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4. C APACIDADES POLÍTICAS PARA O D ESENVOLVIMENTO

4.2 Operacionalizando as capacidades políticas via interfaces sócio-estatais

4.2.2 As interfaces sócio-estatais: conceito e análise

A partir da observação das mudanças ocorridas na relação entre Estado e sociedade nas últimas décadas, é possível dizer que o primeiro pode adotar uma miríade de formatos institucionais passíveis de concretizar a interlocução com a sociedade, seja no âmbito da articulação coletiva, levando em consideração, nesse sentido, uma diversidade de atores, desde os grupos de interesse, até os grupos minoritários, por exemplo, seja no âmbito da negociação e interlocução individual, como no caso da disponibilização de canais específicos

de reclamações, sugestões, entre outros, como é o caso das ouvidorias. Acresce que essa miríade de formatos institucionais carrega em si variações na capacidade de tornar o Estado mais ou menos permeável às demandas e, principalmente, em assumir co-responsabilização no planejamento público, o que quer dizer que, em última instância, podem existir canais com baixo poder decisório, isto é, com baixo poder de enforcement, mas com significativo poder informacional, isto é, revestidos de significativo caráter consultivo e vice-versa.

Com base nessa constatação, este trabalho chama a atenção para a adoção do conceito de interface sócio-estatal, suplementando o usualmente adotado conceito de

participação social, como embasamento teórico-analítico com maiores alcance e poder

explicativo e de compreensão não apenas do papel, mas, principalmente, das influências e impactos dos tipos de canais instituídos e concretizados pelo governo em relação tanto à sociedade quanto à própria estrutura da administração pública. A perspectiva de interface

sócio-estatal consiste no reconhecimento de um espaço político, isto é, num espaço de

negociação e conflito. Long (1999; 2004) utiliza o conceito a partir de uma perspectiva social, tentando compreender os limites, possibilidade e impactos advindos de ações de intervenção em política pública. Alguns questionamentos do autor são: nas ações de intervenção, é possí el dize da e ist ia de o se so e t e os t i os espe ializados e dete i ada temática e os indivíduos que efetivamente vivenciam os problemas a serem tratados ?

Muito mais do que categorizar a relevância dessa relação, isto é, se ela realmente se concretiza, o autor está interessado em como se perfaz o processo relacional de esta ele i e to de o se so e t e pe spe ti as e/ou is es de u do ge al e te t o diferentes e distantes entre si. O conceito de interface social se revela instrumento para exploração e compreensão dos aspectos de diversidade e conflito que emergem em relações de intervenção. Em geral, uma interface se formaria nos momentos em que diferentes e, às ezes, o flita tes, is es de u do se e o trassem. Em outras palavras, em arenas nas quais as interações sociais se direcionassem na perspectiva de construção de mútuos e múltiplos consensos. A análise de interface social busca elucidar os tipos e as fontes dos conflitos e dos consensos sociais, identificando os sentidos de sua reprodução e transformação. A exploração dessas dimensões oferece uma perspectiva mais adequada dos processos de transformação política, permitindo melhor compreensão das diferentes respostas/reações dos diferentes grupos (tanto aqueles focalizados, quanto aqueles não originalmente focalizados) a intervenções planejadas.

A análise de interface foca as relações empreendidas entre os indivíduos e as formas pelas quais suas perspectivas e interesses mudam ao longo da interação. O foco não recai, portanto, simplesmente no interesse já formado e defendido pelos agentes. Não se deve pressupor a existência de melhor qualificação entre as diversas perspectivas levadas a cabo. É preciso tomar empiricamente as interações de forma a efetivamente estabelecer os vínculos entre perspectivas e adequabilidade. Nesse sentido, situações de interface, isto é, dada a formação de interfaces, é possível dizer que os indivíduos são providos de meios para definir e redefinir suas respectivas posições culturais e ideológicas.

A i te fa e app oa h the depi ts k o ledge as a isi g f o a e ou te of ho izo s . The incorporation of new information and new discursive or cultural frames can only take place on the basis of already existing knowledge frames and evaluative modes, which are themselves re-shaped through the communicative process. Hence knowledge emerges as a product of interaction, dialogue, reflexivity, and contests of meaning, and involves aspects of control, authority and power.;(p.34)

O conceito permite perceber como discursos dominantes são estruturados, transformados ou, ainda, desafiados. Estes discursos têm por característica principal pressupor importância relativa naturalmente associada a determinado grupo ou padrão social, como, por exemplo, determinadas comunidades, raças ou classes. O objetivo de sua estruturação consiste, geralmente, na promoção de visões políticas, sociais, morais e mesmo culturais que são, na verdade, particulares, consenso entre apenas parte de determinada população. Ao passo que determinados agentes utilizam sua capacidade de formular discursos sobre pontos de vista particulares, outros utilizam esta capacidade para formular formas alternativas de compreensão do contexto e dos paradigmas articulados pelos agentes dominantes.

Hevia e Isunza (2010) trabalham o conceito de interface sob a ótica proposta por Roberts (2001), combinando-o com o conceito de Estado, forjando, assim, a perspectiva de interface sócio-estatal. A interface consiste, segundo os autores, num espaço político, isto é, num espaço de negociação e conflito, estabelecido intencionalmente entre atores, cujos resultados podem gerar tanto implicações coletivas, quanto implicações estritamente individuais (Hevia e Isunza, 2010). Se considerarmos estes atores como sendo, por um lado, o Estado e, por outro, a sociedade, podemos pensar em arenas políticas cujas dinâmicas se delineiam por temáticas específicas e pelas preferências, narrativas e interesses de cada agente.

Os autores estabelecem seis características fundamentais do conceito de interface sócio-estatal (Isunza; Hevia, 2010:p.31):

1. É um espaço social constituído pelas interações de sujeitos dotados de preferências e interesses diversos

Estas interfaces se materializam em um campo concreto no qual se dá a disputa por um tipo específico de bem. Consequentemente, a interface é:

a) Um espaço de conflito;

b) Um espaço no qual se configuram relações assimétricas entre sujeitos

sociais.

2. É um dos possíveis espaços de negociação e interação entre atores sociais e atores governamentais;

3. Os atores constituintes da interface podem ser individuais (a, a´, b...) ou coletivos (A, A´, B...);

4. Os sujeitos, seja por sua localização no espaço social, seja por sua historicidade, portam projetos sociopolíticos específicos;

5. Os atores estabelecem interações, trocando bens, conhecimento, etc.;

6. Face o fato de que as interações quase sempre têm caráter assimétrico, a escala se revele variável fundamental para análise, especialmente da relação Estado- sociedade.

É importante analisar algumas das características listadas. Em primeiro lugar, vale frisar que a interface sócio-estatal configura-se como um espaço de negociação e conflito que pode ser estabelecido tanto por atores coletivos, mas, também, por atores individuais. Essa é uma perspectiva importante, porque considera a atuação de indivíduos e não apenas grupos como interlocutores potenciais na relação Estado-sociedade. Além dessa característica, vale frisar ainda outra: os projetos políticos dos agentes. Quando falamos em projetos políticos, falamos em estratégias, normas e valores que estruturam e guiam a ação dos agentes (Long, 1999). Nessa linha, não é difícil pensar tanto, por um lado, em atores que tendem a demandar e defender causas com efeitos de escala mais coletivizados, como no caso de um cidadão ou grupo de cidadãos demandando melhorias em serviços de saúde e/ou bens públicos/serviços no geral; mas é possível também pensar, por outro lado, num cidadão ou um grupo de cidadãos que demanda e defende causas de efeitos eminentemente restritos, como no caso dos grupos e agentes de lobby, da negociação estatal com grupos de interesse comerciais, industriais, sociais, dentre outros.

Existe ainda uma última característica do conceito de interface sócio-estatal que vale a pena ser ressaltada. Se levarmos em consideração o conceito como substrato analítico, é

possível cercear a perspectiva de contato entre Estado e sociedade para além de um espaço de negociação cujo fim se resuma a - ou, em outras palavras, cujo objetivo constituinte demande e exija - uma tomada final de decisão. Na verdade, a estruturação de interfaces sócio-estatais pode estar ligada a determinados objetivos e/ou atribuições que podem variar desde a simples consulta, até a co-responsabilização, ou co-gestão de políticas. De acordo com Hevia e Isunza (2010), no primeiro caso, temos a constituição de interfaces cognitivas, que reclamam um caráter mais comunicacional em relação ao Estado. Podem se subdividir em:

TIPO1: Interface de contribuição, na qual a sociedade informa ao Estado acerca

de sugestões e/ou demandas;

TIPO 2: interface de transparência, na qual o Estado informa à sociedade suas

perspectivas e ações;

TIPO 3: interface comunicativa, na qual ambos os atores se informam

mutuamente.

Seguindo o espectro do conceito, temos a constituição de interfaces políticas, ligadas muito mais a uma perspectiva de gestão e enforcement de políticas. Sua subdivisão se dá em:

TIPO 4: interface mandatória, na qual a sociedade é a dirigente do Estado;

TIPO 5: interface transferência, na qual o Estado tem poder de controle sobre

a sociedade.

TIPO 6: interface de cogestão, na qual os processos decisórios são

compartilhados entre ambos os atores.

O que é possível perceber é que, na verdade, existe uma miríade de objetivos que sustentam a estrutura das interfaces sócio-estatais e que não necessariamente estes objetivos exigem tomadas finais de decisão. A Figura 3 provê uma visão esquematizada da perspectiva interacional Estado-sociedade presumida pela ótica das interfaces sócio-estatais. O esquema provê uma visão interessante da perspectiva em pauta. Primeiramente, no espectro da sociedade civil, vemos a presença de atores tanto coletivos, quanto individuais. Estes atores, através da conformação de interfaces sócio-estatais, estabelecem relações com o Estado, tendo por base o contato tanto com agentes governamentais eleitos, quanto com agentes governamentais não eleitos.

Além dessa miríade de atores, outra característica sobressai no esquema: o fato de que cada tipo de agente possui tipos característicos específicos de demandas. Agentes coletivos ou individuais, tanto da sociedade, quanto do Estado, podem ser portadores de projetos políticos com interesses coletivos, como, por exemplo, no caso do ator B, como,

também, podem portar interesses eminentemente particulares, cujos resultados tendem a beneficiar em maior medida o próprio grupo demandante e não o conjunto da sociedade, como, por exemplo, é o caso do ator B´.

Figura 3 - Esquema de inter-relações presumidas pela

perspectiva de interfaces sócio-estatais

Fonte: Isunza e Hevia (2010) – com modificações e adaptações do autor

Como última observação, vale a pena notar que as relações estabelecidas entre os agentes parecem seguir padrões determinados. Parece, em primeiro lugar, que agentes coletivos da sociedade civil com interesses próprios estão mais imbricados no sistema político do que os demais agentes desse espectro. Isso pode ser explicado em função das capacidades e dos tipos de recursos detidos por estes agentes, geralmente de cunho econômico, como o caso das federações industriais, comerciais, sindicatos, grandes conglomerados, dentre outros. Se compararmos apenas os tipos coletivos, ademais, notamos que, no geral, sua capacidade de acessar agentes governamentais eleitos é maior do que a dos agentes individuais.

Isso, por sua vez, pode ser explicado como função da capacidade de organização e pressão de grupos específicos, ainda que caracteristicamente diferentes, como, por um lado, o caso dos supracitados conglomerados industriais e, por outro, a atuação de movimentos sociais determinados em temáticas de gênero, raça, etc.. Quando analisamos o acesso aos agentes governamentais não eleitos, notamos maior grau de democratização do contato, passível de ser estabelecido por todos os agentes do espectro social. Padrão que pode ser explicado, em grande medida, pela proliferação e fortalecimento das interfaces sócio-estatais ao longo dos últimos anos.