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Capítulo 2. Ensino do inglês e desenvolvimento da competência plurilingue

1. Educação plurilingue: conceitos, finalidades e desafios

1.3 As línguas no currículo

No primeiro capítulo deste estudo, debruçamo-nos sobre o papel da língua que, mais do que um instrumento de comunicação, representa um fator identitário, um constructo social que integra a herança cultural de cada sujeito e intervém, de forma determinante, na sua interação com o Outro e com o mundo (Eco, 1996; Calvet, 1999a). Assim, as línguas espelham a própria diversidade e complexidade do ser humano.

Ensinar para a valorização da diversidade linguística e cultural é compreender esta complexidade humana (Martins, 2008). Neste contexto, o currículo desempenha um papel fundamental na construção de uma escola mais justa e equitativa. Em primeiro lugar, porque no currículo encontram-se confinadas as conceções, valores, conhecimentos e atitudes que estão na base das opções e práticas educativas. Por outro lado, o currículo representa, frequentemente, um entrave às reformas educativas, servindo de pretexto para fazer frente à mudança (Roldão, 1999; cf. 2018).

Para melhor percebermos a importância do currículo, importa perceber como este foi evoluindo ao longo das últimas décadas, condicionando o papel dos professores, das suas práticas e do próprio processo de ensino/aprendizagem. Leite (2002) distingue quatro fases desta evolução, defendendo que o currículo começa por ser perspetivado como um instrumento de transmissão, aquisição e preservação do saber, tendo por base conteúdos clássicos e atividades de ensino que privilegiam a repetição e a memorização. Neste contexto, a escola desempenha um papel de preservação e transmissão da herança cultural, por forma a conservar e dar continuidade às tradições, crenças e valores da sociedade. Nesta primeira fase, encontra-se uma conceção de educação centrada exclusivamente nos conteúdos e na ação dos professores (Leite, 2002).

Insurgindo-se contra uma teoria curricular racionalista (teoria curricular técnica), o currículo foi, progressivamente, adotando uma orientação mais direcionada para a eficácia e eficiência do processo de ensino/aprendizagem, com especial destaque para as

99 competências dos alunos. Assim, o currículo passa a corresponder ao conjunto de recomendações orientadoras dos objetivos a atingir pelos alunos. Nesta visão curricular técnica, os métodos, estratégias, materiais e meios de ensino desempenham um papel central no currículo que é concebido como um plano de aprendizagem escolar que tem como objetivo último o sucesso do aluno. Apesar da tónica depositada no aluno, esta teoria curricular descura a complexidade e diversidade intrínseca ao processo de ensino/aprendizagem, apresentando uma perspetiva reducionista e normalizadora do contexto educativo (Leite, 2002).

Posteriormente, insurgindo-se contra as teorias positivistas, a teoria curricular prática concebe o currículo como um processo formativo e integrador da diversidade do processo de ensino/aprendizagem. Nesta conceção de currículo, a enfâse é depositada nas práticas e experiências dos alunos, tendo em conta a complexidade inerente a cada sujeito. A escola é, segundo esta visão curricular, um espaço de formação de cidadãos e de uma sociedade democrática (Leite, 2002).

Seguindo uma orientação teórica similar, surge, nos anos 70 do século XX nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, a teoria curricular crítica que defende uma visão de currículo tendo em conta a formação dos sujeitos e a interação entre os diferentes agentes educativos. De cariz emancipatório e ecológico, acredita-se, nesta visão curricular, que os valores e crenças não devem ser impostos, pelo contrário, deve proporcionar-se aos alunos um espaço de reflexão sobre os seus sistemas de valores que promovam a sua emancipação, através da interação social proporcionando a construção de significado sobre si, sobre os outros e sobre o mundo. Esta perspetiva curricular crítica centra-se nos sujeitos, nas suas necessidades formativas e na sua relação com a sociedade enquanto cidadãos. Assim, também os professores devem adotar um papel reflexivo, adaptando-se aos contextos e tendo em conta as particularidades dos seus alunos. Trata-se, por isso, de um projeto coletivo, negociado, partilhado e co-construído pelos agentes educativos, em função dos contextos. Parte-se do pressuposto que este é um processo em constante desenvolvimento, uma vez que vai evoluindo no decurso da sua implementação (Leite, 2002).

100 Considerando que se trata de uma perspetiva de currículo integradora e ecológica, esta visão é partilhada por diversos investigadores que adotam uma conceção de currículo que se define como um projeto em constante construção e que compreende todos os acontecimentos e experiências dos sujeitos no processo de ensino/aprendizagem (Roldão, 2018).

Conscientes das dificuldades inerentes à definição de currículo, afastamo-nos de uma visão positivista e tecnicista de currículo, caracterizada por uma educação centrada quer nos conteúdos a transmitir aos alunos, quer nas técnicas ou objetivos a atingir no processo de ensino/aprendizagem, procurando adotar uma visão de currículo que contempla questões éticas e ideológicas, através de uma perspetiva crítica de formação que promove a reflexão dos saberes, a apropriação e reconstrução dos mesmos por parte dos aprendentes (Leite, 2002).

Nesta linha de pensamento, o currículo desempenha um papel fundamental na formação de cidadãos pois pode conduzir à massificação e reprodução de situações já existentes ou, por outro lado, permitir o desenvolvimento da autonomia e liberdade, funcionando como instrumento de mudança. Nesse sentido, o currículo deve ser encarado como um potencial meio de desenvolvimento do plurilinguismo, através da promoção de valores de alteridade e respeito pelo Outro (Cavalli, Coste, Crisan & van de Ven, 2009). Com efeito, acreditamos que o currículo deve possibilitar aos alunos, professores e demais intervenientes no processo de ensino/aprendizagem uma reflexão sobre os seus sistemas de valores, levando ao seu desenvolvimento pessoal e profissional.

Lourenço (2013), apoiando-se nos trabalhos de Fernández Batanero (2009), Leite (2002), Torres González (2002) e nos estudos do CNE (2008, 2009), propõe um conjunto de oito eixos fundamentais para a elaboração de um currículo para a diversidade, que mesmo centrada sobre a educação pré-escolar, nos parece transversal a outros níveis de ensino.

Segundo esta autora, um currículo para a diversidade deve ser um currículo flexível, não só ao nível dos princípios e intenções, mas também, ao nível dos processos e critérios de organização. Isto é, o currículo deve ser visto como uma proposta de trabalho, em oposição a um conjunto de diretrizes impositivas e irredutíveis. A flexibilidade do currículo

101 deve possibilitar uma construção baseada nas orientações curriculares estabelecidas a nível nacional, adaptando-as aos contextos locais.

O currículo deve ser, também, diversificado, na medida em que congrega a diversidade intrínseca às escolas atuais. Um currículo diversificado pressupõe a diversidade de atividades e estratégias, comtemplando, de igual modo, a diversidade de cada aprendente em todas as opções a tomar, por forma a garantir o respeito pelas diferenças na construção de relações interpessoais positivas.

De acordo com a autora, o currículo para a diversidade é um currículo pertinente, isto é, que promove aprendizagens significativas a todos os alunos, tendo em conta as suas diferenças e interesses pessoais. Desta forma, e como já referimos anteriormente, o professor deve ser conhecedor da diversidade presente na sua sala de aula e ser capaz de a integrar nas atividades e estratégias utilizadas nas suas práticas didáticas, por forma a maximizar as aprendizagens dos seus alunos.

Ao integrar a diversidade, o currículo é, por isso, um currículo intercultural, uma vez que congrega diferentes tipos de diferenças, nomeadamente, as diferenças linguísticas e culturais presentes na sala de aula. Nesta visão de currículo, o contacto com diferentes línguas e culturas permite ao aluno conhecer o Outro e desenvolver curiosidade e respeito por alguém que, de alguma forma, é diferente (Lourenço, 2013).

No âmbito deste estudo, consideramos pertinente aprofundar este eixo apresentado no estudo efetuado por Lourenço (2013). Com efeito, acreditamos que, em contexto de ensino de línguas, o currículo deve ser intercultural e plurilingue, expandindo e enriquecendo o repertório linguístico individual de cada aluno, através do contacto com diferentes línguas e culturas, permitindo-lhe refletir sobre esses contactos e sobre as suas representações sobre as línguas e as culturas. Um currículo intercultural e plurilingue pode passar, por exemplo, pelo aumento do número de línguas oferecidas pela escola ou pela planificação de projetos interdisciplinares de valorização e promoção da diversidade linguística e cultural (Cavalli, Coste, Crisan & van de Ven, 2009; Simões & Araújo e Sá, 2012; Vollmer, 2006). Esta visão de currículo permite aos alunos desenvolver a sua consciência metalinguística, metacomunicativa e metacognitiva na medida em que refletem sobre as interações que vivenciaram, sobre os meios que utilizam para comunicar e sobre os seus

102 próprios processos de aprendizagem, conhecendo-se a si mesmos e também através do encontro com o Outro (Beacco et al., 2010).

Ao promover cenários de reflexão e de contacto com o Outro, o currículo torna-se

transformador, por ser motor de construção de cidadãos ativos, comprometidos com o

mundo que os rodeia. Este currículo visa o desenvolvimento do espírito crítico dos alunos para que possam tomar parte na criação de uma sociedade justa e equitativa. Visa, igualmente, desenvolver nos alunos atitudes e valores de solidariedade, justiça, igualdade, respeito pela diversidade e pelo mundo à sua volta (Lourenço, 2013).

Este comprometimento do sujeito com o mundo à sua volta pressupõe um currículo

glocal, isto é, que tem em consideração as características do mundo em que vivemos, mas

não esquece as realidades locais. Este currículo permite, pois, a consciencialização, por parte dos aprendentes, que um problema global pode ser influenciado por ações levadas a cabo ao nível local ou regional ou influenciá-las, permitindo-lhes ter uma visão holística e integradora da realidade (Lourenço, 2013).

Para uma abordagem curricular glocal é necessário que também os conteúdos sejam organizados e distribuídos de forma transversal e congregadora. Por outras palavras, é necessário a construção de um currículo integrado, onde os conteúdos de diferentes áreas disciplinares sejam trabalhados, estabelecendo relações entre si, sendo simultaneamente contextualizados num cenário real e familiar aos aprendentes (idem).

Assim, o currículo para a diversidade é também um currículo participativo, pois apela à participação de todos os intervenientes da comunidade escolar e da comunidade em geral. Este currículo pressupõe, assim, o trabalho colaborativo entre alunos, pais e outros membros da comunidade, com o objetivo de maximizar as aprendizagens dos sujeitos e intervir na construção de um sentimento de pertença à comunidade (ibidem).

De forma sumária, podemos concluir que apenas através de um currículo flexível, diversificado, pertinente, intercultural e plurilingue, transformador, glocal, integrado e participativo se poderá construir um projeto didático plural que promova o desenvolvimento da competência plurilingue dos alunos, concorrendo para a sua reconstrução identitária com vista a uma sociedade mais justa e democrática.

103 Após uma reflexão em torno dos eixos que devem nortear um currículo para a diversidade, apresentamos na secção seguinte deste capítulo, as finalidades do ensino de línguas que constituem, de igual modo, premissas importantes que devem estar na base da construção de um projeto didático para o plurilinguismo.

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