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As figuras seleccionadas – razões e pertinência da selecção

Capítulo 2 – Os clássicos no jardim-de-infância

2.4 As figuras seleccionadas – razões e pertinência da selecção

A produção literária para a criança é uma das formas pela qual podemos perceber como a sociedade deseja formar/socializar os pequenos leitores. Para isso, a personagem torna-se a principal fonte de identificação do leitor com o universo literariamente elaborado, e a forma como as personagens são representadas dentro de uma narrativa indiciam uma possível conduta desejável da criança dentro da sociedade.

No que se refere às personagens femininas, sobretudo as que desempenham o papel de princesas, são normalmente caracterizadas pelos atributos femininos que marcam a passividade e a sua função social como objecto do prazer e da organização familiar. Belas, virtuosas, honestas e piedosas, elas merecerão como prémio o seu príncipe encantado (Bela Adormecida, Gata Borralheira). Observamos que estas personagens obedecem cegamente aos progenitores ou superiores, independentemente da justiça das decisões tomadas por estes. As personagens, inicialmente, actuam no sentido de evitar o castigo e/ou receber recompensa ou ainda e numa fase seguinte, as actuações das personagens pretendem dar resposta a necessidades individuais e estabelecem acordos em termos de trocas concretas. Por exemplo, a Gata Borralheira desempenha todas as tarefas, inicialmente para evitar castigo, depois para poder ir ao baile. As personagens vão evoluindo, crescendo, até que chega o momento de tomar as suas próprias decisões. Deixam de obedecer cegamente a ordens incompreensíveis, optando por assumir uma atitude que seria normalmente vantajosa para si e para os outros. Normalmente a seguir à transgressão vem o castigo, que pode também ser visto como um tempo de reflexão,

de concentração espiritual, de análise e tomada de consciência da gravidade das suas decisões. Verificamos também, que é graças à coragem de transgredir que as heroínas atingem a maturidade e resolvem as suas vidas, normalmente para o bem (Fonseca, 2002, pp.80- 85).

A representação do feminino em Romeu e Julieta e no episódio de Inês de Castro volta-se para a transgressão da mulher que não aceita o seu papel de objecto na ordenação da sociedade (cf. Pinho, s.d.). No caso de Julieta e Inês de Castro, por não conseguirem o lugar de independência na sociedade, romperem o pacto social e, por consequência, são banidas do lugar da ordem. Também em Romeu e Julieta, no episódio de Inês de Castro, como nos contos de fadas, assistimos à imposição de um interdito que acaba por ser transgredido. E a transgressão, sobretudo no caso das personagens femininas, traz normalmente associada a ideia de castigo (cf. Fonseca, 2002, p.78), como acontece de facto nos dois textos referidos.

Os contos apresentam-nos, muito frequentemente, uma situação de caos inicial no qual se movimenta um conjunto de personagens e se nos contos de fadas as decisões que as personagens tomam, ainda que à revelia de outros, não parecem ser crimes muito graves, por isso elas vão passar um período mais ou menos explícito de morte aparente, no caso de Julieta e Inês de Castro, estas vão purgar as faltas cometidas. A busca da morte é indício de uma transgressão tão grave que não pode ser resgatada em vida, por isso, somente o desaparecimento ou a aniquilação poderá saldar o grande equívoco (cf. Pinho, a propósito de Julieta).

Podemos encontrar pontos de aproximação entre as histórias de Romeu e Julieta e de Inês de Castro e os contos de fadas, por isso não será descabido nem incompreensível aproximar estas personagens dos pequenos leitores, uma vez que estão de certa forma próximas das personagens que povoam o seu imaginário. O mesmo se poderá dizer de Adamastor, assim, ao contrário de considerar esta atracção pelos monstros como um fenómeno recente e particular da infância e juventude, sabe-se que estes fenómenos sempre inspiraram um intenso fascínio à espécie humana. Transferidos para os seres monstruosos, os medos do indivíduo ou da colectividade, tornam-se reais e podem ser combatidos e vencidos por força da inteligência e da astúcia. Deste modo, o Homem reivindica também o seu lugar de primazia no mundo, afirmando a superioridade da sua espécie (Ramos, 2007, p.140). Os monstros dos livros para a infância são, os monstros do quotidiano, numa tradição longínqua que se habituou a

associar a estes fenómenos os obstáculos e as dificuldades que o herói tem de enfrentar e vencer na sua demanda de glória e de imortalidade.

A importância destas personagens na narrativa infantil é variável, assim como a sua funcionalidade, desempenhando vários papéis, adjuvantes ou oponentes, do lado do Bem ou do Mal. O facto de o fenómeno causador de medos ter receios e sofrimento permite a aproximação e a identificação da criança. Na produção actual, assiste-se frequentemente à desconstrução destas ideias feitas sobre monstros que, apresentando- se como seres incompreendidos ao longo dos séculos, surgem humanizados, muitas vezes frágeis e carentes. Tal como Adamastor, que quisera fugir quase louco, pela mágoa e pela desonra procurando outro lugar em que não houvesse quem risse de sua tristeza:

Daqui me parto, irado e quase insano Da mágoa e da desonra ali passada, A buscar outro mundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

(Camões, est.55)

Romeu e D. Pedro são para as crianças os príncipes e heróis dos contos de fadas e pertencem ao tipo de herói que erra num momento de fraqueza (irreprimível desejo erótico), e que terá de ser punido por esse deslize. As personagens secundárias continuam a inserir-se nas duas categorias: auxiliares dos heróis, como Frei Lourenço, Benvólio e Mercúcio, no caso de Romeu, ou D. Beatriz no caso de D. Pedro; e opositores dos heróis, como a família Montecchio no caso de Romeu e D. Afonso IV e os três carrascos; no caso de D. Pedro.

Outra personagem da literatura clássica muito próxima das crianças é Dom Quixote, reivindicando o bem, o amor e a justiça pretende recuperar a ordem de valores baseada na superioridade intrínseca do bem sobre o mal, do amor sobre o ódio e da justiça sobre a injustiça. Todo ele se encontra distante da realidade quando transporta para a sua vida os elementos maravilhosos dos livros de cavalaria ou quando vive peripécias insólitas e cómicas (Duarte, 2001, p.494). A obra está repleta de elementos maravilhosos e dom Quixote tem uma visão do mundo construída sobre esses livros, à qual se mantém mais fiel que à própria realidade. As crianças aceitam esse mundo de evasão de que se socorre Dom Quixote, gozando em simultâneo com a desmontagem do

maravilhoso na obra e particularmente com o seu tratamento cómico, se entendermos por cómico o que provoca riso, o que conduz a uma leitura divertida da realidade.

A presença do elemento cómico, conquista recente para os pequenos leitores, contribui para o enraizamento de Dom Quixote junto dos leitores jovens. O exagero dos traços heróicos de Dom Quixote e o exagero dos traços picarescos de Sancho Pança e o confronto desses mesmos traços fazem sobressair as fraquezas de ambos, provocando o riso. Por outro lado, está ainda o contraste que se estabelece entre o real e o imaginado e o contraste entre a matéria dos livros de cavalaria e o seu tratamento paródico no texto, bem como o contraste físico das personagens, esses contrastes tocam por vezes o absurdo e as crianças gostam.

— Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória. — E de que me serve?

— Nossos nomes ressoarão nos sinos de bronze da História. — E de que me serve?

— Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo será tão grande. — E de que me serve?

— As mais inacessíveis princesas se curvarão à nossa passagem. — E de que me serve?

— Pelo teu valor e pelo teu fervor terás uma ilha de ouro e esmeralda. — Isto me serve.6

Também a aventura faz parte da tradição literária infantil. A aventura corresponde à realização de um qualquer tipo de prova ou a superação de uma determinada dificuldade que propiciará a marca de excepcionalidade do herói. Dom Quixote desmistifica através das situações cómicas e caricatas essa visão idealizada do herói e das suas aventuras e por isso também diverte e aproxima.

Capítulo 3