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2. POR UMA HERMENÊUTICA DO TRÁGICO

2.1. O TANGO COMO UM DISCURSO CONSTITUINTE

Como podemos perceber, a análise discursiva contribuiu com a hermenêutica contemporânea, na qual supõe um significado latente que pode tornar-se acessível através de técnicas apropriadas. Desse ponto de vista, iremos considerar a formação discursiva do tango ponderando sua enunciação como uma conexão de um lugar de fala, uma posição sócio- histórica, um ethos discursivo, pois qualquer discurso literário não está isolado, ainda que possua sua singularidade. Um discurso pode ou não aceitar outro discurso e, por isso mesmo, o discurso torna-se uma arena de polêmica e de reprodução.

Segundo Maingueneau (2006, p.60-61), por “discurso constituinte” entendem-se os discursos tidos por discursos de origem legitimados por uma “cena de enunciação” que autoriza a si mesma. Essa “autoridade de fala” vai além do literário e possui o que se consideraria a gênese de uma coletividade, oferecendo e ratificando os atos desta mesma coletividade e, portanto, sendo constituída por uma conduta específica que são as “zonas de fala” entre outras falas e “falas que se pretendem superiores” a outras falas, não existindo qualquer outro discurso que esteja acima ou além dele e sua legitimação parte apenas de si mesmo.

A constituição discursiva, segundo Maingueneau (2006), é entendida a partir da constituição enquanto uma ação que estabelece sua própria retificação, na qual o discurso implanta-se sob as próprias regras emergenciais no interior do interdiscurso, enquanto estrutura substancial que engendra um universo discursivo. A enunciação estabelece-se como um dispositivo legitimador do próprio espaço, promovendo a gênese de um discurso e sua inscrição dentro de uma instância sócio-histórica. Isso diz respeito às representações ideológicas de uma determinada classe ou grupo social, pois a ideologia, segundo Fiorin (2007), é a visão de mundo que esta determinada instância social possui da realidade e esta mesma instância não existe fora do âmbito da linguagem, pois uma formação ideológica corresponde a uma formação discursiva, cujas figuras e símbolos tornam possível a concretização de uma específica visão de mundo.

como um conjunto discursivo no interior de um espaço definido de uma determinada sociedade, na qual a formação discursiva se expressa como um grupo com suas próprias especificidades, “sociologicamente caracterizável” (MAINGUENEAU, 1997, p.54), porém sem remeter a sua questão discursiva às questões puramente de classe ou subclasse, mas buscando observar que a instituição discursiva que o engendrou diz respeito ao social tanto quanto à linguagem ao mesmo tempo, porque é através desta formação discursiva que o indivíduo edifica seu próprio discurso e, do mesmo modo que a ideologia impõe o pensamento, a formação discursiva impõe o dizer.

Tanto o tango quanto os responsáveis por sua produção e reprodução são construídos por um complexo e práticas institucionais e esta instituição discursiva, essa ação de estabelecer, esse “processo de construção legítima e a instituição no sentido comum de organização de práticas e aparelhos” (MAINGUENEAU, 2006, p.53), compõe tanto a enunciação como também as estruturas que são a condição da formação discursiva, assim como seu resultado, mediante o movimento através do qual a prática discursiva se institui, aportando um mundo em seu enunciado e legitimando a cena de enunciação e o lugar de fala que possibilitaram esta prática discursiva.

O tango como fenômeno social nasceu nos arredores de Buenos Aires e Montevideo por volta de 1880, ao mesmo tempo em que estavam sendo construídas as identidades destes povos enquanto nações. Nasce como a expressão das experiências existenciais, as angústias e questionamentos de uma parte da população de duas cidades latino-americanas que se transformavam mediante as influências das metrópoles europeias e do capitalismo. Essa representatividade da união entre o indivíduo e sua expressão subjetiva foi enriquecida para resistir ao poder dominante das sociedades burguesas desses dois centros urbanos rio- platenses que ameaçavam esmagar parte da sociedade, a mais desfavorecida, em prol do mito do progresso e da industrialização.

Por esta razão, o tango enquanto música, poesia e expressão corporal transforma-se na paixão de metade do país e no desprezo da outra metade. O tango enquanto fenômeno social e cultural popular serviu de ferramenta de resistência à cultura europeia que dominava as classes mais altas da bacia do Prata no século XIX e primeira metade do século XX e que ingressava no país através da burguesia e era a pauta do discurso cultural e educativo oficial. Esse desenvolvimento marginal de sua formação discursiva, validada por uma cena enunciativa representada pelos espaços fronteiriços das cidades, os arrabales, para os quais estas pessoas eram desalojadas, além da própria marginalidade social que autorizava este lugar de fala, conferia sentido às ações de toda uma coletividade que se reconhecia na

exclusão e no esquecimento social e existencial e que empilhava os cortiços das periferias de Buenos Aires e Montevideo.

Levando o acima citado em consideração, o tango enquanto discurso materializa a formação ideológica e é, por sua vez, determinado por ela, pois, de acordo com Fiorin (2007, p.41), o texto nada mais é do que “um lugar de manipulação consciente, em que o homem organiza [...] os elementos de expressão que estão à sua disposição para veicular seu discurso”, sendo o texto individual e o discurso social, uma vez que, do ponto de vista do ato discursivo, o sujeito está limitado pelos temas e figuras representativas das formações discursivas presentes no contexto e na formação social no qual se encontra.

Portanto, no que diz respeito ao tango, a denúncia social que dota de um estatuto singular e eleva as classes desfavorecidas através da arte, é um discurso entre muitos outros, mas que se pretende superior a todos os demais através da necessidade férrea e voluntariosa por fazer-se ouvir. O tango se autoriza a partir de si mesmo, legitimando o seu próprio lugar de fala, articulando e edificando uma formação discursiva específica e um modo de se instalar dentro de um universo social, pois o discurso do tango é o lugar das coerções sociais, simulando ser individual, como salienta Fiorin (2007), a fim de esconder o que é, de fato, social, já que, ainda seguindo Fiorin (2007), as formações discursivas concretizam as formações ideológicas e estas estão ligadas às questões de classes sociais e, consequentemente, o agente do discurso é as classes ou suas frações.

O tango torna-se ele mesmo uma arma de retificação de sua própria cena de enunciação e, como salienta Maingueneau (2006), aquele que fala a partir de um discurso constituinte não deve se situar nem dentro nem fora da sociedade, mas capacitar a sua produção para problematizar a relação do seu próprio pertencimento a uma sociedade, pois a formação discursiva advém da inexequibilidade de se atribuir um lugar social. Essa localidade paradoxal do discurso constituinte é o que Maingueneau (2006) conceitua de paratopia.