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Capítulo I – Configuração social e negociação: construindo uma sociogênese do grupo de dança

1.6 A performance dramática: estética e eixo temático de espetáculos amazônicos

1.6.2 As festas populares na Amazônia e a circulação do Wãnkõ Kaçaueré

As festas populares amazônicas podem ser caracterizadas como práticas culturais afro- descentes, indígenas, caboclas ou mestiças e da colonização europeia (BRAGA, 2007), com os seus diversos estilos de expressão, como a tradicional, folclórica, popular comercial, turística e, sobretudo, aquelas convertidas em espetáculos ‘desterritorializados’, “aquele deslocado de sua comunidade ou circuito de origem” (CARVALHO, 2000, p. 42), com adaptabilidade a nova forma de relação com o mercado, demonstração de trabalhos artísticos, disputas por espaços, distanciamento das tradições, articulação com o Estado, empresas de patrocínio e vínculo com a indústria cultural

Essas festas populares na Amazônia constituem um calendário de diferentes celebrações e um roteiro por onde circulam formas de expressões de artes e grupos, sejam de dança, música e de artistas plásticos com especialidades em alegorias e adereços. Entende-se por festas populares os festivais folclóricos de boi-bumbá, cirandas, tribos, botos que fazem parte de uma estrutura de captação de recurso dos governos estaduais e municipais com possibilidades também de captarem recursos federais por direito ou por meio de projetos de renúncia fiscal, e ainda, por patrocínios de empresas privadas, prefeitura ou que se amparam por agentes distribuídos em diversos espaços de poder e em diferentes lugares de interação.

Dentro das dinâmicas dessas festas populares amazônicas, tomo como destaque as ações coletivas, as organizações institucionais e as relações de poder que estão vinculados a atividades de festivais folclóricos que os grupos de dança percorrem. Nesse sentido, Silva (2011) afirma que a cultura deve ser compreendida nesses lugares como algo que abrange múltiplas dimensões e negociações diversas, sendo que a produção de um evento não está dissociada da comercialização ou remuneração dos serviços de arte. Para o autor, a produção de trabalho dos grupos folclóricos ocorre de acordo com as datas dos eventos festivos que, em sua maioria,

iniciam no mês do carnaval, tendo o seu ápice em junho com as festas juninas e o seu desdobramento até dezembro.

Dessa maneira, as festas populares amazônicas não podem ser pensadas como grupos integrados apenas por pessoas de seus bairros, cidades e municípios. Estas expandem, negociam e comercializam para além de suas dimensões locais. Em se tratando da circulação do grupo de dança Wãnkõ Kaçaueré, embora a casa de Fabiano Alencar, no bairro de São Francisco, zona sul de Manaus, interliga-se a outros bairros de Manaus, municípios do Amazonas e do estado do Pará. Pode-se afirmar que acontece durante o ano inteiro, porque se dá para além dos calendários das festas populares.

Em 2016 e 2017, o grupo Wãnkõ Kaçaueré tinha quatro percursos pré-estabelecidos na Amazônia, com o Festival Folclórico do Amazonas (AM), por meio da Associação Folclórica Cultural Boi-Bumbá Corre Campo; com o Festival Folclórico de Parintins (AM), em decorrência da Associação Folclórica Boi-Bumbá Garantido; com o Festival Folclórico de Nova Olinda (AM), por intermédio da Associação Folclórica e Cultural Boi-Bumbá Diamante Negro e com o Festival dos Botos de Alter do Chão, distrito de Santarém (PA), pela medição da Associação Folclórica Boto Tucuxi, além de outros contratos realizados com empresas organizadoras de eventos.

O Festival Folclórico do Amazonas17, oficializado institucionalmente em 1957, na cidade de Manaus, agrega manifestações que se denominam grupos folclóricos como garrotes, quadrilhas, danças nordestinas, tribos, cacetinhos, cirandas e boi-bumbá que apresentam as suas danças no período das festas juninas. Dentro dessas categorias, existem vários grupos folclóricos para cada expressão, no entanto, algumas manifestações reúnem um grupo maior e outras um número mais reduzido (SILVA, 2011). O Festival Folclórico do Amazonas conta com quatro associações que são encarregadas das organizações dos grupos folclóricos nos dias de exibição: a Associação dos Grupos Folclóricos do Amazonas (AGFAM), Associação dos Grupos Folclóricos de Manaus (AGFM), Liga Independente dos Grupos Folclóricos de Manaus (LIGFM) e Associação do Movimento dos Bumbás de Manaus (AMBM). Os bois denominados de Corre Campo, Garanhão e Brilhante, por vezes, são chamados de grupos folclóricos e, em circunstâncias mais formais, de trâmites burocráticos em Secretarias de Cultura, são

17“Em 1957, tem-se a institucionalização com o que se chamou de I Festival Folclórico do Amazonas, realizado

em Manaus, no mês de junho com recursos da prefeitura e da iniciativa privada. Este festival gerou para os grupos folclóricos um espaço de disputa formal, adquirindo a condição de comportar aquilo que os grupos consideram como o local da mais importante apresentação do ano. E, para a cidade um espaço público de entretenimento no período das festas juninas”. (SILVA, p. 94-95, 2011).

denominados de Associações Folclóricas Culturais (SILVA, 2011), são eles que contratam os serviços de grupos de dança para compor o quadro de brincantes no momento da apresentação.

Todo ano, no último final de semana de junho, ocorre o Festival Folclórico de Parintins18, com a disputa dos bumbás Caprichoso e Garantido, na arena do Bumbódromo

(BRAGA, 2002; NOGUEIRA, 2014; CAVALCANTI, 1999). Tanto o Boi Caprichoso quanto o Boi Garantido, oficialmente, são Associações Folclóricas de Boi-Bumbá, e usam essa denominação para tratar de questões burocráticas de obtenção de recurso dos governos estadual, federal, municipal, empresas públicas de capital mistas e privadas e para prestações de contas. Essas associações possuem grupos e companhias de dança dentro dos setores artísticos ou que executam atividades relacionadas à exibição dos eixos temáticos na arena do Bumbódromo, neles são ensaiadas e exibidas diversas linguagens artísticas, como as encenações de rituais, danças tribais, cênicas, vaqueirada e composições de alegorias para serem julgados por uma comissão julgadora. Para compor esse conjunto de produção artística, em cada edição de festival, as Associações Folclóricas de Boi-Bumbá contratam trabalhos de grupos de dança de outras cidades e vilas, Manaus (AM), Presidente Figueiredo (AM), Maués (AM), Juruti (PA), Alter do Chão (PA), Óbidos (PA), Vila Amazônia (AM) e Mocambo (AM).

Ocorre anualmente no distrito de Alter do Chão, distante 34 km de Santarém, (PA), o Festival do Sairé19. É um dos eventos festivos que atrai mais turistas para aquela região do Baixo Amazonas paraense, contendo em sua programação basicamente a apresentação de duas associações cuja denominação é boto, são: Boto “Cor de Rosa” e Boto “Tucuxi”, tidos como protagonistas de uma arena de apresentação chamada “Lago dos Botos” que, no contexto atual, se aproxima muito do modelo de apresentação dos bois de Parintins (CARVALHO, 2016). O Festival dos Botos é realizado em setembro, no ápice do verão Amazônico, estando entrelaçado à Festa do Sairé de Alter do Chão que são celebrações das Festas de Santo associadas aos ritos religiosos, formas tradicionais de expressão musical, coreográfica, dimensão lúdica, dentre outros. Utilizam-se especificamente dois espaços organizacionais, o Lago dos Botos e o

18“O Festival folclórico foi criado em 1966 por um grupo da Juventude Católica na quadra da futura catedral da

padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo, na antiga Praça do cemitério, situada entre os dois bairros de origem dos Bois. O festival durava dez dias e o foco das apresentações eram então as quadrilhas juninas dos bairros mais periféricos. Os Bois eram atração secundária, apresentando-se apenas para encerrar o festival, em intervalos temporais afastados, de modo a evitar o perigo de seus encontros. Entretanto, sua apresentação livre no primeiro festival logo se tornou disputa, pois a adesão dos moradores conformou duas torcidas, e trouxe os Bois para o centro da cena” (Cavalcanti, 2018, p. 18).

19Segundo Luciana Carvalho (2016), há uma polêmica que ainda não foi superada na alternância da grafia do nome

Sairé ou Çairé e com ela acompanha uma sequência de alterações de data da celebração. A festa do Sairé “em menos de três décadas, tornou-se o maior evento festivo e turístico do Baixo Amazonas paraense, incluindo em sua programação um festival protagonizado por duas agremiações de botos que se apresentam em uma espécie de arena de espetáculo, ao estilo dos bois-bumbás de Parintins” (p. 239).

barracão. As Associações de Boto Tucuxi e Rosa contratam os trabalhos coreográficos dos dançarinos, coreógrafos e grupos de dança para compor os quadros de lendas e rituais, itens que concorrem ponto na arena “Lago dos Botos”.

Respectivamente, os municípios do Estado do Amazonas e de outros estados apresentam um calendário anual das festas populares que não ocorrem em concomitância. Por conseguinte, que os grupos de dança e artistas passam o ano todo desenvolvendo trabalho de espetáculo em diversos lugares da região. Nem todas as manifestações comportam as exibições de bois- bumbás, embora adotem o modelo de organização e construção de espetáculo da parintinização. Dentro dessa perspectiva destacam-se alguns municípios do Estado do Amazonas, onde ocorrem com mais intensidade os fluxos dos grupos de dança, como podemos observar no quadro a seguir.

Quadro 3: Festivais e festas do estado do Amazonas

Manaus Festival Folclórico do Amazonas Festivais Folclóricos de Bairros Itacoatiara Festival da Canção

Parintins Festival Folclórico de Parintins Festival Folclórico em Miniatura Barreirinha Festival Folclórico de Barreirinha

Maués Festa do Guaraná

Nova Olinda do Norte Festival Folclórico de Nova Olinda do Norte Tabatinga Festival Internacional de Tribos do Alto Solimões Benjamin Constant Festival Folclórico de Benjamim Constant Coari Festival Folclórico de Coari

Barcelos Festival do Peixe Ornamental Fonte Boa Festival Folclórico de Fonte Boa Manacapuru Festival de Cirandas

Presidente Figueiredo Festival Folclórico de Presidente Figueiredo Festa do Cupuaçu

Fonte: Elaborado pela autora a partir do Inventário Nacional de Referências Culturais do Amazonas, 2014. São as Associações, Agremiações e Organizações desses festivais, sejam de Boi- Bumbá, Tribos, Cirandas, Onças, que estabelecem contratos com artistas especialistas de determinados lugares da Amazônia, como músicos, artesãos, coreógrafos, dançarinos, artistas plásticos, roteiristas de espetáculo. É em meio a essas interações de circulação que se destacam as trocas de caráter mais simbólico (que não envolvem contrato) e aquelas direcionadas às disposições contratuais (implicam em valor monetário) de modo formal. As negociações aqui têm destaque por mesclarem fatores de ordens artísticas, produções coreográficas, econômicas,

políticas, sociais e culturais, por meio dos quais é possível refletir as ações de resistências e condições sociais que envolvem o Wãnkõ Kaçaueré e outros grupos de dança.

Na circulação dos grupos de dança em festas populares na Amazônia, essa dinâmica da disputa por espaço de poder, interesses individuais e coletivos são bastante visíveis, na medida em que, as funções ocupadas principalmente dentro dos setores administrativos das entidades que eventualmente resultam em cargos de coordenação e gerenciamento são extremamente limitados e geralmente há restrição de acessos dentro desses setores. Da mesma forma, se dá no universo artístico de fechamentos de contratos, ou seja, a disputa para execução de um trabalho dentro desses ambientes ocorre de maneira muito acirrada, coberta de números de alto evidenciamento.

Dentro desse panorama, as lideranças dos grupos fazem contato com os presidentes, vice-presidentes, coordenadores e diretores, independentemente se a posição que desejem já esteja preenchida por seus colegas de profissão, isto é, mostram que os seus trabalhos têm mais relevância e argumentam que o grupo que está ocupando não tem competência suficiente para continuar defendendo aquele item. Por isso que determinado grupo precisa se tornar especialista na execução daquele trabalho, ou seja, criar um estilo, uma característica, tentar ocupar lugar de mais visibilidade e, acima de tudo, adquirir privilégio de ser convidado. O grupo de dança Wãnkõ Kaçaueré, por exemplo, tem característica própria por ser especialista em saltos e coreografias de representação de danças tribais, com isso cristalizou uma nova proposta estética autoral, desde 2012.

As representações simbólicas abordadas ao longo desta discussão, constituem-se em constelações que, no seu conjunto, formam o universo de significados atribuídos aos passos e rumos estabelecidos por redes e circuitos subjacentes à compreensão da construção, dos pactos internos e trajetória do Wãnkõ Kaçaueré. A dinâmica intrínseca na trajetória que perpassam as configurações cênicas do grupo, a objetivação do deslocamento e apresentação do grupo estão descritas, argumentas e analisadas no capítulo II, intitulado: “Parintinização: a dinâmica da circulação”.