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2 O SOM COMO MÁQUINA

2.2 A VIRADA ONTOLÓGICA E O MATERIALISMO DE LEVI BRYANT

2.3.1 As máquinas vibram

outro e, então, temos uma máquina de ouvir. Neste sentido, “ouvir é sentir a pressão do ar mudando” (EVENS, 2005, 1). Quando alguém bate na porta de madeira do meu quarto, a matéria que compõe a porta é perturbada. A porta vibra em torno do seu ponto de equilíbrio, tal qual faz a pele de um tambor quando perturbada por uma baqueta. Como o ar está em relação com a porta, o choque produzido pelo punho contra a madeira empurra as moléculas do ar. Esta pressão realiza uma onda através de uma série de compressões e descompressões das moléculas do ar (assim como vemos o movimento da água quando jogamos uma pequena pedra na piscina). Quando este fluxo, numa espécie de efeito dominó, pressiona os meus ouvidos: eu escuto alguém bater na porta do quarto. Isto acontece de outra maneira com o ventilador de teto. Assim como eu sinto a pressão do movimento do ar sobre a minha pele, eu também ouço as hélices do ventilador deslocando o ar ao seu redor. O que eu sinto sobre a pele é o deslocamento do ar realizado pelas hélices. E o que eu escuto é a transferência da energia que se choca contra os meus ouvidos e os atravessa, fluindo pelo sistema martelo, bigorna, estribo e, então, através da transdução dos meios, da enérgica mecânica à elétrica, processa-se pelo sistema nervoso até chegar ao meu cérebro. Durante todos esses fluxos e cortes, entradas e saídas, picos e vales, contrações e expansões, o som é produzido como uma máquina de ouvir.

2.3.1 As máquinas vibram

(…) todas as formas existentes no universo: plantas, árvores, minerais, animais, até mesmo nossos corpos têm sua forma criada pela ressonância de algumas frequências específicas na natureza. Em um sentido muito real, então, no âmago de nossa existência física, somos compostos de som e todas as manifestações de formas no universo são nada mais que sons que assumiram uma forma visível. (…) Não há nada além de som, tudo o que existe é vibração. (KARKOWSKI apud BENSUSAN; 2016; 163)

Em “Sonic Warfare”, Steve Goodman (2010) propõe uma ontologia da força vibracional para abrir uma linha de fuga do que ele entende como um “imperialismo linguístico” que, ao subordinar o som a registros semióticos, perde de vista as expressões mais fundamentais da materialidade enquanto superfície vibracional. Segundo o autor, uma ontologia da força vibracional manifesta-se como uma filosofia sonora, operando conceitos que ressoam com a cultura sonora a fim de inserir brechas na armadura ocularcentrista do dualismo ocidental (idem, 81). Neste sentido, adota-se a característica vibratória da matéria para apresentar a imagem de

um plano em que tudo se produz através da vibração. É por sua força vibratória que a matéria possui a capacidade de afetar, pois “as vibrações sempre excedem as entidades que as emitem” (idem). Portanto, “se o afeto descreve a habilidade de uma entidade de mudar outra à distância, então o modo de afeto será entendido como vibracional” (idem). Por isto, Bennett (2010), ao propor a matéria como vital, eleva a materialidade a todas as coisas, afirmando que a capacidade de afetar não se resume ao humano. Logo, qualquer máquina possui a capacidade para afetar outras. O que constitui as máquinas (como tramas, montagens, agenciamentos, sistemas) é a vibração que afeta de uma máquina a outra. Portanto,

se subtrairmos a percepção humana, tudo se move. Qualquer coisa estática é tão somente no nível de perceptibilidade. No nível molecular ou quântico, tudo está em movimento, está vibrando. Da mesma forma, a objetividade, aquilo que dá uma duração da entidade no tempo, faz com que perdure, é um evento irrelevante da percepção humana. Tudo o que é necessário é que uma entidade seja sentida como um objeto por outra entidade. Todas as entidades são mídias em potencial que podem sentir ou cujas vibrações podem ser sentidas por outras entidades. Isso é um realismo, ainda que estranho, agitado e nervoso (GOODMAN, 2010)

Neste sentido, o que buscamos através da ontologia das máquinas ressoa com a ontologia da força vibracional. O interesse por uma imagem materialista do som que considerasse a sua dimensão política (como um elemento capaz de realizar transformações no estado das coisas) nos levou a considerar a máquina como modelo explicativo para um universo constituído por fluxos de materiais e, portanto, informação. Se a característica fundamental da matéria é a sua força vibrante, o universo permeado por máquinas é vibracional. Logo, “em um mundo atado de matéria vibrante”(BENNETT, 2010), “o som é apenas uma fatia fina, as vibrações audíveis para os seres humanos ou animais” (GOODMAN, 2010). Por isto, a proposta de voltar-se para a vibração, como uma operação maquínica, ressoa (acompanhando as reflexões desses e demais autores) o interesse em perturbar o essencialismo humanista contribuindo decisivamente para a montagem de uma imagem do ruído que possam sustentar, mais adiante, as nossas reflexões sobre a sua distinção em relação à música.

Portanto, as máquinas vibram: há “uma vitalidade intrínseca à materialidade”. (BENNETT; 2010) A capacidade de se contrair (entrada) e expandir (saída) é uma característica das máquinas. As máquinas vibram com isto: a compressão conecta e atrita enquanto a descompressão desliga e expande. Quando a máquina se contrai, ela produz um vale para o qual

o ar é comprimido e, então, quando a máquina se expande, o ar irradia. Assim, as máquinas pulsam: o pêndulo do relógio de corda, o tremor do diapasão, a corda do violão, o movimento do coração. As contrações e expansões desdobram-se, por transdução dos meios, através de outras máquinas singulares. E então, o que se ouve são as singularidades de cada máquina. Da mesma maneira, uma máquina de ver se realiza quando, iluminados pela luz, eu vejo o diapasão, a porta ou o ventilador e as suas respectivas cores. Se “o olho interpreta tudo em forma de ver” (DELEUZE; GUATTARI, 2011), o ouvido o faz em forma de ouvir.

A capacidade vibracional produz uma frequência enquanto estado da máquina. Logo, como uma máquina está agenciada com outras, a frequência é o efeito da máquina como um sistema em funcionamento. Como toda máquina tem massa e ocupa um lugar no espaço, dependendo das suas características, as máquinas vibram em frequências específicas. Portanto, um som nunca está só (WISNIK; 1999): ele é a marca da frequência enquanto multidão. No humano há o cérebro, o coração, o pulmão e a boca entre as máquinas que contribuem para a frequência de uma voz. Assim como o som do computador se produz entre a placa-mãe, o processador, a memória, a placa de som e a placa de video. É deste agenciamento que surge a noção de timbre. Este é a singularidade que uma máquina produz enquanto sistema: “a onda sonora é uma questão de proporções relativas de ondas senoidais de diferentes frequências que devem ser combinadas para gerar essa onda. O timbre de um som é constituído pelas regularidades que o definem” (EVENS, 2005, 4).

Neste sentido, o timbre está geralmente relacionado àquilo que entendemos como a cor de um som. Como uma máquina é constituída por outras máquinas e, portanto, por suas frequências específicas, o timbre é a composição enquanto um feixe de frequências que caracterizam uma determinada máquina. Logo, as máquinas timbram umas com as outras. Assim, quando eu crio uma atenção para ouvir o ventilador do quarto, percebo que a hélice soa simultaneamente com pequenos objetos soltos no interior do ventilador, a lâmpada acoplada no bocal e o suporte que mantém o ventilador no teto; eu ouço um som mais grave e longo enquanto outros sons são mais agudos e curtos, e também sinto o vento empurrar a minha pele: há uma gradação intensiva de frequências que apresentam-se para mim como “o som do ventilador”. Portanto, é através da materialidade vibrante do timbre que podemos reconhecer o som de um violino e diferenciá-lo de um violão.

Pode-se entender uma onda sonora como nada além de timbre. (…) Como referência à forma, o timbre captura não apenas as características grosseiras da onda, sua curva geral, mas também toda variação minúscula, cada pontinho, todo entalhe ou solavanco no movimento do ar. (EVENS, 2005, 6)

Como as frequências estão relacionadas à estrutura de uma máquina, dependendo de como estão arranjadas, cada máquina opera as suas vibrações de maneira mais lenta ou mais rápida. Como uma corda de contrabaixo é maior e mais pesada do que uma corda de violino, a pressão sobre o ar, exercida pela vibração da corda do contrabaixo, é mais lenta do que a pressão exercida por um violino. Assim, as máquinas mais pesadas tendem a soar longas e graves enquanto as máquinas mais leves tendem a soar curtas e agudas. Portanto, as frequências manifestam-se por durações e alturas. De acordo com a ciência, as frequências são quantificadas em Hertz (Hz)1, que são as vibrações de uma onda por um segundo do tempo. Um contrabaixo, por exemplo, pode emitir frequências entre, aproximadamente, 37 Hz a 250 Hz; enquanto o violino vai, aproximadamente, de 220 Hz a 2000 kHz. No entanto, como as máquinas são pluripotentes uma frequência agencia-se de modos diferentes de acordo com as máquinas que afeta. Além dos humanos ouvirem aproximadamente entre 16 Hz e 20 kHz. Se um cão, por sua vez, pode ouvir entre 10hz e 40kHz, consideramos que o universo permeado por máquinas vibrantes é intensivamente diferente entre um humano e um cão.

Portanto, ao refletir sobre o som a partir da sua característica vibratória, podemos pensar a frequência também através de uma cadeira de madeira. Quando olhamos para uma cadeira vemos um objeto fechado. Onde a cadeira faz silêncio está a nossa percepção sobre a cadeira. Porém, se, com a ajuda de um microscópio, pudermos ampliar a nossa visão, provavelmente, não reconheceríamos a cadeira como uma máquina rígida; um objeto sólido, inerte e mudo; mas como matéria em movimento.

Se um corpúsculo parar de vibrar, deixará de ser. Doravante, é impossível conceber a existência de um elemento de matéria sem juntar a este elemento uma frequência determinada. Pode-se pois dizer que a energia vibratória é a energia de existência. (BACHELARD, 1994, 177)

Porém, mesmo convencido da vitalidade das coisas, quando percorro a visão através da superfície de um livro, ele permanece imóvel sobre a mesa de estudos. Da mesma maneira, olho para a profusão de máquinas que se amontoam pelo quarto e todas estão mudas. Se as máquinas vibram, o que me faz dedicar um silêncio aos objetos?