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5. JONGO: MEMÓRIA, CULTURA E HISTÓRIA LOCAL

5.4 O JONGO COMO PRÁTICA CORPORAL

Nesse momento da pesquisa apresentaremos algumas considerações sobre as formas pelas quais o corpo se articula na dinâmica da prática do Jongo. Partimos do entendimento que tanto o corpo social quanto o corpo biológicoencontram-se equiparados, por compreendemos

que no processo de ensino de práticas culturais, ambas as concepções encontram-se indissociáveis. A esse respeito Maroun (2013, p. 141) acrescenta “que é no uso social que se faz do corpo biológico, que podem ser observados elementos culturais, identitários e/ou étnicos de determinada comunidade, tribo ou grupo”.

Buscando uma melhor compreensão desta ideia de corpo, para qual voltamos nossas discussões, são válidas as proposições de Daólio (1995) representando a ideia de corpo expressada numa íntima relação com a cultura que o rodeia:

corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade que faz parte. O homem através do seu corpo, vai assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o individuo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões(DAÓLIO, 1995, p. 25).

Daólio (1995, p. 26) pondera que ao se refletir sobre o corpo, podemos pensá-lo apenas como biológico, uma vez que “[...] homens de nacionalidades diferentes apresentam semelhanças físicas”, mas que essa visão é errônea, pois cada sociedade impregna significados nos corpos. Em suma, o corpo para o autor é fruto da interação que existe entre o biológico e o social, e salienta que “o que define corpo é o seu significado, o fato dele ser produto da cultura, ser construído diferentemente por cada sociedade, e não as suas semelhanças biológicas universais”(DAÓLIO, 1995, p.26).

Dessa forma, o autor ainda acrescenta que tudo que engloba nossa gestualidade, nossos hábitos, gostos, hábitos, são influenciados pela cultura. No entanto “numa multidão, pode-se notar certos comportamentos corporais comuns, que caracterizam e padronizam um determinado povo” (DAÓLIO, 1995, p. 25). Em concordância com esse pensamento Maroun (2013, p.141) acrescenta que o “corpo, na sua relação com os elementos do cotidiano e inserido em sociedade, expressa costumes, em certa medida, específicos do grupo ao qual pertence, mostrando-nos, pelas suas expressões corporais, que cada uma delas possui hábitos que lhes são particulares”.

Dentro dessa perspectiva, buscando a compreensão do Jongo em articulação com as ideias propostas anteriormente de corpo/cultura, podemos afirmar que essa prática se traduz como uma manifestação cultural expressada pela tradição de um determinado povo, por esse motivo

possui um conjunto de movimentos corporais que lhes são próprios e carregados de significados e simbologias.

A Educação Física, nos moldes e perspectivas atuais, tem buscado a partir de suas práticas de ensino a valorização dessa interação corpo/cultura. Nesse sentido, devemos atribuir à essa ideia de corpo o entendimento que alguns movimentos e coreografias, poderão exigir do aluno certas destrezas corporais que podem e devem ser trabalhadas no âmbito da Educação Física escolar. Não estamos afirmando que o foco desse ensino deva ser a apreensão de domínios motores sistematizados, mas o seu aperfeiçoamento ao longo das vivências dessas práticas corporais, considerando os limites corporais que são manifestados de diferentes formas em cada sujeito.

Buscamos, no entanto, superar o entendimento que se fez presente por muitos anos na Educação Física escolar, de que exista um aluno melhor que outro pelo simples fato de ter chegado o mais próximo de determinada técnica que se apresente como correta a quem ensina, pois ao considerar esse pensamento desmerecemos a ideia de que todo movimento é cultural (DAÓLIO, 1995).

Dessa forma, entendemos o Jongo como uma dança, pois é marcado por movimentos ritmados e coreografados que exige dos praticantes certas destrezas corporais que podem ser aperfeiçoadas com a prática. Por esse motivo, abordamos o corpo inserido no mundo social e cultural do Jongo, mas, pensado também como uma possibilidade para o desenvolvimento de habilidades físicas e motoras essenciais tanto para questões relacionadas à performance, quanto ao desenvolvimento de habilidades básicas relacionadas às funções do cotidiano de qualquer indivíduo.

Pensar o ensino do Jongo pelo viés da dança pode parecer uma tarefa fácil se considerarmos que ela já é conteúdo da Educação Física escolar, aceita e difundida nas escolas em todo país. No entanto, essa empreitada ganha contornos mais complexos quando a tomamos para além do movimento corporal, acrescentando ao ensino os elementos que a caracterizam com manifestação cultural de um determinado povo, contexto histórico e localidade. Além disso, não se trata daquelas danças comumente disseminadas nas propostas curriculares da disciplina, mas de um novo conceito que, por ser repleto de simbologias, pode gerar inúmeras rejeições. Corroborando com esse pensamento,Maroun (2013) aponta para as especificidades da dança, apresentando-a como:

um elemento sempre coletivo - e nunca individual - e, portanto, assume função social específica de acordo com o contexto cultural no qual se insere; os processos de transmissão e apreensão da dança, ocorridos respectivamente das gerações mais velhas para as gerações mais novas, concretizam-se por meio da inserção propriamente dita destas últimas em sua prática [...] (MAROUN, 2013, p. 151).

Independente das formas em que se realize o ensino de uma prática cultural, considerando tanto suas técnicas e movimentos quanto sua simbologia, sempre haverá uma reelaboração desse conhecimento pelas crianças, conforme descreve Maroun (2013, p. 153)“elas não apenas reproduzirão as técnicas corporais lhes transmitidas, mas também irão recriá-las, a partir de suas experiências, fazendo do corpo um lugar de produção e base existencial para a cultura”. Dessa forma, a cultura é sempre recriada a cada apreensão, por cada sujeito em particular tendo em vista as diferentes experiências acumuladas no decorrer da vida de cada um.

Em pesquisa desenvolvida especificamente sobre o Jongo, Maroun (2013) estabelecendo contato e analisando diferentes apresentações dessa prática, percebeu que a prática possui

performances13que lhe são próprias, das quais destacam :os movimentos corporais, a

musicalidade, o ritmo das canções e a função social da dança (MAROUN, 2013).

Sobre os movimentos corporais a autora aponta que é por meio de sua análise que poderemos perceber que existem nos diferentes grupos, diferentes técnicas corporais sendo adotadas, determinando um modo de dançar específico em cada grupo. Sobre a musicalidade, afirma que, apesar da semelhança entre os cantos, considerando diferentes grupos, esses serão sempre diferenciados, pelo fato de muitas dessas canções terem sido criadas em contextos individuais e únicos, locais específicos e particulares em cada grupo, assim podem ser compreendidos apenas por aqueles que são parte do grupo. O ritmo também é diferente entre os grupos e é ele quem dita a maneira pela qual deverá ser conduzida a dança e o canto. A

função social da dança também pode variar, de acordo com a especificidade de cada grupo,

no entanto temos percebido cada vez mais que essa função está cada vez mais relacionada aos processos de construção e afirmação de identidades (MAROUN, 2013).

Sobre esses elementos expostos por Maroun (2013) para tratar especificamente da dança, podemos acrescentar que na aula de Educação Física eles se encontram também presentes e

13

De acordo comSchechner (2011, p. 2) apud Maroun (2013, p. 158) “performances marcam identidades, dobram o tempo, remodulam e adornam o corpo, e contam estórias. Performances - de arte, rituais, ou da vida cotidiana - são „comportamentos restaurados‟, „comportamentos duas vezes experenciados‟, ações realizadas para as quais as pessoas treinam e ensaiam”.

necessários para o desenvolvimento de outras habilidades e outros conteúdos. Além disso, o desenvolvimento dessas performances ou habilidades irá garantir, para além da aprendizagem de um movimento específico, o auxílio ao desenvolvimento de habilidades e destrezas necessárias para que possamos desenvolver com maior facilidade atividades básicas do nosso dia a dia.

Por fim, acrescentamos acerca do Jongo, por se tratar de “uma dança coletiva, expressa uma corporalidade sobre o meio na qual está inserida, o que pode ser observado por meio da

performance, que ocupa um lugar central na reprodução da tradição” (MAROUN, 2013, 167).

Essa afirmação e as demais discussões até aqui apresentadas nos deram alguns subsídios para pensarmos o Jongo como uma prática cultural e corporal, o que em contrapartida permitiu uma melhor assimilação dessa prática enquanto objeto de estudo e ensino na Educação Física escolar.

No próximo capítulo trataremos das diferentes formas de apreensão e ressignificação possibilitadas pelo desenvolvimento de uma proposta de intervenção, que teve por base o ensino da prática do Jongo na aula de Educação Física, desenvolvido em uma escola da rede municipal de São Mateus.

6 APROPRIAÇÕES E RESSIGNIFICAÇÕES DO JONGO NO ENSINO