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5. JONGO: MEMÓRIA, CULTURA E HISTÓRIA LOCAL

5.3 AS NARRATIVAS HISTÓRICAS: MEMÓRIAS, LEMBRANÇAS E

5.3.1 As histórias de D.Edézia

“Vou, se sair eu vou, eu fiz noventa anos dia oito de abril, mas eu vou. Gosto até hoje, eu gosto do Jongo”essa descrição que abre nossos relatos sobre as histórias de D. Edéziaque descreve em palavras o sentimento que percebemos em toda a nossa conversa: a saudade dos tempos de outrora e o amor pela tradição recebida de seus antepassados.

Em entrevista realizada na varanda de sua casa, percebemos que a sua memória atinge os tempos de infância e através dela alcançamos lembranças de um tempo distante, que só pode ser alcançado pela memória dos velhos jongueiros. Ao longo de seus 90 anos, D. Edézia relata que se recorda de sempre manter certa proximidade com a prática do Jongo: “eu quando esse Jongo começou eu acho que eu, eu já tenho 90 anos... lá naquele tempo que o Jongo começou eu acho que eu tinha uns 10 anos, ou 8 ou 10 anos, esse Jongo é velho pra caramba” (informação verbal).

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Dona Edézia, os relatos apresentados ao longo desse subcapitulo foram possibilitados por entrevista gravada em sua residência no dia 08/09/2016.

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Dona Dilzete Nascimento, também conhecida como Nêga é a mestre responsável pelo Jongo de São Benedito do Município de São Mateus – ES. Os relatos apresentados ao longo desse subcapitulo foram possibilitados por entrevista gravada em sua residência no dia 08/09/2016.

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Josiléia dos Santos é jongueira do grupo de Jongo de Santo Antônio, da comunid ade São Cristóvão, localizada na zona rural de São Mateus . Os relatos apresentados ao longo desse subcapitulo foram possibilitados por entrevista gravada no CEUNES, dia 09/06/2016.

Com D. Edézia, optamos por uma forma diferente de conduzir nossa entrevista, não lhe impomos um questionário, nem estipulamos um roteiro, apenas sugerimos que ela nos contasse algumas histórias, em uma espécie de diálogo, buscando em suas memórias as lembranças mais antigas que tinha sobre o Jongo. Dessa forma, criamos um ambiente que permitiu que as lembranças pudessem aflorar sem se impor uma ordem rígida, pois, percebemos que quando questionada sobre algo, sua memória parecia falhar deixando-a um pouco constrangida, por não conseguir nos dar respostas imediatas.

Buscando estabelecer um ambiente mais prazeroso nos aproximamos das memórias de uma forma o mais espontânea possível, assim, sugerimos que ela apenas nos falasse sobre o Jongo, que relatasse os fatos que se recordava. Pusemo-nos a ouvir D. Edézia fazendo algumas considerações apenas para estabelecer uma interação, no entanto, durante a maior parte do tempo, apenas ouvimos o que ela dizia, como uma criança que ouve uma história.

Por mais que tenhamos investigado a prática do Jongo através dos diferentes estudos acadêmicos disponíveis, esse momento forneceu-nos informações que vão para além desses conhecimentos. Nesse movimento de retorno ao passado, foi possível atingir através da memória de D. Edézia “um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente” (BOSI, 1994, p.82).

Partindo da reflexão de Bosi (1994, p.82), nos questionamos: “hoje, fala-se tanto em criatividade... mas, onde estão as brincadeiras, os jogos, os cantos e danças de outrora? Nas lembranças de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua riqueza”. E foi justamente tomando a prática como um momento de brincar, nos tempos de menina, que o Jongo se fez presente na lembrança de D. Edézia: “Aí nós ficava brincano pra lá, e dança pra cá, aí nós enfiava outra vez, ela ficava de lá olhando, e quando ela chegava perto de nós e falava, sai, sai isso aqui né dança de criança não, a gente se via com ela (risos)” (informação verbal).

Sobre não permitirem que crianças participassem das “brincadeiras” D. Edézia conta que naquela época, as crianças não podiam participar das rodas de Jongo e que sua inserção na prática só foi acontecer por volta dos seus vinte anos de idade:

Eu acho que eu tinha uns 20 anos quando eu comecei a dançar o jongo. Porque no começo quando eu era criança as mulher do jongo não deixava. Aquelas mulher veia

não deixava as novas, as criança dançar. Aí depois que eu cresci mesmo, fiquei mais ou menos que eu comecei a brincar. Que meu irmão falou, o jongo é pra todo mundo, não tem veio nem novo, e pra quem quiser brincar, aí pronto (informação verbal).

Sobre os tempos mais antigos, D. Edézia revela que o Jongo fazia-se muito mais presente na rotina dessa cidade. O Jongo de São Benedito recebia muitos convites para visitar as residências: “Chamava o pessoal, gostavam de chamar o Jongo pra ir na casa deles, a gente ia, chegava lá dançava, dançava o Jongo, dançava o maná, dançava o batuquinho, às vezes que ia cedo e quando vinha de lá era de noite, da casa do povo que chamava” (informação verbal). Essa rotina de saídas do Jongo de São Benedito é apontada também em outros de seus relatos: “aqui em São Mateus mesmo, o pessoal da Ponte adorava o Jongo. Aí chamava lá ia a gente pra Ponte, brincava o dia inteirinho também” (informação verbal). Além das casas que visitavam o Jongo também costumava se apresentar nas igrejas “é porque o Jongo, o Jongo nosso tem um nome, é o Jongo de São Benedito, aí brinca na igreja, o lugar que tinha igreja o Jongo brincava na igreja depois brincava na casa, era bacana”(informação verbal). Sobre as igrejas, no entanto, um fato curioso nos chamou a atenção. Houve um tempo em que as apresentações só podiam ser feitas do lado de fora, pois não era permitida a entrada do Jongo nas igrejas:

No começo, quando formou esse jongo, num sabe?o jongo saía muito, aí o jongo ia na igreja, geralmente, mas num entrava na igreja porque o povo da igreja não deixava entrar, achava que o jongo, num sei o que eles achava que o jongo era que eles num deixava entrar não (informação verbal).

D.Edézia atribui a João Nardoto e ElieserNardoto a luta e conquista para que o grupo de Jongo pudesse ir para dentro da igreja:

[...] aí, seu João Nardoto e Elieser botou o Jongo dentro da igreja. O Jongo é de São Benedito ele tem que brincar dentro da igreja, aí botou, aí que começou a dançar dentro da igreja. Aí o jongo ia pra igreja, acompanhava as missas, o jongo né, procissão, a procissão saía e o jongo saía batendo, cantando os canto e o jongo batendo, era bacana de primeiro, agora até que o Jongo parou, parou muito depois que o Mateus morreu, o jongo parou demais (informação verbal).

A alegria de D. Edézia ao falar-nos sobre o jongo ficou evidente em seus relatos, mesmo pelo cansaço que lhe pesa pela idade, ela finaliza nossa conversa reforçando sua energia para seguir em frente e amor pela prática: “vou, se sair eu vou, eu fiz noventa anos dia 08 de abril, mas eu vou. Gosto até hoje, eu gosto do Jongo”(informação verbal). E por fim nos conta saudosa dos tempos em que o Jongo saía com maior frequência pelas ruas da cidade:

quando eu era nova, bem nova, o jongo saía muito, o pes soal convidava, a gente ia em Conceição da Barra, naquele tempo convidava, a gente ia no... ai meu Deus como é que é o nome, tinha outro lugar que a gente ia, eles adoravam demais o jongo, a gente ia no Campo Grande, a gente ia (informação verbal).

Com um olhar perdido no horizonte enquanto nos narrava suas histórias dos tempos de menina, D. Edézia deixou transparecer o sentimento de saudade daquele tempo em que o Jongo de São Benedito vivia pelas ruas das cidades, visitando casas, praças e igrejas. Esse sentimento compartilhado e percebido nas suas palavras, olhares e gestos, criou uma atmosfera tão intensa que, mesmo nós que nunca vivenciamos tais momentos, conseguimos sentir um pouco do que era o Jongo há tempos atrás; ao mesmo tempo, sentimos uma forte emoção por saber que, a história do nosso município, no que diz respeito ao incentivo à manutenção das práticas culturais locais, era improvável que possuíssemos futuramente algo que viesse a se aproximar do sentimento que sentira D. Edézia.