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4 BALSEIRO E SUAS REPRESENTAÇÕES: A FORMAÇÃO SOCIAL

4.2 O balseiro visto pelos familiares dos balseiros

4.2.2 As impressões da profissão pelos familiares

Para o balseiro realizar a atividade com a balsa, a sua vida ao entorno deveria estar em ordem. Por essa razão, familiares, cônjuges e filhos também fizeram parte desse processo, pois indiretamente, auxiliavam na preparação da viagem e no cuidado com o patrimônio financeiro e familiar durante o período que o balseiro estava fora. Os familiares esperavam o retorno com ansiedade, porém, formulavam opiniões e considerações sobre a atividade madeireira, o trabalho na construção e condução da balsa, além dos perigos e obstáculos que o seu familiar poderia enfrentar durante o trajeto.

Algumas vezes, a família influenciou na decisão do ingresso e permanência na profissão. Alguns balseiros explicam como a notícia do desejo de ser balseiro era recebida pelos seus familiares. O ex-balseiro Dante Marssona destaca que iniciou a profissão com reluta de seu pai, mas depois ressalta que viajou “com dezessete anos e, [...] a última viagem foi em setenta, no ano de setenta” (MARSSONA, D., Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 4):

Com dezessete anos, meu pai não queria me deixar ir: ‘não, você não vai!’ E nós sempre obedecemos ao velho, o que o velho dizia, nós fazíamos. Daí ele disse: ‘vai então’. E eu deixei a minha roupinha arrumada. Daí tinha o Arlindo Bortoli [prático] e eu disse: ‘quanto é que você quer? Me leve, me leve e traga de volta, se não presta

[não vou mais] Só não me deixe lá que está bem? Me traga de volta. E eu ganhei

mais que os outros, eu vou te contar, não é gavolice a minha (MARSSONA, D., Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 2)

Já o ex-balseiro Abílio Xirello só teve oportunidade de viajar duas vezes e somente até o Goio-En, seus familiares consideravam a profissão perigosa e o fato de preparar a comida em cima da balsa já se tornava ocioso, “eu fui para descer junto, a mãe não me deixou, não quis que eu fosse, [pois era] muito sofrido, perigoso. Daí eu digo ‘mas eu vou junto até lá na

ponte de Chapecó’. Desci até em Goio-En, desembarquei, peguei o ônibus e vim para casa” (XIRELLO, Quilombo, SC, 06 de agosto 2018, p. 1). Em contrapartida, para alguns, ser um balseiro era uma tradição, a manutenção de uma identidade familiar, como o caso do ex- balseiro Schneider “eu não tinha dezesseis anos a primeira viagem [...] o meu pai era prático e daí eu tinha o meu tio mais novo, irmão do meu pai que era peão dele” (SCHNEIDER, Guatambu, SC, 05 de outubro 2013, p. 1). A família se envolvia com a atividade.

Contudo, para alguns familiares, havia uma conformação na escolha profissional. Ledi Marssona lembra que se casou com Dante quando o mesmo já era balseiro, segundo ela, “sabia que ele viajava, mas pra gente não acontecia nada, todo mundo contava que iam bem nas viagens. A gente ficava na expectativa que ia voltar, que ia dar tudo certo” (MARSSONA, D., Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 1). A preocupação até existia, mas Ledi tinha ciência que as viagens eram relevantes aos balseiros, a própria família se beneficiaria com a atividade devido ao retorno financeiro.

Diferentemente de outros balseiros que realizavam viagens somente no inverno e /ou auxiliavam na montagem de balsa durante algumas épocas do ano, para Valdemar Schwartz, essa atividade era a principal renda familiar, todos os investimentos giravam entorno da madeira, conforme Maria Schwartz “era toda enchente que dava o pai dele tinha balsa porque pegava madeira das serrarias” (SCHWARTZ, 2014, p. 3). Por isso, para Maria considerar a profissão perigosa ou não, aferia nas questões financeiras da família.

Contudo, Maria Schwartz destaca não gostar de recordar do tempo que seu esposo trabalhou com as balsas “mais eu, daquela época das balsas lá, nós não tínhamos saudades [...] quando começava a chover, a mulherada toda triste ‘os homens vão tudo descer’, tudo tinha que ter cuidado, ficava ansiada. Então ficavam todas aborrecidas, ninguém ficava alegre” (SCHWARTZ, Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 5). Ela também ressalta que no início, até o regresso da viagem era penoso, “no começo eles sofriam muito, diz que atolavam os caminhões. Eles se sujavam de barro, tinha que empurrar os caminhões. Depois melhorou, as estradas já foram ficando boas” (SCHWARTZ, Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 4). Outro motivo de Maria Schwartz considerar o trabalho perigoso devia-se as memórias que seu esposo contava. Segundo ela, Valdemar Schwartz confessou um dos seus momentos mais tensos, enquanto balseiro:

[...] uma vez, o pai dele mandou ele pega a espia e ata a balsa longe numa árvore, porque a água era muito ligeira, mas eles marcavam a árvore e tinha que ir lá com o caíco. E ele foi lá e arrebentou a espia, e ele ficou lá na copa da árvore e a balsa se foi. E aquilo ele sempre contava, que diz que ali ele passou medo, ele ficou lá sozinho e o pai dele com a balsa desceram. Depois passado tempo o pai dele

conseguiu ata a balsa, mas bem longe para baixo. Daí mandou um caíco, um peão rio a cima para ver se estava vivo lá, se estava lá naquela árvore. E ele estava lá, ele sempre contava isso, daí eu passei medo. Foi a única vez que diz que ele passou muito medo, porque ficou lá na copa duma árvore esperando ajuda, a enchente era muito grande e a água descia aquilo ligeiro. (SCHWARTZ, M., Guatambu-SC, 26 de junho 2014, p. 3).

Além das considerações das esposas, os filhos também recordam de situações que seus pais contavam quando retornavam de viagem, Oscar Santuches, filho e neto de balseiro, considerava a profissão “um serviço perigoso [...] conforme a balsa descia, e enterrava na água, eles tinham que correr tudo para trás. Dalí um pouco ela levantava a frente, afundava atrás, corriam tudo para frente” (SANTUCHES, O., Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 2). Dolores, também afirma que o trabalho era perigoso, ela recorda de um acidente com um colega de viagem de seu pai:

O pai diz que morreu um, aquele tal de, não sei o nome bem certo, Nego Egídio. E daí ele caiu também, saí assim uma torra, diz que ele foi não sei se foram três (3) quilômetros, seis (6) quilômetros que ele viajou, agarrado na tora. Diz que tinha horas que ele subia, que a tora arrodeava, daí ele sumia. Dalí a pouquinho o dono lá, o chefe diz: ‘A sorte que meu Nego não morreu’, e diz que ele estava agarrado na madeira, assim sabe, porque eles colocavam um tarugo. De certo que ele pegou naquela madeira que se dizia Tarugo, eles furam e colocam na madeira, que fica firme. Diz que ele se agarrou ali [...] O pai estava junto, só que o pai ficou mais de lado na balsa. (SANTUCHES, D. Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 2).

Havia um receio mediante os perigos do trabalho e que os balseiros não retornassem para casa, conforme Maria Schwartz “o coração ficava acelerado, rezando todo o dia, que não morrerem na água. Porque se caísse de lá no rio, não tinha. Ele sabia nadar porque se criou dentro d'água, atando madeira, mas assim mesmo, é perigoso. Mas nunca aconteceu dele cair” (SCHWARTZ, Guatambu, SC, 26 de junho 2014, p. 2). O ex-balseiro José Zulszeski também recorda que sua mãe já estava habituada com a rotina da balsa, contudo, não deixava de se preocupar com o filho e o esposo durante as viagens “a mãe rezava, para assim que amanhecer estar de volta. Rezava. Era eu o único irmão e o falecido pai ia junto [...] o falecido pai tinha trinta e seis (36) anos. E [a mãe] já era acostumada” (ZULSZESKI, Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 3).

Tanto os familiares quanto os balseiros, nos momentos de aflição da espera do retorno ou em situações de perigo, recorriam a orações. Por esse motivo, a religiosidade foi mais um dos elementos que auxiliaram na formação e representação dos balseiros. O ex-balseiro Schneider recorda de situações adversas quando passavam pelo conhecido Salto Yucumã, “ali pelo perigo que existia olha, dá para dizer que não morreu ninguém. Nós temos uma devoção

dos navegantes, ela é muito. Ela protege, ela é muito protetora e os balseiros sempre saiam rezando para ela, para ela proteger” (SCHNEIDER, Guatambu, SC, 25 de julho 2014, p. 2).

Em algumas comunidades registram-se procissões realizadas próximo ao rio Uruguai. De acordo com Neusa e Zelinda, em Porto Chalana (Guatambu-SC) “elegeram Nossa Senhora dos Navegantes como padroeira do povoado. Tornou-se assim uma tradição a realização de festas e procissões pelo rio em sua homenagem” (CORÁ; OLIVEIRA, 2010, p. 46).

Enquanto para alguns a viagem era sinônimo de perigo, angustia e espera, para outros a viagem até o comércio argentino era comemorada “nós ficava contente quando o pai chegava e trazia [coisas], nós não conhecia as coisas, aquele tempo não tinha doce, nada. Ele comprava os doces lá na Argentina e trazia. Trazia roupa sabe, para a mãe fazer, costurar” (SANTUCHES, D., Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 3). De acordo com Dolores, “nós éramos a alegria do pai, chegar em casa e ver o pai. Vinte (20) dias sem pai em casa, a mãe sempre dizia, ela rezava para Deus, ‘tomara que voltem’.” (SANTUCHES, D., Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 4). Neris, filha de madeireiro, também ressalta que o retorno da viagem do seu pai era festejado, “o pai trazia fardo de roupa para toda a família. É, só [que] eu não via o pai” (NERIS, Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 1), enfatizando que, mesmos os vestidos e presentes que seu pai trazia para ela e seus irmãos, só fazia o seu retorno ser mais aguardado pela falta da figura paterna.

Para Dolores mais importante era o regresso do seu pai, ouvir as histórias das viagens e relembrar os momentos bons. E se tratando de memórias, Dolores ressalta ainda, que muitas vezes ela e seu marido Oscar, também filho e neto de balseiro, relembram histórias passadas, “que nem eu e ele, as vezes estamos lá quietos, conversando daí ele conta a parte dele, eu conto minha parte, dos meus nonos, dos meus pais, ele conta dele. E daí, nossa, quanta história das balsas” (SANTUCHES, O., Itá, SC, 29 de setembro 2018, p. 4). Por essa razão, a manutenção da memória e as recriações da imagem do balseiro perpetuam de geração para geração através da história oral.