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Um olhar sobre as comidas festivas

No documento Identidade Nacional (páginas 94-98)

As festas são momentos propícios ao consumo de alimentos de exceção, ou assim considerados por não fazerem parte da alimen- tação quotidiana, seja por causa do custo, seja pela complexidade da sua elaboração culinária, seja por estarem associados a uma data específica. É verdade que o desenvolvimento da indústria alimen- tar e o relativo aumento do poder de compra têm ocasionado pro- fundas alterações nos hábitos alimentares das populações. Ainda assim, por norma, as festas não deixam de estar associadas a deter- minados pratos ou iguarias – embora, por vezes, é certo, esses ali- mentos também sejam consumidos em circunstâncias ordinárias. A componente alimentar das festividades cíclicas estudadas no ca- pítulo anterior é, neste ponto, exemplificativa.

As comidas emblemáticas das festas de Nossa Senhora da Con- ceição em Montes Juntos são de dois tipos: (i) «comeres», nomea- damente, assado e ensopado de borrego, arroz tostado (com gali- nha), cabidela (de frango, galinha ou peru), canja de galinha e frango assado; e (ii) «bolos fintos», designadamente, talhadinha, saboia, argolas, esquecidos e roscas. Estes itens estão igualmente presentes noutras alturas do calendário festivo. Na atualidade, o ensopado de borrego, a cabidela e os assados de borrego e de frango também costumam comer-se no Natal, no Carnaval, na Páscoa e nas festas de Santa Maria. Contudo, geralmente, só nas festas de Nossa Senhora da Conceição é que os assados são feitos em fornos de lenha, reproduzindo-se, assim, o investimento dife- rencial positivo que os habitantes projetam nesta data. Os bolos fintos, por sua vez, são igualmente característicos da Páscoa. Dada

a proximidade temporal entre as duas quadras, porém, apenas são feitos numa ocasião – ou se confecionam em maior quantidade para fazer face a ambos os períodos ou exclusivamente pela festa.

Apesar de nela também se comerem os alimentos anteriormente mencionados, a Páscoa surge ligada ao consumo de bolo finto, folar, amêndoas e chocolates, bem como a um preceito relativo à Sexta- -Feira Santa. Diz-se que, neste dia, «não se come carne, mas bolos e comidas com azeite» (por exemplo, F. M., mulher, 69 anos), in- cluindo favas, ervilhas, bacalhau, couves, ovos e «almece» (produto secundário obtido no fabrico artesanal de queijo). No Carnaval, comem-se os pratos já assinalados, assim como arroz-doce e fritos, nomeadamente, filhós, nogados, azevias e borrachos. Relativamente às comidas, apurámos que, «antes, como o dinheiro era pouco, fazia- -se assado de mogango em vez de borrego, e comia-se sopa de couve com massa e arroz seco com galinha, chamado ‘arroz de panela’, por se fazer numa panela de ferro» (A. S., mulher, 65 anos).

A alimentação característica do Natal consiste nos comeres acima mencionados e nos fritos também comidos no Carnaval, bem como em bolo-rei, tarte de amêndoa, «fatias» (rabanadas), «coisas da matança» (do porco) e peru. Atualmente, muitas pessoas compram os complementos alimentares, como os fritos e os bolos. Aspeto a realçar é que estes mesmos produtos circulam entre os habitantes, particularmente no Carnaval, na Páscoa e na festa de Nossa Senhora da Conceição, datas em que se procede à distri- buição de «presentes» junto de enlutados e amigos. Paralelamente, verifica-se a realização de repastos de pequenos grupos de homens, compostos por caldeiradas de peixe do rio e alimentos feitos com carne de porco e derivados, entre eles cozido à portuguesa com carne de porco e febras grelhadas.

Em Cheles, apurámos que, nas festas de Santo Cristo, é usual comer-se carne de vaca, tortilha de batatas ou tortilha espanhola, caldeirada de borrego, pernil de porco, costeletas de borrego assa- das, frango e doces (madalenas, roscos). Mas estes produtos também

são comidos noutros períodos festivos, como sucede, por exem- plo, na Romaria de Santo Isidro e nas festas do Emigrante. Nesta povoação espanhola, costuma dizer-se que, «na festa de Santo Cristo, come-se de tudo, não há nada típico da festa» (por exem- plo, mulher, 50-55 anos; homem, 35-40). Há cerca de três décadas, porém, estas celebrações eram marcadas pelo consumo generali- zado de carne de vaca, uma vez que as despesas associadas à festa, excluindo o fogo de artifício e os honorários do pároco, eram su- portadas pela população sob a forma de encomenda de uma quan- tia de carne do animal morto na tourada.

A emergência de outras modalidades de financiamento das fes- tas, aliada ao aumento do poder aquisitivo subjacente à introdução da carne de vaca na alimentação quotidiana, justifica a perda de estatuto de comida excecional deste item. Atualmente, embora se consuma carne de vaca na data em questão, esta é uma prática le- vada a cabo por uma ínfima parte da população, não reunindo, por isso, as condições necessárias para que este consumo seja clas- sificado como emblemático da ocasião. A par dos itens já aponta- dos, na Romaria de Santo Isidro, come-se carne com tomate, es- petadas, fritos (croquetes, almôndegas, entre outros), sardinhas assadas, gaspacho de peixe e derivados de porco, entre eles chou- riço e presunto.

Apesar de também se comerem outros alimentos, o Natal está associado a pato assado ou em molho, frutos secos, fritos (borrachos

e roscos) e doces (polvorones, maçapães e torrones). Por seu turno, as

comidas típicas do Carnaval são arroz-doce ou arroz com leite. Fi- nalmente, na Páscoa, comem-se os itens referidos no âmbito das festas de Santo Cristo e outros bolos (perrunillas e biscoitos). Na Sexta-Feira Santa, como é usual entre os católicos praticantes, «não se come carne para não pecar», mas sim guisado de grão-de-bico, omelete de batatas, guisado de lentilhas, saladas, peixes, bacalhau, espinafres fritos, acelgas fritas e bolos de azeite, sobretudo mada- lenas, folares e roscos.

Tal como em Montes Juntos, o desenvolvimento da indústria alimentar está subjacente ao divórcio tendencial que hoje se veri- fica entre o produtor e o consumidor dos bolos, doces e fritos que compõem a dieta festiva dos cheleros. Contudo, ao contrário da- quela, não encontrámos nesta povoação qualquer trânsito de ali- mentos em ocasiões excecionais como as que temos vindo a passar em revista. Mas o comer não está destituído do poder de afirmação de amizades, como sucede, por exemplo, no período do Natal, al- tura em que as pessoas convidam os familiares e os amigos a des- locarem-se a suas casas, servindo-lhes iguarias (polvorones, torrones, frutos secos e maçapães).

A par destas, outras similitudes e dissimilitudes sobressaem da comparação entre as comidas festivas em Montes Juntos e em Cheles, quer em termos de produtos, quer de relação entre ali- mentos e datas. Abstraindo das eventuais especificidades locais, interessa destacar a forma como o microcosmo constituído por estas duas povoações espelha a realidade de um quadro mais amplo. Neste sentido, o estudo desenvolvido ao longo do Gua- diana a sul da confluência do Caia (no biénio 1993/1994) permi- tiu-nos perceber que o assado e o ensopado de borrego, assim como os bolos fintos e os fritos, recenseados em Montes Juntos, fazem parte das comidas festivas de outras populações do Alto Alentejo oriental, sem paralelo na franja espanhola. Outrossim, sabe-se que a omelete de batatas, a carne em molho e o guisado de lentilhas são comeres típicos e tipificadoras das cozinhas espa- nholas, da mesma forma que o bolo-rei é um elemento caracterís- tico das comidas de Natal em Portugal.1

A nível da alimentação festiva, há, portanto, uma série de dife- renças de facto entre as populações em estudo ilustrativas dos seus

1Para um estudo mais aprofundado sobre as comidas festivas das populações

de ambos os lados da fronteira a sul da confluência do rio Caia com o Guadiana, ver Martins (s. d., 262-369).

diferentes enquadramentos socioculturais, decorrentes do traçado de uma linha de fronteira internacional que os articula e desarti- cula, de modo simultâneo.

Petiscos e refeições: um inventário das comidas

No documento Identidade Nacional (páginas 94-98)