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Trajetória de Fabiano Alencar: construção artística e relações empresariais no contexto do

Capítulo I – Configuração social e negociação: construindo uma sociogênese do grupo de dança

1.2 Trajetória de Fabiano Alencar: construção artística e relações empresariais no contexto do

A noção de trajetória, enquanto percepção analítica, serve para entender tanto a criação do grupo Wãnkõ Kaçaueré por meio de determinadas circunstâncias, como também situar contextos e espaços sociais em que os artistas estão envolvidos. Dentro desse panorama, a trajetória de Fabiano Alencar está relacionada ao ambiente da circulação, principalmente no que se refere à relação de negociação do agente com associações contratantes e demais pretensões pessoais. Utilizo a ideia de trajetória proposta por Bourdieu (2011), quando ressalta que o termo é a objetivação das interações entre o agente e as formas relacionais do campo social. O desenvolvimento dessa objetivação deriva um percurso, que, ao contrário das biografias comuns:

[...] a trajetória descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo literário, tendo ficado claro que é apenas a estrutura do campo, isto é, repetindo, relacionalmente que se define o sentido dessas posições sucessivas, publicação em tal ou qual revista, ou por tal ou qual editor, participação em tal ou qual grupo. (BOURDIEU, 2011, p. 71).

Mediante o exposto, a trajetória ocorre por meio de sucessivos espaços ocupados por determinados artistas e pelo conjunto de situações que esses indivíduos se deparam no interior da estrutura da parintinização (SILVA, 2011). Nesse contexto, o grupo Wãnkõ Kaçaueré faz parte de uma configuração social criada pelo processo de representação simbólica em alusão à cidade de Parintins ou daquilo que nasce ou tem origem na cultura parintinense. Pautados em regulamento contratual e de parceria, esses processos se caracterizam pela nova forma de organização estrutural, social, estética, musical, alegórica, performática e coreográfica de produzir espetáculo. Esse modelo tem como finalidade a comercialização econômica, cultural e turística feita através de espetáculos direcionados para o grande público e patrocinadores.

Diante disso, as apresentações do grupo Wãnkõ Kaçaueré, nessa rede da parintinização, é identificado por simbologias de rituais indígenas, cuja performance dramática o grupo se tornou especialista. Para além disso, há contratos pactuados, exigindo-se do grupo distintos ritmos, como as cirandas, o carimbo, o forró, dentre outros.

Nesse sentido, a trajetória social é o movimento dentro do campo estratégico pelo fato de que a realidade está sempre em mudança, mesmo que as estratégias e os percursos individuais sejam realizados de modo casual. Essa constatação faz sentido quando a ação de um agente ou grupo social está relacionada à estrutura do campo enquanto espaço de posição e disposição desse segmento em cada situação. Nesse aspecto, a trajetória social é um ponto importante frente à configuração atual em que o grupo de dança Wãnkõ Kaçaueré se encontra e quando faz articulação do deslocamento para as festas populares. A partir desse entendimento, acredita-se ser possível afirmar que a criação do grupo surgiu conectada à trajetória de Fabiano Alencar, permitindo ainda observar como as próprias negociações são determinadas pelos encadeamentos dessas condições simbólicas e humanas de existência, por meio das quais orientam os modos de agir do grupo e até mesmo a decisão para mudar de entidade administrativa quando necessário.

A trajetória social aqui apresentada relata a importância da carreira artística de Fabiano Alencar e de como se tornou conhecido no universo da arte, principalmente no que se refere ao contexto do boi-bumbá. Da mesma forma com que Fabiano Alencar descreve a trajetória do grupo Wãnkõ Kaçaueré, é também quando ressalta a sua experiência individual como artista. Partindo dessas premissas, Fabiano Alencar faz questão de pontuar algumas de suas participações, como, por exemplo, no Festival Folclórico de Parintins, atuando em dois momentos: a primeira em 1990, quando substituiu o pajé oficial da Associação Folclórica do Boi-Bumbá Garantido; e a segunda vez, em 2009, quando também assumiu o posto do pajé oficial da Associação Folclórica Boi-Bumbá Caprichoso, uma vez que disputar como item de equivalência cultural do boi-bumbá de Parintins é como ter chegado ao ápice da carreira profissional de um dançarino, mesmo que tenha sido por apenas uma ou duas noites de atuação do espetáculo de arena do Bumbódromo.

Em meados de 1990, quando houve o desfalque do item “pajé” oficial na Associação Folclórica Boi-Bumbá Garantido, outros nomes também eram cotados para assumir o posto, mas, Fabiano Alencar, naquele momento, estava bem relacionado com os membros da família Medeiros, que tinham “forças” quanto ao poder de decisão da entidade. A mesma situação ocorreu quando Fabiano substituiu o “pajé” oficial da Associação Folclórica Boi-Bumbá

Caprichoso em 2009, pois, nessa ocasião, ele se encontrava na condição de “pajé” substituto, mas, mesmo assim, era preciso de indicação e consenso dos dirigentes do Conselho de Artes do Boi Caprichoso, para que fosse oficializada e confirmada para o público a sua apresentação na arena. Não é uma tarefa fácil substituir um item oficial momentos antes da apresentação; e ser submetido a julgamento tanto pelos jurados, como pelo público.

O que se pode levar em consideração dessas duas atuações de Fabiano Alencar, é que determinada apresentação em uma arena do espetáculo se faz pelos tipos de relações de poder que ocorrem nesses espaços. Essa dinâmica da circulação entre esses ambientes das entidades fez com que o artista fosse aprimorando a sua forma de articulação. Fabiano Alencar e os demais artistas perceberam que contribuíam com saberes e fazeres diversos, principalmente no que se referia à produção de espetáculo, e, para tanto, precisavam lutar por espaços e direitos da profissão. Esses trabalhos especializados emergiram nas festas populares por relações pessoais e informais que foram se consolidando por meio de diferentes configurações e atribuições. Um dos fatores da regulamentação da profissão do artista é a importância do contrato assinado, isto é, o contrato se apresenta como uma garantia do direito de receber o pagamento, porém, mesmo assim, grande parte dos acordos que os artistas negociam não se formaliza pela questão de confiança e de pertencimento estabelecida com a entidade contratante.

O segundo momento da trajetória de Fabiano ocorre quando o processo da parintinização estava propagado e assimilado de maneira intensa em grande parte das festas populares do Amazonas. É importante evidenciar que esses fluxos foram resultantes desse acúmulo de capital simbólico e capital econômico (BOURDIEU, 2007) adquirido durante esses anos de trabalho, visto que Fabiano Alencar se constrói como artista, líder e empreendedor, devido às suas negociações feitas com dirigentes, coordenadores e presidentes das entidades. Dentro dessa configuração dos fluxos culturais, o artista fez diversas articulações para se apresentar na arena e defender o item “pajé” dentro das características das performances dramáticas. Nessa conjuntura, Fabiano Alencar foi chamado para dançar em eventos de representatividades culturais como no Acará-disco e Cardinal, no Festival Peixe Ornamental de Barcelos (AM), assim como nos Bois-Bumbás Corre Campo, Garanhão e Brilhante de Manaus, por ocasião do Festival Folclórico do Amazonas; no Boi-Bumbá Diamante Negro e no Corre Campo, de Nova Olinda do Norte (AM) e, também, no Festival dos Botos, de Alter do Chão (PA). A respeito de sua experiência Fabiano Alencar em uma conversa com os integrantes do grupo, diz:

Então, assim, para você se tornar alguém na vida, eu aprendi isso porque danço há 22 anos, como já falei, fui pajé do Garantido e Caprichoso, fui pajé de dois bois de Nova

Olinda, fui pajé dos três bois de Manaus, fui pajé dos peixes ornamentais, fui pajé dos dois botos em Santarém. Então, passei um tempo em Curitiba trabalhando com a arte, fui modelo, viajei para São Paulo e Rio de Janeiro, voltei para o boi novamente e fui ser coreógrafo em Parintins. Tudo porque eu conhecia um e conhecia outro e fui muito indicado por causa do meu trabalho (Fabiano Alencar, pesquisa de campo, 2016). A trajetória social de Fabiano Alencar revela todo esse domínio de como percorrer esses espaços. Suas narrativas versam sobre essas lutas internas para que o artista saísse dos bastidores, superando a invisibilidade para a posição de item oficial de arena, considerado como um lugar de poder e prestígio. Agindo assim, o artista extrapolou o ambiente das festas populares e seguiu para outras regiões do Brasil, como faz questão de referenciar os lugares de grande possibilidade de trabalho artístico como Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Dessa maneira, foi por intermédio das suas relações individuais que o projeto de criação do grupo Wãnkõ Kaçaueré, em uma perspectiva mais autônoma, se apresentava como um caminho mais promissor.

Bourdieu (2011) expõe que a trajetória social de um agente ganha força quando começa a operar em um campo de ação, que muitas vezes não consegue atinar para a questão real da sua pretensão. Nesse sentido, se um campo vive em constante mudança, a trajetória social se constitui dentro dessa estrutura, com estratégias que ganham formas muitas vezes momentâneas. Em 2011, como já foi evidenciado, quando Fabiano cria o grupo Wãnkõ Kaçaueré, a ideia era se aperfeiçoar em dança para a temática indígena do Festival Folclórico de Parintins, por conta da abrangência de público e transmissão para todo o Brasil. Essa pretensão possibilitou uma formação estrutural mais organizada e, inicialmente, ligada à temporada de ensaios do boi-bumbá de Parintins, em Manaus, a qual comumente ocorre entre abril e maio, e aos shows de cantores de boi que faziam parte desse circuito.

Os ensaios nos “currais” de boi de Parintins em Manaus ocorrem em lugares disponibilizados para esse tipo de evento e têm início após o Carnaval com determinadas atrações e convidados. Geralmente, ocorrem nos fins de semana em um revezamento de Garantido e Caprichoso, nos dias de sábado ou domingo à noite. Segundo Nogueira (2014), os ensaios têm a finalidade de divulgar o festival, treinar as toadas e observar as coreografias dos “itens” e das torcidas organizadas, além de mobilizar músicos, artistas de boi-bumbá, profissionais, diretores e patrocinadores, sendo que grande parte desse público que comparece aos ensaios se desloca até Parintins para participar dos três dias de festa.

Em 2012, um ano depois da sua criação, o grupo Wãnkõ Kaçaueré recebeu o convite para dançar na Associação Folclórica Boi-Bumbá Garantido, se apresentando no módulo temático “momento tribal”, item “coreografia”. A solicitação ocorreu em decorrência das

tratativas do Fabiano Alencar com Chico Cardoso, coordenador das artes cênicas; Fred Góes, membro da Comissão de Artes e com Telo Pinto, presidente da entidade na época. Para cumprir esse primeiro trabalho do grupo de dança, Fabiano Alencar ficou encarregado de fixar contrato, por meio de uma “obrigação empresarial” (Prado, 2007) para a produção artística e de responsabilidade financeira do grupo Wãnkõ Kaçaueré.

Por exercer essa função de coordenador, Fabiano Alencar passou a se intitular dono, coreógrafo, empresário do grupo com o anseio de se legitimar, uma vez que o reconhecimento do grupo no campo da espetacularização (CARVALHO, 2010) também compactua para a percepção do “dono”, ou seja, aquele que está no epicentro das negociações, como, por exemplo, é recorrente ouvir “esse é o grupo do Fabiano Alencar de Manaus” ou “aquele é o grupo Wãnkõ Kaçaueré do Fabiano”. Nesse aspecto, o elemento primordial é construir aliados influentes no sentido do contrato. Essas alianças são constituídas com “amigos, amigos de amigos por meio das redes sociais” (BOISSEVAIN, 2010), que podem ser temporárias ou muito duráveis por se consolidarem como essência do contexto social.