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As festas de Santo Cristo da Paz

No documento Identidade Nacional (páginas 70-74)

Tal como as festas de Nossa Senhora da Conceição em Montes Juntos, as festas em honra de Santo Cristo da Paz em Cheles re- produzem, em termos genéricos, o modelo convencional das fes- tas patronais em contextos rurais espanhóis, tanto em termos or- ganizativos como programáticos. A existência de uma Irmandade responsável pela organização dos festejos concorda com o referido, mesmo havendo outra entidade com uma ação paralela, a comis- são de festas da Câmara Municipal.11Esta última organiza e su-

porta os encargos das verbenas (arraiais) e da tourada, incluindo a construção do palco onde atuam os vários artistas, a iluminação e a decoração de algumas ruas. Por sua vez, a Irmandade divulga o programa de festas, adquire a pirotecnia, organiza a totalidade dos atos religiosos e cobre as respetivas despesas, incluindo os emolu- mentos do padre e o acompanhamento da procissão pela Banda Municipal.

A Irmandade de Santo Cristo da Paz foi mandada erigir pelo bispo de Badajoz em meados do século XX, mais precisamente em

1953, embora existam atas de reunião e relatórios de contas que remontam a 1911 (Estatutos [da] Hermandad del Santo Cristo de la Paz 1996). Com estatutos aprovados pelo bispo da diocese de

11Por vezes, alguns eventos de carácter lúdico são organizados por outras en-

tidades. Em 1997, a Sociedade de Caçadores Cristo de la Paz e o Voluntariado de la Cruz Roja foram responsáveis pela organização de vários eventos, incluindo um concurso de tiro aos pratos e uma série de competições infantis, como cor- ridas de bicicletas e de sacos.

Mérida/Badajoz, a Irmandade possui 1200 irmãos, fiéis batizados, sujeitos a uma quotização de 200 pesetas (1,20 euros) anuais.12Tem

uma direção composta pelos seguintes elementos: presidente, vice- -presidente, secretário, tesoureiro e quatro vogais.13E conta todos

os anos com um novo mordomo encarregue de tudo quanto diz respeito às festas de Santo Cristo, contando sempre com o apoio da direção, do pároco e das autoridades civis locais (Art. 35.º).

O respetivo programa de festas inclui uma componente secular e uma componente religiosa. No plano religioso, destaca-se a rea- lização de novenas, a celebração de uma missa solene e de uma missa pela alma dos membros da Irmandade já falecidos, a oferta de flores ao Santo homenageado e a procissão com a imagem deste e com o estandarte da Irmandade.14No plano secular, sobressai a

12O dinheiro necessário para as atividades da Irmandade e do mordomo desta,

para além das quotas, provém da elaboração e venda de rifas, tômbolas e bilhetes de lotaria de Natal, da celebração de missas por alma dos membros da Irmandade já falecidos, de donativos, bem como da venda de flores e de espaços publicitários no programa de festas.

13Esta Irmandade só recentemente se estendeu às mulheres. As cheleras tinham

as suas próprias Irmandades – a da Virgem da Luz e a da Virgem do Rosário –, sendo cada qual responsável pela organização dos festejos em honra da virgem titular. As festas da Virgem da Luz foram substituídas em data que não sabemos precisar pelas festas do Emigrante, enquanto as da Virgem do Rosário deixaram de se fazer quando foi extinta a Irmandade, sensivelmente em 1979. Mas os mem- bros da direção destas Irmandades eram homens. Estas Irmandades foram extin- tas quando os seus membros passaram a integrar a Irmandade de Santo Cristo da Paz. Embora não façam parte das atuais direção e mordomia, as mulheres par- ticipam na organização da festa. As tarefas de limpeza e decoração do templo e do andor estão a cargo das esposas dos membros da direção, quando elas existem, e de outras voluntárias.

14Realizada na noite de 14 de setembro após a missa solene na igreja paroquial,

a procissão conta com a presença das autoridades locais. As centenas de pessoas da terra que a acompanham, homens e mulheres, residentes e não residentes, empunham uma vela previamente distribuída pelos membros da direção da Ir- mandade. Um dos pontos altos da procissão é a cerimónia de «entronização» do mordomo da festa do ano seguinte. Em 1997, esta teve lugar à porta de casa do futuro titular, na circunstância, acompanhado pela mulher e por uma filha.

existência de bailes e de teatros de rua, o lançamento de fogo de artifício – foguetes, morteiros e fogo preso –, a realização de uma feira, de um arraial por uma banda filarmónica e de várias compe- tições, quer para adultos – corrida de burros, tiro aos pratos, tor- neios de futebol, cartas, dominó –, quer para crianças – corrida de bicicletas, de sacos, entre outras.

A realização de um evento taurino de cunho popular confere- -lhe alguma especificidade face a outros contextos geográficos es- panhóis, principalmente os distantes da raia confinante com o Alentejo. As festas taurinas realizadas em Cheles envolvem nor- malmente duas vacas. Excetuando alguns elementos – a morte pú- blica dos animais,15a sua apresentação em pontas, o uso de banda-

rilhas e de capas de toureio, e a presença de um grupo de animação musical durante a corrida –, estas festas taurinas são estrutural- mente homólogas às que são efetuadas em Montes Juntos, pelo que a sua descrição seria redundante.

Tal como as festas de Nossa Senhora da Conceição, as de Santo Cristo da Paz interrompem a rotina da vida local, vestindo-a de De joelhos, o neófito recebeu o pendão da mão do mordomo do ano em curso e declarou, «recebo-te com toda a ilusão do mundo». O outorgante dirigiu-lhe votos de felicidade, declarando: «que Deus te ajude». O padre e o presidente da Irmandade assistem ao ato. Depois, uma mulher declarou em voz alta «viva o Santo Cristo» e todas as pessoas repetiram em uníssono «viva o Santo Cristo». Seguiram-se rezas cantadas pela mesma mulher, após o que a procissão retomou o seu caminho até à ermida de Santo Cristo da Paz, onde tem lugar o «beija- -pés», no âmbito do qual se procede à recolha de donativos. O programa religioso desenrolou-se entre 5 e 14 de setembro de 1997.

15Os animais são mortos apenas numa segunda corrida por ação de uma faca

espetada na zona da cabeça próxima dos chifres. Em 1997, porém, como não conseguissem encerrar a segunda vaca da tarde, foi esta a primeira a ser morta. O cadáver foi imediatamente transportado para o açougue do proprietário das carnes do animal. A outra vaca foi depois novamente solta, corrida e também morta na praça. A assistir ao evento, invariavelmente realizado na tarde do dia 13 de setembro, encontram-se normalmente as autoridades civis locais – presi- dente da Câmara Municipal, Juiz de Paz, sargento e outro Guardia Civil – e sa- nitárias – veterinário, médico e Cruz Vermelha.

um inusitado ambiente de exuberância festiva, potenciado por um acréscimo de pessoas no espaço da povoação, incluindo centenas de filhos da terra habitualmente no exterior e muitos forasteiros, especialmente de Villanueva del Fresno e Alconchel, no caso de Espanha, e de Montes Juntos e Ferreira de Capelins, no caso de Portugal. Sobretudo por ocasião da tourada e dos espetáculos no- turnos realizados durante o fim de semana, o contacto por esta via estabelecido entre indivíduos de distintas localidades aciona, também aqui, o delinear e a consolidação de múltiplas pertenças. Contudo, tal como em Montes Juntos, a proximidade da fronteira e a participação de pessoas vindas do lado oposto da mesma con- tribui decisivamente para que a identificação nacional ocupe aqui uma posição de relevo, como veremos no capítulo 5.

Não avulta a informação disponível quanto às origens da festa, mas sabe-se que já os Condes de Via Manuel (1689-...) celebravam a exaltação de Santa Cruz, no dia 14 de setembro (Herrera 1983). Em 1791, porém, a ermida de Santo Cristo da Paz não era placo de qualquer função (procissão ou festa) devido à falta de fundos (Interrogatorio de la Real Audiencia... 1994, 307). Cerca de meio século mais tarde, este espaço servia de escola e estava dedicado ao culto do Santo titular (Madoz 1847 VII, 313). Sabe-se também que os festejos sofreram algumas alterações nas últimas décadas. Segundo Juan Herrera (em conversa pessoal), a primeira vez que a imagem de Santo Cristo saiu em procissão foi em 1944. Por outro lado, nos anos 1970, as celebrações deixaram de ser organi- zadas exclusivamente pela Irmandade e pelo mordomo, passando a contar com a participação da Câmara Municipal a nível dos atos laicos. Em 1983, Juan Herrera escrevia, a este respeito, num artigo de opinião publicado no programa de festas:

Cada ano, esta celebração religiosa está mais limitada e, do nosso ponto de vista, há um risco de extinção. Nos últimos quatro ou cinco anos, a festa do Santo Cristo, nos seus atos laicos, é organizada pela

Câmara Municipal. Tudo está reduzido a um espetáculo taurino do qual há que retirar a entrada para financiar três ou quatro noites de estridentes guitarras elétricas.

Acresce que, antes de ser construída a praça de touros, a tourada tinha lugar num recinto improvisado com tábuas e carros de tra- ção animal no largo da Praça da Constituição.

No documento Identidade Nacional (páginas 70-74)