elemento feminino nas sociedades e no tango, pois a mulher pertence ao mesmo tempo ao mundo masculino e a uma outra esfera sempre criticada e questionada. De acordo com Beauvoir (2016), instaladas neste universo de homens, não podem ocupar nenhum lugar tranquilamente.

No mundo do tango, a mulher sempre será a derrocada masculina, mesmo enquanto mãe, uma vez que a culpa por tê-la abandonado também trará punição ao protagonista. O elemento feminino estará sempre ligado ao sofrimento de uma ou outra forma, pois o homem

reconhece o universo como masculino, modelado, dirigido e dominado pelos homens, no qual a mulher é um elemento inferior, dependente e que, por atrair os desejos instintivos do homem, são agredidas física e verbalmente pelo fato dele não aceitar ser arrastado para tão baixo. A mulher não emerge como um sujeito em face aos outros membros da sociedade, está condenada apenas à sua carne e ela mesma apreende-se de forma passiva diante dos “deuses de figura humana que definem fins e valores” (BEAUVOIR, 2016, p.408). O lugar da mulher no tango será sempre o lugar de uma mera parte do corpo que tem por objetivo corresponder às necessidades masculinas: ou ela será apenas uma vagina ligada ao sexual ou será um útero ligada ao maternal. Em ambos os casos o quinhão da mulher será sempre a obediência, pois quando ela solapa, como diz Maingueneau (2006) o sistema patriarcal, a punição será a aniquilação de sua moral, de seu corpo, quando não de sua existência.

3.3. A TRAGÉDIA NO TANGO-CANÇÃO – A NOSTALGIA COMO ASPECTO