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3. D EMOCRACIA , P ROCEDIMENTO E I NCLUSÃO P OLÍTICA

3.4 Por uma perspectiva de democratização das políticas

3.4.2 O processo de democratização concretizado no Brasil

O Brasil, vale dizer, tem se destacado sobremaneira na consolidação e no estabelecimento de uma concepção inovadora de democracia, passível de ser caracterizada como democracia substantiva. Pilar central desse fenômeno, a Carta de 1988 é resultado de um intenso processo de negociação e pactuação, ocorrido principalmente entre o final da década de 1970 e meados da década de 1980, entre grupos sócio-políticos diversos que atuaram sob um contexto político-econômico em plena transformação (Wampler e Avritzer, 2011). No período, movimentos sociais específicos começam a adquirir proeminência no cenário político nacional. Estes movimentos lutavam e protestavam contra a centralização do

pode as os dos ilita es e fa o de u siste a o ual as de is es oltasse aos cidadãos (Avritzer, 2006; Coelho, 2004; Abers & Keck, 2007; Doimo, 1995).

Decisões estas referentes aos diversos assuntos, aspectos e questões pertinentes à própria regulação da vida social e cujo locus reside, em última instância, nas esferas governamentais (Coelho, 2004; Avritzer, 2006). A reivindicação básica recaía numa perspectiva de participação dos indivíduos nos processos decisórios estatais que versavam sobre o planejamento e a implementação de políticas públicas. De fato, diversos movimentos sociais de base adquirem proeminência no cenário político nacional, como no caso da ação da Igreja Católica em questões como a luta pela reforma agrária, a proteção a perseguidos políticos e a luta pela Anistia (Jacobi, 1989); ou, ainda, a atuação do chamado Movimento

Sanitarista, que, formado por profissionais e especialistas da área de saúde, reivindicava a

extensão do direito à saúde a toda população brasileira, além da constituição de instâncias que congregassem a participação da população na definição de políticas para a área (Coelho, 2004).

O período pode ser considerado, assim, singular do ponto de vista da história política nacional, contando com fenômenos como o declínio da ditadura militar, o aumento das chances de organização de agrupamentos opositores (Skidmore,1999), o estabelecimento de um sistema multipartidário (Mainwaring, 1999) e, por fim, mas não menos importante, o fortalecimento de movimentos sociais de base64 (Doimo, 1995). A segunda metade dos anos

1980, período que se seguiu a este último caracterizado por significativas transformações e mudanças no âmbito sócio-políti o a io al, pode se o side ada u di iso de guas a consolidação da política brasileira, particularmente no tocante ao estabelecimento e efetivação legal/normativa de instituições de caráter democrático.

Em 28 de Junho de 1985, já empossado como Presidente da República, José Sarney envia mensagem ao Congresso Nacional com a proposta de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. Dessa proposta resulta a Emenda Constitucional n° 26 de 27 de

64 O evento que marca em maior medida o anseio da população pelo fim da ditadura militar, pode-se dizer, consistiu na chamada Campanha das Diretas Já. Foi uma grande manifestação de rua, contando com 1 milhão e meio de pessoas reivindicando o fim do regime e a volta das eleições diretas para presidente da república. Afora esta manifestação, outras ocorreram ao longo de todo o território nacional, ainda que com um número menor de participantes. Em todos os encontros, o pedido ue se ou ia e a algo de e as ao es o te po espe ífi o e u ísso o: democracia. As vozes que se fizeram ouvir nas ruas clamavam por democracia. Esta efervescência pode ser melhor resumida nas palavras do cantor Gonzaguinha que, durante apresentação num evento ocorrido no Centro de Eventos RioCentro, em 1981, durante as comemorações do Dia do T a alho, disse, ao sa e das te tati as f ust adas dos ilita es de e plos o de o as o e e to: Pessoas o t a a de o a ia joga a o as l fo a pa a os a ed o ta . .

Novembro de 1985, que estabelecia o início dos trabalhos de formulação de uma nova Constituição já no ano seguinte, logo após o pleito que elegeria novos Deputados Federais e Senadores da República. No final do ano de 1986, têm início os trabalhos da Assembléia, que preza por inovar em determinados aspectos de sua atuação, ao não apenas abrir seu pleito a propostas de emendas constitucionais populares, advindas dos vários grupos atuantes no bojo social, mas, principalmente, pela efetiva busca dessas emendas no âmbito da sociedade (Whitaker, 1994).

Isso permitiu acesso ampliado e a possibilidade de expressão institucional dos movimentos de base ligados a temáticas e campos diversos de atuação. A emenda popular apresentada para a área de saúde, por exemplo, obrigava o Estado a não apenas ser o provedor da saúde no país, mas também à criação de um sistema unificado na área sem pré- condicionalidades de acesso. Essa proposta consubstanciaria, no âmbito da Lei Orgânica de Saúde (LOS), que regulamentaria as emendas populares no campo, o Sistema Único de Saúde (SUS), iniciativa inédita na gestão pública das questões afetas à saúde no país.

Resultante de todo este processo, a Constituição de 1988 previu efetivamente algumas novidades na política brasileira, como a prerrogativa de descentralização política e a elevação dos municípios à categoria de entes federativos autônomos; a previsão, como direito coletivo, do acesso a bens e serviços em áreas temáticas específicas, como saúde, educação e assistência social (Cunha, 2007); bem como, por fim, a previsão e incentivo à criação de canais institucionais que permitissem a inclusão dos cidadãos nos processos públicos de tomada de decisão especialmente nestas áreas (Tatagiba, 2004; Gohn, 2001).

Segu do A itze , ao lo go do s ulo XX, o B asil te ia se t a sfo ado ...de um país de baixa propensão associativa e poucas formas de participação da população de ai a e da, e u país o o aio ú e o de p ti as pa ti ipati as. A itze , : . Fruto das concepções político-ideológicas de um partido político específico, notadamente o Partido dos Trabalhadores (PT), o chamado Orçamento Participativo (OP) insurge nos final dos anos 1980 adquirindo grande relevância como experiência participativa pelas possibilidades que continha de inclusão dos cidadãos em questões de caráter público (Vitale, 2004; Keck, 1992; Avritzer & Navarro, 2003; Avritzer, 2002). O tipo de institucionalidade ensejado por esta e pe i ia, o u dese ho pa ti ipati o de ai o p a i a Fu g e W ight, ; A itze , 2009), de facto fez com que diversos teóricos da democracia, tanto do Norte, quanto do Sul,

dedicassem maior atenção ao Brasil como relevante caso empírico de introdução efetiva de o t oles so iais a gest o pú li a Sa tos, .

Afora o OP, instituições que propiciam a participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão de políticas públicas, tendo por base uma perspectiva de negociação e inter-relação entre Estado e atores da chamada sociedade civilde acordo com temáticas e problemáticas específicas, são constitucionalmente previstas na nova Carta Magna do. Estas instituições são os chamados Conselhos Gestores de Políticas65 (Avritzer, 2006; Tatagiba, 2002;

Dagnino, 2002; Gohn, 2001, 2004; Wampler e Avritzer, 2004). Os Conselhos são instituições cujos desenhos e objetivos possibilitam a participação dos cidadãos nos processos decisórios estatais referentes ao planejamento e implementação de políticas públicas específicas66

(Gohn, 2004; Avritzer, 2002; 2006; Faria, 2006; 2007; Tatagiba, 2002; Dagnino, 2002).

O Brasil inicia seu mais recente período democrático, portanto, como um caso pa adig ti o, o o u la o at io de e o es di e s es La alle, Houtzage e Castello, 2006:45) acerca da criação de instituições que operacionalizam um sistema de seguridade social amplo e incondicional, gerido de forma compartilhada entre Estado e sociedade, particularmente no tocante ao desenho de políticas públicas específicas (Santos e Avritzer, 2003; Coelho e Nobre, 2004; Avritzer, 2009). Além dos Conselhos Gestores, vale dizer, o país também inova ao prever a realização de Conferências para as diversas temáticas e em todos os níveis de governo. As Conferências acontecem com periodicidade geralmente bi-anual e, no seu âmbito, são definidas as diretivas gerais de cada área para os anos seguintes, nos moldes de um direcionamento executivo estratégico (Pogrebinschi, 2010). Em adição,

65Segu do a Ca ta Co stitu io al, e seu a tigo , pa g afo ú i o, i iso VII, so e a segu idade so ial, assegu ado o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empegado es, dos apose tados e do Go e o os g os olegiados. O a tigo , so e a gest o da Saúde, afi a ue As aç es e se iços pú li os de saúde i teg a u a ede egio alizada e hie a uizada e o stitue u siste a ú i o, organizado de acordo com as segui tes di et izes: , se do ue u a destas di et izes o i iso III, ue assegu a [a] pa ti ipaç o da o u idade . J o a tigo , i iso II, efe e te Assist ia So ial, assegu ada a pa ti ipaç o da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os í eis. No a tigo , so e a Edu aç o, o i iso VI dis o e so e [a] gest o de o ti a do e si o pú li o, a fo a de lei. O artigo 227, parágrafo 1º, do capítulo da Família, da C ia ça, do Adoles e te e do Idoso, afi a ue o Estado p o o e programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não- go e a e tais.

66 A Constituição de 1988 prevê a estruturação destas instituições com formato híbrido, compostas de forma paritária por membros do governo e membros da sociedade civil para a discussão de várias questões no tocante a estas políticas – que variam desde a temática da saúde, passando pelas de assistência social, criança e adolescente, até a de patrimônio público e cultural, por exemplo (Wampler e Avritzer, 2004; Tatagiba, 2004; Gohn, 2001). A maioria das leis que regulamentou o funcionamento dessas instituições ao longo dos anos 1990 estabeleceu que eles teriam caráter deliberativo66. Isso implicou a possibilidade de que os próprios indivíduos que os compunham não só definissem os parâmetros das políticas públicas às quais eles se ligavam, mas, também, controlassem as ações do Estado tendo em vista estes parâmetros, até então, uma exclusividade das instituições políticas tradicionais (Cunha, 2004).

atualmente no país, o Estatuto da Cidade, por exemplo, aprovado em 2001 pelo Congresso Nacional, estabelece que todo município com mais de 20 mil habitantes deve, obrigatoriamente, realizar audiências públicas para planejamento e qualquer alteração em seus respectivos Planos Diretores (Avritzer, 2008).

O país se destaca, nessa linha, pelo estabelecimento de um sistema democrático fundamentado não apenas nos aspectos procedimentais do processo, como a organização político-partidária pluralizada, a realização periódica de eleições e a independência de poderes. Seu destaque se concretiza, sobretudo, pelo foco e centralidade adquiridos pelos aspectos ditos substanciais da democracia, como as garantias e proteções individuais, a garantia da liberdade, a estruturação de um aparato de seguridade social que abarca tanto a saúde, a educação, quanto a promoção de transparência na gestão pública e a garantia dos direitos e da dignidade da vida humana (Habert, 1994; Doimo, 1995; Santos, 1998; Gohn, 2001; Vaz, 2009).