Capítulo 2 “Não machuca o bife da dona Maria!”
2.1 Onde vivem os bois
2.2.2 Os campeiros e as campereadas
O termo camperear denota a atividade de passar em revista os animais que se
encontram no pasto e curar aqueles que estão enfermos, verificando as condições gerais do
rebanho e as condições de saúde individuais dos animais. Uma campereada pode acontecer
pela manhã ou pela tarde, não havendo restrições quanto ao período do dia.
Uma campereada oscila entre momentos de calmaria e agitação. Pelo caminho
conversa-se sobre o clima, sobre os últimos acontecimentos da fazenda e histórias são
contadas. É possível parar no meio do caminho para apanhar alguma fruta sem precisar apear
do animal de montaria, cavalo ou égua. Piadas são recorrentes e tornam-se ainda mais
intensas e duradouras quando se referem à queda de algum campeiro de seu cavalo. No
entanto, tais quedas nem sempre são motivos de piada. Em uma de minhas primeiras
campereadas, do alto de uma coxilha, avistei ao longe uma cruz de madeira, pendendo pelo
vento. Ela jazia solitária há alguns metros da estrada principal que atravessa os campos e
segue até as últimas invernadas da fazenda. A existência desta cruz é relacionada a história da
morte de um campeiro em um dia de trabalho há cerca de dois anos. Ele galopava para laçar
um animal quando sua égua não viu um buraco feito por um tatu onde caiu com suas duas
pernas dianteiras. O campeiro foi arremessado para frente e a égua caiu sobre ele, que não
resistiu ao peso do impacto e faleceu em seguida. A égua sobreviveu e continuou a ser usada
nas lidas de campo até se tornar velha demais para desempenhar suas atividades. Desde então
compõe com outros animais a tropa de descarte, formada por outras éguas e cavalos que já
não prestam mais seus serviços à fazenda.
Atravessando pirambeiras, como são chamados os terrenos de aclives e declives
eram mais comuns. De fato são bastante raros, e a força e inteligência dos cavalos raramente
os levam, junto aos seus campeiros a situações de tamanha delicadeza.
Outra característica do trabalho com os cavalos é a sintonia estabelecida entre os
conjuntos de montadores e montarias. A mais sutil mudança de passo do animal, a outra
montaria tende a acompanhá-lo, andando na mesma velocidade e direção. Isso leva a
situações ambíguas: se trata-se de um cavaleiro habilidoso, ou, pelo menos, minimamente
treinado, este permanecerá sobre o cavalo em caso de galope ou mesmo disparada. Do
contrário, um eventual desequilíbrio em uma situação como essa poderá levá-lo ao chão.
Desta forma, foi-me ensinada a regra elementar da montaria: a rédea deve ser mantida curta e
firme e a qualquer sinal de disparada, deve ser imediatamente puxada com força. A rédea
aciona o freio alojado na boca do cavalo, fazendo-o parar.
Todo o trabalho no campo é feito na companhia de cavalos e cães. Os cães são
essenciais para buscar os animais que se encontram nos fundos de campo e dentro dos capões
de mato que se erguem no meio dos campos. Eles são treinados para chamarem as vacas, bois,
bezerros e terneiros para o “limpo”, ou seja, para as áreas de campo aberto, mais distantes da
mata fechada. Essas matas são pequenas aglomerações de árvores de pequeno e grande porte
que são preservadas ou cultivadas para servirem de refúgio do sol, do vento e da chuva para
os animais.
O campeiro olha muito atento para qualquer sinal de movimento dentro dessas matas.
Tenta, primeiramente, ver com seus próprios olhos a possível movimentação do rebanho no
interior desses capões. Chama com gritos e/ou assobios os animais dispersos que se voltam
para ele ao seu chamado. A gritaria característica dessa atividade dirige-se ao gado, aos
cavalos, aos cachorros mas também aos humanos. Ao ordenar ao cachorro o comando “pega!”
boiada também é tocada com gritos, geralmente graves e bastante altos. O estouro do laço que
é uma habilidade de reconhecida importância para o bom campeiro faz um barulho bastante
característico, possível de ser ouvido a longas distâncias.
A harmonia que envolvia os sons do estouro do laço, os latidos dos cachorros e os
gritos dos humanos com a boiada, me permitia saber quando os campeiros estavam voltando
para a sede da fazenda com algum lote de animais. O gado é trazido para a mangueira em
situações específicas: quando há muitos animais para serem curados, quando serão vendidos
para outros produtores, encaminhados para o frigorífico e também para fins de controle
através de pesagem e vacinação. Nas rondas cotidianas, os animais são laçados e curados nas
próprias pastagens.
No alforje que levam para o campo são carregados os medicamentos para os
tratamentos básicos do gado, especialmente as bicheiras84 e a conjuntivite, uma doença que se
espalha rapidamente pelo rebanho e que precisa ser tratada com rapidez para que o animal não
perca a visão. As bicheiras por sua vez, podem começar em um machucado superficial
ocasionado por algum arranhão nas cercas ou nos galhos e espinhos das árvores e arbustos.
Mordidas de cachorros também podem desencadear a bicheira, que se caracteriza pela invasão
de moscas no local dos ferimentos causando em alguns casos a impressão de apodrecimento
da região afetada.
A ausência de doenças e ferimentos são medidas de mensuração direta de bem-estar
animal. Entretanto, saúde não necessariamente é sinônimo de bem-estar animal, pois outros
fatores são importantes em sua avaliação. Segundo Fraser (2012) uma lista de verificação
completa compreende para além das questões veterinárias de saúde animal, questões
84A miíase é popularmente conhecida como bicheira e caracteriza-se pela invasão de uma mosca hematófaga, como a mosca-varejeira, sobre a pele dos animais.
nutricionais, ambientais e comportamentais, em que estados afetivos como o medo e a
angústia encontram-se relacionados a cada um desses fatores.
Para avaliar de perto as condições de saúde do gado que se encontra no campo e curar
aqueles que estão com alguma bicheira ou conjuntivite, o gado é laçado e levado ao chão.
Este procedimento ocorre da seguinte maneira. Primeiramente o gado é reunido pelos
cachorros, pelos cavalos e pelos humanos em uma determinada área, normalmente próxima a
algum local onde está o sal para o gado (uma construção em madeira que também serve para
alguns se abrigarem do sol ou da chuva). Em seguida, uma comunicação muito singular se
estabelece entre esses agentes para que a operação se desenrole com sucesso pois os
campeiros fazem seus cavalos apertar o passo, galopar, enquanto os cachorros são instigados a
trazer com seus latidos o gado do mato. Ao perseguir o gado, os cães fazem com que o gado
se aglomere em um lote que será mais facilmente vistoriado pelos campeiros. Nessa
oportunidade, o gado também é contado, a fim de monitorar a quantidade de animais em cada
campo.
Força e agilidade são exigências desse trabalho. Uma boa armada85 é fundamental para
o sucesso da operação de laçada, que tem os chifres como o alvo por excelência, ainda que
muitas vezes a armada passe até o pescoço ou atinja as patas. Sobre o cavalo com uma das
mãos o campeiro segura a rédea e com a outra leva o laço. O braço laçador é erguido sobre a
cabeça e girado até o momento em que o campeiro alcança uma boa posição e velocidade para
jogar o laço na direção do boi que corre. Uma vez laçado, é preciso segurar firme a corda, o
que exige um cálculo de força na proporção do peso e da velocidade do animal. Um segundo
campeiro deve acompanhar o trabalho para que tão logo o animal seja laçado, desça de seu
cavalo e imobilize a rês que será curada. De cócoras, o segundo campeiro coloca o joelho na
região entre o pescoço e a barriga do animal, enquanto suas mãos seguram a cabeça.
Os cachorros, além dos cavalos, são companheiros importantes dos campeiros. Alguns são vira-latas, mas a preferência para o pastoreio é por cães da raça Border Collie,
reconhecidos por sua agilidade e inteligência. Além disso, são dóceis e respondem bem aos
comandos dos campeiros. Cada campeiro cuida dos seus próprios cachorros que são treinados
desde pequenos a respeitar as suas ordens. Entre elas, os cachorros são instruídos a latir para o
gado, mas não mordê-los. Quando isso acontece os cachorros são retirados dos currais, pois se
tornam impertinentes.
No Mato Grosso, na unidade Beatriz, não são usados cães86, mesmo nas lidas de
campo, que são menos frequentes que na fazenda do Rio Grande do Sul pelo fato de aquela
unidade dedica-se quase exclusivamente ao confinamento de gado de corte. De acordo com o
protocolo de bem-estar animal adotado pela fazenda, os latidos e as mordidas dos cachorros
configuram uma fonte de estresse para o gado e, sendo assim, a criação e uso de cães nas lidas
de campo, de confinamento ou de curral foram proibidas na fazenda.
A presença dos cães no curral é ainda mais indesejada porque nesses ambientes o gado
não dispõe de espaço para fugir dos latidos e das mordidas desferidas pelos cães. O curral é
um lugar muito importante na fazenda, porque ali são feitos todos os procedimentos de
vacinação, pesagem, cadastramento, apartação87 e castração. É o centro de manejo do gado e,
de acordo com a zootecnista da Fazenda Beira Alta (MT), a passagem dos animais pelo curral
86Os cachorros nas Fazendas Beira Alta são pets, não são cachorros pastores ou caçadores como na Fazenda Casa Verde. Eles vivem dentro das casas dos gerentes e recebem tratamentos de banho e tosa em petshops do centro da cidade de Tangará da Serra. Comem ração balanceada e são levados para passear e brincar no campo de futebol da propriedade.
87A apartação consiste na separação dos animais em lotes diferenciados. Pode-se apartar por peso, por idade ou por raça; o critério varia conforme as necessidades do trabalho empreendido.
pode ser fonte de muito estresse e sofrimento para o gado, donde grande parte das
considerações de bem-estar animal versarem sobre sua estrutura e os trabalhos ali realizados.