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Capítulo 2 “Não machuca o bife da dona Maria!”

2.1 Onde vivem os bois

2.1.1 As Fazendas Beira Alta

As Fazendas Beira Alta são subdivididas em quatro diferentes unidades situadas no

estado do Mato Grosso, sendo três delas – Clara, Júlia e Beatriz – na cidade de Tangará da

Serra e uma unidade – a Beira Alta – na cidade de Juruena, distante 650 km de Tangará.

55Os protocolos, como visto no capítulo anterior, são mais abrangentes e se referem também a temas como sustentabilidade ambiental, respeito à legislação trabalhista, além da sustentabilidade empresarial.

Juntas, as quatro unidades abrangem uma área de 32 mil hectares que incluem áreas de

Cerrado e Amazônia.

Realizei a maior parte de minha pesquisa de campo na unidade Beatriz, com visitas

esporádicas às unidades Clara e Júlia, que são adjacentes à primeira. Estas três propriedades

juntas possuem uma área de 6.000 hectares dedicadas à bovinocultura de corte, distribuídos

em áreas de pastagem, floresta e confinamento. As diferentes unidades das Fazendas Beira

Alta dedicam-se a diferentes etapas na criação dos animais, que recebem o nome de cria,

recria e engorda, aos moldes de uma subdivisão comum à pecuária brasileira de corte. Um mapa simplificado da unidade Beatriz segue abaixo.

A Fazenda Beira Alta, em Juruena, dedica-se à chamada fase de cria, ou seja, é nela

que nascem os bezerros e onde vivem os touros e as vacas de reprodução. Nas unidades Clara

e Júlia estão os animais em fase de recria: machos e fêmeas que já foram desmamados e

passam pela fase intermediária para ganho de peso através de uma dieta à base de capim. A

engorda ou terminação é realizada na unidade Beatriz, onde os animais passam aproximadamente cem dias antes de serem levados ao abatedouro. Nesta unidade há também

áreas de pastagem, embora a criação “a pasto”56 não seja sua vocação principal. As etapas de

cria, recria e engorda são as etapas de produção do gado de corte, e pelo fato de as Fazendas

Beira Alta trabalharem com as três fases, é dito que se trata de uma fazenda de ciclo completo.

Na unidade Beatriz se localiza o confinamento, que ocupa uma área de 70 hectares e

tem capacidade para 28 mil cabeças, lotação referente a dois ciclos de 14 mil cada um. Os

ciclos se referem ao período de cerca de cem dias de confinamento e somados correspondem

aos seis meses mais secos do ano, de maio a outubro57. Nos meses de seca, a lotação dos

piquetes é completa. Durante o período de chuvas são confinados cerca de 2 mil animais,

apenas nos piquetes que receberam uma cobertura parcial, em suas áreas de cocho de modo a

evitar que a ração neles depositada se deteriore.

A unidade Beatriz abriga o escritório que administra esta e as duas unidades adjacentes

(Clara e Júlia), o alojamento para os estagiários, as residências dos gerentes (geral e de

confinamento) e do capataz e a fábrica de ração para os animais. Entre o centro urbano da

cidade de Tangará da Serra e a sede da fazenda percorrem-se 70 km, dos quais 40 são estradas

de chão batido. As terras da fazenda avizinham-se do distrito rural de Gleba Triângulo, de

onde vivem a maioria de seus trabalhadores.

56Na criação de gado de corte a pasto os animais alimentam-se de capim cultivado, como as plantas do gênero

Brachiaria, ou ainda de capim nativo, cujas espécies variam regionalmente. A criação de gado a pasto é

considerada mais econômica por exigir pouca mão de obra e pequenos investimentos na alimentação dos animais, que têm no pasto a base de sua dieta, suplementada com sal mineral (Quadros, 2005).

57Os vaqueiros e administradores da fazenda afirmam que, ano após ano, os períodos de seca e chuva estão mais irregulares e cada vez mais imprevisíveis.

Chovia incessantemente quando cheguei na fazenda para minha primeira temporada de

campo, em junho de 2014. Peguei carona com Bruna, a zootecnista que gerencia o

confinamento da fazenda, que me falou que a quantidade de chuva era atípica para os padrões

da época. A região é marcada por um ciclo bem definido de chuvas (setembro/outubro a

abril/maio) e outro de seca (maio/junho a setembro/outubro). Os atoleiros são recorrentes nos

meses de chuva, ao passo que durante a seca a poeira praticamente invisibiliza as paisagens ao

redor.

Bruna mora em uma das três residências para funcionários da fazenda. As demais são

ocupadas pelo gerente-geral das unidades Clara, Júlia e Beatriz e o capataz desta última

unidade. As casas, construídas linearmente e separadas pela mesma distância, são de alvenaria

e seguem a mesma planta. Também são pintadas da mesma cor: as paredes são brancas e as

aberturas, azuis. As casas de moradia ficam na entrada da fazenda, atrás de várias árvores

Nim58 plantadas em linha, ao longo das margens da estrada de acesso principal.

Junto às cercas da entrada da fazenda, ainda na área externa, encontram-se expostas

grandes placas que trazem os logotipos da empresa e os emblemas das certificações a que ela

se filia. Imagens de araras e papagaios estão nas placas dedicadas ao Projeto Asas, que

consiste na recepção e soltura de aves resgatadas de traficantes e criatórios ilegais em ações

de fiscalização do Ibama. Já dentro da fazenda, mas ainda no corredor principal de acesso,

outra placa informa o tempo decorrido desde o último acidente de trabalho sofrido por algum

de seus funcionários. Com esta mensagem a fazenda visa informar os visitantes de sua

preocupação com a segurança dos trabalhadores bem como de sua adequação às exigências

das legislações trabalhistas.

58Também conhecida como Amargosa, a Azadirachta indica tem origem indiana e apresenta características fungicidas e nematicidas.

Para entrar na fazenda o visitante atravessa um grande portão metálico, de

acionamento manual, que somente é liberado quando um funcionário do escritório assim o

autoriza. Aos trabalhadores da fazenda o acesso se dá sem esse procedimento. Para todos os

outros, sejam eles caminhoneiros – ainda que regulares –, representantes comerciais, ou

mesmo policiais, o procedimento é o mesmo. Via rádio-transmissor, o funcionário da portaria

comunica ao escritório a identidade e a finalidade do visitante.

No escritório local são controladas todas as atividades da fazenda e suas ações são

encaminhadas à repartição no centro da cidade de Tangará da Serra. O controle geral das

fazendas conta ainda com uma representação na cidade de São Paulo, onde se encontra a

administração geral do grupo proprietário das fazendas.

Nas instalações do escritório trabalham o gerente local, a gerente do confinamento, um

zootecnista responsável pela avaliação e distribuição da ração para o gado, uma especialista

em contabilidade, outra especialista em cadastramento e rastreabilidade dos animais, e dois

auxiliares, dedicados, principalmente, à recepção e pesagem de caminhões e tratores, além do

controle do almoxarifado.

Na entrada do escritório fica posicionado o relógio de ponto, introduzido no ano de

2015. Nele, os funcionários registram diariamente o horário de sua entrada e saída da fazenda,

e essas informações servem de base para a conferência e pagamento de suas horas extras. A

introdução desse sistema foi acompanhada também por uma mudança na jornada de trabalho.

Em 2014, os funcionários começavam suas atividades as 6 horas e o fim do seu expediente

tinha horários mais flexíveis, encerrando-se normalmente as 18 ou 19 horas. No ano seguinte

permaneciam após as 17 horas59. Essa mudança se deu em prol de uma observação mais rígida

das horas extras executadas pelos trabalhadores.

Para os vaqueiros, essa mudança não levou em consideração fatores como o calor para

lidar com o gado, e muitos preferiam ter continuado no sistema antigo, ou começar seu

trabalho mais cedo, as 5 ou até 4 horas. O calor que se acentua com o passar das horas é o

principal motivo apontado por eles para preferirem “pegar no serviço” mais cedo. Nos

períodos que antecedem o nascer do sol o clima é mais agradável para se trabalhar nos

campos e nas linhas do confinamento. Segundo os vaqueiros, também “o gado é melhor de

trabalhar”, porque estaria mais descansado, reunido no malhadouro60 e, tal qual os próprios

vaqueiros, não sofreria com o calor do sol.

Os vaqueiros se reúnem pela manhã na baia, um espaço dedicado ao armazenamento

do equipamento de montaria e à guarda de seus pertences pessoais. O material de montaria é

de propriedade do vaqueiro e cada um é responsável pela manutenção das suas peças. Na baia,

eles se reúnem para o início da jornada de trabalho, quando conversam descontraidamente

sobre as festas da região, sobre cavalos e rodeios, sobre caça e pesca, e também sobre o

trabalho que os espera naquele dia.

A baia é equidistante do escritório e do curral, o centro de manejo do gado. Também

chamado de mangueiro ou mangueira em outras regiões do Brasil61, o curral é o lugar em que

o gado é “trabalhado”, ou seja, pesado, cadastrado e vacinado. Todo o gado da fazenda passa

pelo curral pelo menos duas vezes ao longo de sua vida, ao entrar e ao sair da fazenda. Alguns

indivíduos são encaminhados ao curral para uma eventual checagem de ganho de peso, o que

59O intervalo para o almoço é cumprido entre as 11 e 13 horas. 60Local no campo em que o gado passa a noite.

acontece esporadicamente ou com lotes específicos sobre os quais a administração requer um

acompanhamento mais detido62.

Ao lado do escritório funciona a fábrica de ração. Ela é composta por silos circulares

para a armazenagem de grãos como a soja e o milho, que chegam diariamente em caminhões,

rigorosamente pesados ao entrar e sair da fazenda. Também é produzida a ração para a

unidade Beira Alta, em Juruena. Essa ração, ensacada e transportada em caminhões, é

balanceada de acordo com especificações próprias para as categorias dos animais como

bezerros, vacas e touros63. Na fábrica de ração também são abastecidos os contêineres

acoplados aos tratores de distribuição do alimento para o gado do confinamento. Quatro

tratoristas percorrem as linhas do confinamento durante todo o dia a partir das 7 horas,

totalizando quatro fornecimentos, também chamados de “tratos”. As linhas do confinamento

são formadas pela sequência dos piquetes64 adjacentes, e separados por uma cerca de arame.

A manutenção das cercas da fazenda são de responsabilidade de uma equipe

específica, mas todos os funcionários ficam atentos a qualquer avaria em sua estrutura. Para a

tarefa de limpar os bebedouros são destacados funcionários exclusivos, que diariamente

devem manter limpas as fontes de água do gado confinado. Eles também devem reportar à

equipe de estrutura quaisquer danos nos bebedouros, que captam água de uma caixa d'água

central.