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3 O RUÍDO DA POLÍTICA

4.5 VOMIR

4.5.1 O ruído como escuta

Nossas crenças não estão aqui dentro, em nossas mentes, mas nas ações em que nos engajamos, nas instituições que apoiamos e participamos, nas autoridades que reconhecemos, etc (…) muitas das nossas crenças são exteriorizadas e lá fora, no mundo, em outras autoridades, instituições, pedaços de papel e livros, e assim por diante. (BRYANT, 2014, 91)

“Quem iria querer que seus ouvidos fossem agredidos?” Entro no carro. São 14 horas e eu vou para a natação. Daqui para lá são, aproximadamente, 30 minutos atravessando da zona

22https://www.youtube.com/watch?v=piFI79OSzjk (propomos que eurante a .eitura eo experimento o .eitor escute o eisco)

leste até o centro da cidade do Recife. Abro o celular e coloco o primeiro disco do “Deliverance” que tem ao todo 56 minutos. Antes de tocar, subo o volume do som até o nível 30 de 42. Eu jamais havia colocado o som em tal intensidade. E então, acontece de forma explosiva. A primeira reação foi me contrair bruscamente e espremer os olhos enquanto o coração disparava e a pele esquentava. O muro ruidoso tomou todo o espaço do carro manifestando os contornos da minha bolha auditiva. Embora, na minha visão, a rua onde moro permaneça sólida e tranquila, dentro do carro tudo treme; os objetos estão tremendo, a estrutura está tremendo e eu também me sinto tremer. Logo, percebo os sons me perfurando, como uma chuva de gotas de aço desabando sobre o meu corpo. Mais uma vez, me percebo como um tambor em que o som se faz também por mim. A tempestade cai como se tudo soasse ao mesmo tempo; e se conectando, cortando, perfurando, chocando, faz saltar as suas máquinas por mim como uma hiper- ressonância em que a atmosfera parece liquefazer-se.

Porém, há algo no HNW que parece, definitivamente, não se mover; tudo treme, mas não vai a lugar algum; não há um jogo de tensões e relaxamentos; as coisas só caem. O ruído extremo parece fazer borbulhar a matéria vibrante, lançando-me num plano em que não há imagens de humanos correndo e chegando em casa, mas apenas imagens-força; movimentos, linhas, espasmos, gestos aleatórios, etc. A bolha auditiva, estimulada pelo muro ruidoso, se mostra como um território imenso e estático, mas que move-se veloz através da multiplicidade das frequências que simultaneamente atacam os ouvidos. Parece tanto a repetição do mesmo quanto a incomensurabilidade do “infinito”.

Somente percebi que estava isolado pelo ruído que se propagava pelo espaço quando o carro entrou na reserva e eu não pude ouvir o som do alarme de combustível. Neste caso, o som do alarme desaparecia através do ruído. Assim, a impressão é que o ruído suspende o som do mundo; eu apenas sinto o carro tremendo através dos meus pés e da minha pelve enquanto piso no pedal do acelerador; eu sinto o motor tremer nas minhas mãos, mas eu não escuto o som do carro, tampouco o som da rua. A sensação é curiosa, os sons cotidianos são abduzidos pelo muro ruidoso e, então, a imagem do mundo parece embaçada. Eu percebo que, pela amplitude e intensidade da miríade sonora, sinto-me um pouco mais inseguro. A desordem é o grau de incerteza que o receptor tem quanto à determinação do sistema. Como a referência sonora do mundo foi desestabilizada por conta da entropia, eu entro em estado de alerta e pareço ficar extremamente dependente da visão. Sou lançado à consideração sobre a importância da audição

para nos mover no mundo. Através do ruído extremo a audição se desloca do comum e questiona-se.

A escuta, então, e todo o aparelho sensorial fornece as informações sobre o espaço. Assim, o espaço se tece continuamente enquanto comunicação. Quando escuto um som e percebo que vem de tal direção, estou também percebendo outros sons vindos de outras direções. Estes cruzamentos dobram o espaço em mim e o constrói como uma coisa singular, pois é o espaço agenciado ao meu sistema sensorial. Porém, o espaço não é um lugar vazio em que as coisas estão: o ambiente, como ecologia, são as coisas e as suas composições. E, portanto, ao tomar a minha audição, o ruído desestabiliza a minha percepção espacial. No entanto, ao mesmo tempo que captura completamente a audição, o ruído inaugura uma brecha que abre-se à consideração sobre os mundos possíveis como condição da escuta: “quando confrontados com novas experiências, as nossas distinções prontas entre informação e ruído são mais frequentemente contestadas.” (MALASPINA, 2018, 62)

Me afundando com o ruído, as manifestações neguentrópicas começam a saltar sobre mim. Num instante percebo que estou desatento e as minhas mãos começam a suar. Com efeito, eu passo a segurar um pouco mais firme no volante e penso em redobrar a atenção para os retrovisores do carro. Percebo que, como não escuto mais os sons dos outros carros, preciso vigiar visualmente os movimentos dos outros carros; o que evidencia o problema entre a visão direcional e a audição panorâmica. Eu sinto que se não redobrar a atenção é muito provável que aconteça um acidente. Então, eu já estou tenso e me vejo errando decisões que costumo fazer automaticamente; eu esqueci de entrar na rua que me levaria até a natação. É assim que, embora eu quisesse negar, reconheço o ruído como um problema para a percepção: a impressão de estar desatento incomoda.

Com o passar do experimento, eu começo a ouvir imagens que emergem do ruído como um bloco de sensações. Logo, ouço como se houvesse uma turbina de avião conectada ao carro; escuto vozes agudas, como se alguém me enviasse mensagens, e fico em dúvida se isto está mesmo ali ou se é coisa da minha percepção; como se houvessem fantasmas que habitam o ruído. O que aos poucos me leva a considerar que no ruído há tudo. É na multiplicação da incerteza que o ruído estimula a criatividade, como se, a partir da sua intensificação entrópica, as máquinas operassem de modos mais rápidos e, portanto, errantes. Assim, imergindo na miríade ruidosa, a minha escuta vai se desdobrando como se mergulhasse à procura do sentido.

E então, quando chego finalmente ao meu destino e desligo o som, sinto uma despressurização através do meu corpo, como se o ruído se esvaziasse e uma espécie de silêncio cotidiano emergisse no mundo. Eu fico alguns segundos em choque, como se estivesse me estabilizando. Logo, começo a ouvir as vozes das crianças brincando na piscina, as músicas que tocam na academia, o som dos motores dos carros circulando pela rua mais próxima, os sibilar dos pássaros, a linha contínua de um ar-condicionado, um avião que sobrevoa a cidade. O sistema reinveste as redundâncias e me reconforta no mundo. Eu agora me sinto descontraído. E percebo, afinal, que a atenção estava funcionando durante todo o experimento ruidoso. Enquanto eu caminho até a piscina, percebo que talvez tenha experimentado um pouco a imagem do ruído enquanto catástrofe da escuta.