Capítulo 2 “Não machuca o bife da dona Maria!”
2.1 Onde vivem os bois
2.2.1 Os vaqueiros e a forma
O ritual da forma, pelo qual são selecionados os animais para o trabalho, marca o
início da jornada matutina e vespertina nas Fazendas Beira Alta (MT), e é uma característica
de outras fazendas no Mato Grosso, como me contaram os vaqueiros. O tropeiro é o vaqueiro
responsável por buscar os burros, as mulas e os cavalos no pasto em que passaram a noite. Ele
chega um pouco mais cedo que os demais vaqueiros para executar essa tarefa e há um rodízio
no qual cada vaqueiro atua como tropeiro durante uma semana. Os burros, as mulas e os
cavalos são os animais que compõem a tropa, e daí o nome tropeiro para designar o vaqueiro
que reúne esses animais e os leva até a baia.
No piquete adjacente à baia são fornecidos ração e água para os animais da tropa. A
tropa é de propriedade da fazenda e cada vaqueiro trabalha com os animais especialmente
designados entre esses burros, mulas e cavalos. Em alguns casos, pode haver alguma troca
Na forma, os burros, as mulas e os cavalos devem ficar perfilados. Para que isso
aconteça, o tropeiro adentra o piquete em que os animais esperam e repete as palavras:
“Forma! Forma! Forma!”, caminha entre eles repetindo tais palavras até que atravessem a
porteira que separa o piquete da baia e fiquem perfilados praticamente sem se mover
esperando a chegada do vaqueiro. Nas mãos deste, o buçal (cabresto) e o freio são os
primeiros aparatos de montaria colocados nos animais. Quando todos os vaqueiros já
selecionaram o seu animal e o equiparam com o freio e o buçal a forma é desfeita. Para tanto,
o vaqueiro que está na extremidade da fileira – sempre a mesma, aquela que oferece a maior
área para a dispersão dos animais dentro da baia – exclama: “Quebra! Quebra! Quebra!” até
que todos os animais se dispersem e ocupem toda a área da baia.
Há vaqueiros que utilizam também um laço ou uma corrente para fazer a forma. Além
da repetição em voz alta da palavra “forma”, a corrente é utilizada para fazer mais um
barulho, semelhante a um estouro, que acontece ao ser impulsionada pelo vaqueiro contra o
chão. Quando algum animal demora para entrar na forma, ou não se posiciona corretamente
ao lado dos demais, a corrente é “estourada” no chão em sua direção. Se, porventura, o
vaqueiro percebe que o animal selecionado está mancando ou está agitado demais para
trabalhar naquele momento, ele recompõe a forma e escolhe outro animal para o trabalho no
dia. Fora da forma, espalhados pela baia, os animais da tropa relutam em serem arreados81,
tornando a forma um elemento indispensável do trabalho cotidiano.
Para ficarem em forma, os cavalos, os burros e as mulas precisam ser treinados. O
animal novato aprende com os animais mais experientes a entrar e sair da forma. Muito
raramente toda uma tropa é composta por animais de doma recente, e, portanto, o mais
recorrente é uma mescla entre experientes e inexperientes, na qual os primeiros participam da
preparação dos segundos.
Uma vez desfeita a forma e selecionados os animais, segue-se o arreamento dos
cavalos, burros e mulas. Após serem brevemente escovados, sobre o lombo dos animais são
colocados os baixeiros, cuja quantidade varia de acordo com sua qualidade e com a
preferência de cada vaqueiro. Os baixeiros podem ser pedaços de espuma ou tapetes de lã,
mas geralmente ambos são utilizados concomitantemente. Eles atenuam o atrito provocado
pelo peso do vaqueiro sobre a sela, o instrumento colocado na sequência. Na sela ficam
pendurados os estribos, que são móveis, e podem ser ajustados de acordo com a altura do
vaqueiro. A sela dá sustentação à montaria e, por sua vez, os estribos são fundamentais para
uma montaria firme e segura. O laço é amarrado na parte traseira da sela, assim como a capa
de chuva quando necessário. Alguns vaqueiros ainda carregam um cantil com água gelada
revestido em couro. Sobre a sela são também colocados um ou dois pelegos em lã de ovelha
para o conforto do vaqueiro, já que a quantidade varia conforme a espessura dos mesmos e a
preferência daquele que montará. Fundamentais também são as cinchas que prendem a sela e
os pelegos ao serem ajustadas em torno do tronco do animal, seu lombo e sua barriga. Sobre
os pelegos é colocado a baldrana (alforje), de lã ou de couro, que possui bolsos para a
armazenagem de medicamentos veterinários que porventura sejam necessários para o
tratamento de algum animal doente.
Os equipamentos de montaria são pessoais e são chamados de traia. Eles ficam
guardados sempre no mesmo lugar e cada cavalo é arreado também sempre no mesmo ponto
da baia. Pode haver empréstimo ou troca de materiais, mas o princípio é que cada vaqueiro
cuide e trabalhe com sua própria traia. Quando o vaqueiro deixa a fazenda a leva consigo.
A fama do vaqueiro, entretanto, pode permanecer por meio dos animais com os quais
trabalhava. O novo vaqueiro a montar o animal pode afirmar que o anterior deixou os animais
baldosos, cheios de manias, mesmo sem conhecer pessoalmente quem trabalhava com determinada mula ou burro ou cavalo. O novo vaqueiro, através dos trejeitos dos animais de
montaria, pode avaliar a qualidade do trabalho de seu antecessor.
Na Fazenda Casa Verde (RS) minha primeira campereada foi sobre o lombo da égua
“Freio de Ouro”82. Quando do nosso retorno ao final do dia, perguntavam-me entre sorrisos,
se eu havia permanecido sobre a égua e se ela havia dado algum pinote. A campereada havia
sido tranquila, apesar do meu medo e da minha aflição com os cavalos. Após minha resposta,
confessaram: “aquela égua é doida, é do Gustavo!”. A égua era “meio doida” pelo tratamento
intempestivo que seu cavaleiro lhe dispensava. Depois desse episódio deixei a Freio de Ouro e
82Freio de Ouro é o nome do maior prêmio concedido aos ginetes durante a Expointer, feira agropecuária realizada na cidade de Esteio/RS.
passei a me deslocar com o Carroceiro, um cavalo de idade já avançada para o trabalho,
cuidado por Juarez. Muito mais lento que a égua, Carroceiro foi meu companheiro nas
campereadas que se seguiram.
As relações que os cavalos mantiveram com outros cavaleiros tornam-se visíveis
porque os animais são capazes de revelar por meio de suas ações as marcas de suas relações
anteriores com os humanos. Como argumenta Despret ao refletir sobre Hans, “o cavalo que
sabia contar83”, o cavalo oportunizou aos humanos a chance de estes performarem um corpo
passível de ser lido pelo cavalo; os humanos, ao domesticarem o cavalo, criaram para eles
uma nova identidade: ser um “cavalo-com-humano”. O corpo, nessa abordagem é aquilo que
“faz fazer”, que tem a capacidade de afetar e ser afetado por outros corpos, cuja articulação
primeira dá-se por meio dos afetos. Nesse sentido, humanos se fazem conhecer através dos
cavalos: um cavalo mais baldoso, com algumas manias sugere cavaleiros menos cuidadosos
com os seus animais ou mais brutos em sua lida. Um cavalo de movimentos mais suaves, por
sua vez, revela um cavaleiro mais competente e atencioso.
Os vaqueiros nas Fazendas Beira Alta dedicam-se exclusivamente às atividades diretas
com o gado, visto que para a manutenção de cercas, cochos e bebedouros, e para a
distribuição de ração e sal mineral, existem outros trabalhadores especializados. Em
compensação, na Fazenda Casa Verde, as atividades dos campeiros são mais diversificadas e
envolvem o conserto de cercas e portões, a produção de silagem (na época da colheita de
milho) e a abertura de silos, além da reposição de sal mineral nos cochos das invernadas.
Camperear é, contudo, sua principal atividade a qual descreverei em seguida.
83Hans foi um cavalo que viveu no início do século XX na Alemanha, e intrigou os cientistas, especialmente psicólogos, por uma curiosa capacidade de contar, resolvendo problemas matemáticos colocados por indagadores humanos com batidas nos pés.