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6 Olhares cruzados

No documento Identidade Nacional (páginas 173-178)

Os emigrantes

Nos capítulos anteriores, tratámos de analisar materiais empíri- cos relacionados com dois grupos homólogos, o dos portugueses residentes em Montes Juntos e o dos espanhóis residentes em Che- les. Perspetivemos agora um terceiro grupo, o das pessoas que re- sidem no lado oposto da fronteira em relação àquele em que nas- ceram.

Como vimos no capítulo 1, a fronteira luso-espanhola é muito pouco permeável a nível da nupcialidade e da geografia das deslo- cações laborais dos habitantes de Montes Juntos. Esta impermea- bilidade é, no entanto, apenas relativa, dado que há pessoas que transpuseram a fronteira de forma durável e duradoura, a maior parte delas justamente através do casamento e/ou da busca de tra- balho e melhores condições salariais. Os cinco habitantes de Mon- tes Juntos nascidos em Espanha encontram-se nesta situação, o mesmo acontecendo com as seis habitantes de Cheles nascidas em Portugal. O estudo das suas histórias de vida evidencia alguns aspetos recorrentes, entre os quais o facto de residirem há mais de uma década num país que não o de nascimento, a pertença a es- calões etários acima dos 50 anos, a inatividade laboral, o cariz in- diferenciado das atividades profissionais exercidas ao longo das suas vidas e, ainda, a sua reduzida qualificação escolar.

Para além disso, o ato de emigrar não implicou para os seus pro- tagonistas a perda de contacto com a terra e o país natais, nem tampouco a quebra dos laços (físicos, afetivos) com o grupo na-

cional de origem, mas sim o desenvolvimento de vínculos de valor, de algum modo, similar na povoação e no país de adoção. Por outras palavras, a emigração permitiu a estas pessoas a forma- ção de um sentimento de dupla pertença, a integração em duas distintas «comunidades imaginadas» (Anderson 1991 [1983]), por- tugueses e espanhóis. Na prática, porém, estas pessoas identificam- -se apenas com um país e um grupo nacional, inclusive as que têm dupla nacionalidade (J. A., homem, 77 anos; M. V., mulher, 78 anos; C. M., mulher, 78 anos).

Acresce que estas pessoas afirmam normalmente pertencer ao grupo nacional associado ao território em que nasceram, ao país de origem e não ao país de adoção, o que traduz a prevalência da naturalidade nos processos de identificação nacional dos indiví- duos. Veja-se, por exemplo, os seguintes excertos de entrevista:

Quem nasce em Portugal é português; quem nasce em Espanha é espanhol. (E se um ou ambos os pais forem espanhóis e a pessoa nas- cer em Portugal?) Igual, quem nasce em Espanha é espanhol, mesmo que os pais sejam portugueses [F. E., homem, 73 anos].

Eu há muitos anos que estou aqui em Espanha, mas sou portu- guesa e serei toda a vida. (Para si, o ser português é nascer em Portugal ou algo mais?) Nascer em Portugal. [...] E quem nasce aqui [Espanha] não é português, é espanhol. Os meus filhos nasceram todos aqui, nenhum é português, são todos espanhóis [I. B., mulher, 82 anos].

A seu ver, a adesão e a vinculação das pessoas a um grupo na- cional não são, portanto, opcionais, mas sim deterministas. Tal como noutros contextos (por exemplo, Handler 1988, 34-35), elas decorrem do nascimento, de algo fortuito, mas amiúde naturali- zado. A criação de laços considerados naturalmente indissolúveis entre os indivíduos e o território em que nasceram é consequente com este processo de naturalização da contingência.

Esta tendência não obsta, entretanto, à existência de exceções, como mostram os discursos de C. M. e de E. E (mulheres, 68 e 59 anos). Para elas, o nascimento é puramente acidental e não deter- mina a filiação nacional. Os seus processos de identificação na- cional são, pelo contrário, ditados pela afetividade, pelo sentir. Ao declarar que «não se sente portuguesa, mas espanhola», C. M. va- lida esta interpretação, ao mesmo tempo em que reforça o argu- mento de Walter Connor (1994), segundo o qual as emoções ocupam um lugar de relevo nos fenómenos «etnonacionais».

Significativamente, ao invés de C. M. e de E. E., quase todos os outros emigrantes aqui em estudo (re)produzem um discurso que muitas vezes contraria a identificação feita em primeira ins- tância. Por outras palavras, salvo algumas exceções, tanto os resi- dentes em Cheles nascidos em Portugal como os residentes em Montes Juntos nascidos em Espanha que se costumam autoiden- tificar com o país de origem assumem, mais ou menos frequente- mente, um posicionamento diametralmente oposto nos discursos que tivemos ocasião de lhes ouvir proferir, quer no contexto das entrevistas, quer no das conversas informais. Os que se dizem es- panhóis tendem a falar deste grupo nacional como sendo o grupo do «outro», invertendo-se a situação no caso dos que se dizem por- tugueses; nestas circunstâncias, o «eles» corresponde ao grupo de origem e o «nós» corresponde ao grupo de adoção. O facto de A. S. (homem, 64 anos) se dizer espanhol e afirmar, simultaneamente, que «os espanhóis não são como a gente, são umas pessoas mais dadas» é disso exemplo, o mesmo ocorrendo com uma indicação de M. A. (mulher, 62 anos), segundo a qual, «no vestir, os espa- nhóis já são como a gente».

Revelador da natureza plástica e manipulativa dos processos de identificação em zonas raianas (por exemplo, Godinho 2011; Val- cuende del Río 1998), tal contradição poder-se-á eventualmente explicar em razão de os seus protagonistas residirem no país de adoção há largas dezenas de anos, não poucas vezes desde a in-

fância, adquirindo, por esta via, elementos que os vinculam emo- cionalmente a este território e à sua população de molde a inte- grarem-nos no seu conjunto de pertenças, sem que isso implique, repetimos, a perda de laços com a comunidade de origem. Ao cons- tituírem as acima mencionadas exceções, M. A. (mulher, 62 anos) e F. E. (homem, 73 anos) abonam a favor desta interpretação, já que a sua experiência de emigração é ainda relativamente breve – tem pouco mais de uma década – e teve início numa fase avançada da vida, quando os seus processos de identificação já se encontravam sedimentados.

Em concomitância, o não assumir da dualidade de pertenças nacionais constitui um aspeto recorrente nos fenómenos transna- cionais, de que a situação em análise constitui um exemplo. Como referem Linda Basch, Nina Schiller e Cristina Blanc (1994, 8),

Indivíduos, comunidades, ou estados raramente se identificam como transnacionais. Apenas na ficção contemporânea, o estar «entre» é tomado por categoria de pertença. Vivendo num mundo em que os discursos sobre a identidade continuam a ser enquadrados em ter- mos de lealdade às nações e Estados-nações, a maioria dos transmi- grantes jamais concetualizaram totalmente, nem articularam, uma forma de identidade transnacional.

Do ponto de vista dos seus coabitantes, as pessoas em estudo no presente capítulo, os emigrantes nascidos no lado oposto da fronteira, pertencem ao país de nascimento, sendo repetidamente lembrados da sua condição de estrangeiro. Isto é patente nos siste- mas de apelação em uso nestas circunstâncias, sistemas estes em que a nacionalidade – concebida como corolário da naturalidade – cumpre a função de apelido. As pessoas em questão são, assim, identificadas como fulano «espanhol», beltrano «português». Esta conceção determinista da identidade nacional dos indivíduos coe- xiste, entretanto, com uma outra de natureza oposta, cultural.

Na verdade, nas povoações em estudo, tal como os grupos nacionais, os indivíduos que deles fazem parte são vistos como cambiantes e invariáveis, em simultâneo. Embora adquiram a iden- tidade nacional à nascença, a sua preservação depende do desem- penho de certos comportamentos. Em Montes Juntos, assistimos a várias acusações de «espanholismo» dirigidas a pessoas nascidas em Portugal, ora porque praticavam ações consideradas caracterís- ticas dos espanhóis – como não beber um copo de vinho na tota- lidade, beber café frio, não perder uma tourada na televisão e falar castelhano –, ora porque interagiam frequentemente com indiví- duos de nacionalidade espanhola. De igual modo, em Cheles, tes- temunhámos acusações de «portugalidade» dirigidas a pessoas nas- cidas em Espanha, sobretudo porque se envolviam muitas vezes em relações com Portugal e com portugueses.

Este modelo classificatório, de integração nacional dos indiví- duos, evoca um outro elemento compósito da nação, nos termos propostos por Louis Dumont (1983) e retomados por Richard Handler (1988). Como nos contextos estudados por estes autores, para além de ser visto como um «indivíduo coletivo», o grupo na- cional é, nas povoações em perspetiva, concebido como um «con- junto de indivíduos». A já sublinhada ideia de que «os espanhóis são uma raça cigana» adquire sentido neste contexto. Curiosa- mente, em Montes Juntos e em Cheles, os critérios considerados centrais na identificação nacional dos indivíduos são idênticos aos que integram a perceção que os informantes de Handler (1988, 32-39) têm de si enquanto quebequianos, designadamente, a liga- ção afetiva ao território e o seguimento de um certo «código de conduta».

Os dados relativos à identificação nacional dos indivíduos que acabámos de passar em revista, quer na perspetiva do «eu» quer na dos «outros», estabelecem uma relação estreita entre território e identidade nacionais no plano coletivo, relação esta intimamente associada ao processo de nacionalização do território iniciado no

contexto da Revolução Francesa (1789-1799) (Sahlins 1989). A des- peito do fenómeno de desterritorialização dos processos culturais e identitários (ver, por exemplo, Basch, Schiller e Blanc 1994; Fitz- gerald 1992), continua-se, ainda hoje, a praticar uma correspon- dência entre território e população, inclusive em termos nominais – Portugal/portugueses, Espanha/espanhóis...

No documento Identidade Nacional (páginas 173-178)