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As marcas do enunciador e do enunciatário

No documento Abordagem semiótica dos textos de auto-ajuda (páginas 109-112)

6. ANÁLISE DA ATUAÇÃO DOS COMPONENTES SEMIÓTICOS

6.11 As marcas do enunciador e do enunciatário

Fiorin (1990) destaca a sintaxe discursiva para explicar como o enunciador e o enunciatário podem estar presentes (por meio de marcas lingüísticas) nos discursos. Para o autor, no discurso científico, o enunciador se apaga atrás dos fatos, pois está ausente do enunciado. Já no discurso polêmico, o enunciador deixa marcas explícitas, uma vez que

confere a sua visão dos fatos discutidos. O seu correlato enunciatário, da mesma forma, pode ser explicitado no discurso didático, nos manuais técnicos, nas receitas culinárias, nos textos de auto-ajuda. Ao se valer de pronomes de segunda pessoa (“tu”), verbos no plural (“devemos”) ou no modo imperativo (“faça”), o enunciador, além de explicitar a si, deixa marcas da presença do enunciatário no discurso, que é o “tu” para quem dirige o seu dizer. Quando o texto projeta um narrador – como em Memórias póstumas de Brás Cubas – que se diz cansado de leitores que buscam textos lineares, aquele deixa marcas do seu diálogo com o seu correlato, o narratário. Esta instância da narração também pode projetar, por meio de discurso direto, o interlocutor e o interlocutário. Retomou-se essa discussão para explicar que a quase totalidade dos discursos examinados do corpus deixam marcas lingüísticas do enunciador e do enunciatário, exceto em Ninguém é de ninguém, de Gasparetto (2001).

Ao construir a imagem do enunciador e do seu correlato, o enunciatário, o sujeito da enunciação pode deixar marcas dessas instâncias de pessoa, a partir do uso de mecanismos lexicais já mencionados (pronomes em segunda pessoa ou inclusivos [“nós], verbos no imperativo ou no plural). Como se vê em Cury (2002; 2003), com Você é insubstituível e Pais brilhantes, professores fascinantes, o ethos do enunciador é apresentado como alguém preocupado, que sabe da carência do leitor e que transforma o seu livro em um meio de presentear uma pessoa querida. Isso tudo é possível, porque o enunciador tem em vista que o seu enunciatário tem uma competência cognitiva para crer no seu discurso de auto-ajuda. Nesse caso, está explícito o contrato de fidúcia entre ambos.

Em outro livro do mesmo autor, Nunca desista de seus sonhos (Cury, 2004), tem-se novamente a projeção de um enunciador solidário, que quer dividir o seu conhecimento com seu interlocutor. Nesse caso, também é freqüente a comunicação participativa. Apesar de se pronunciar como o detentor do conhecimento [como um destinador absoluto, soberano, de que falam Greimas & Courtés, (1979, p. 68)], o ator da enunciação, Cury (2004), confessa ser um aprendiz. Com o termo “até porque”, ele assume a conversa num tom informal:

Por serem muitas as descobertas, citarei brevemente apenas algumas. Essas descobertas têm inúmeras implicações que poderão surpreender o leitor. Por favor, não se preocupe se não entender todos os assuntos que serão citados a seguir. Até porque demorei quase duas décadas para entendê-los e ainda continuo aprendendo (p. 115 – grifo nosso).

Cury (2003) fornece uma dedicatória no início de Pais brilhantes, professores fascinantes, em que ela representa um PN de uso – um meio – para o enunciatário elogiar e motivar outra

_______________________ [espaço para o nome da pessoa]. Você deixou seus sonhos para que eu sonhasse...” (p. 1). A forma como constrói a sua argumentação projeta um determinado ethos do enunciador astuto, que, ao mesmo tempo em que elogia o seu enunciatário – pois dele constrói uma visão positiva – cede um meio para este presentear uma pessoa querida, fazendo uma corrente entre enunciatários, portanto.

Quem ama educa! (TIBA, 2002) deixa explicitada a conversa com o seu leitor, de acordo com o uso dos pronomes e verbos inclusivos: “Este livro é um diagnóstico de como estamos hoje e de como podemos melhorar para que nossos filhos se tornem pessoas éticas, felizes, autônomas e competentes recebendo uma educação integrada” (p. 20). Para construir a argumentação, lança mão de inúmeros parágrafos que defendem o ponto de vista da mulher na sociedade. Por isso, constrói o ethos de um psiquiatra feminista, que, ao defender o ponto de vista da mulher, vale-se desses argumentos para conseguir a adesão do público feminino: “Na mulher, o maior evento biológico da perpetuação da espécie começa na gravidez; no homem, na relação sexual (p. 104)”. Ao depreciar o homem, afirma o mundo da mulher. Na verdade, como sabe que o seu enunciatário-leitor é feminino, faz isso como estratégia discursiva para conseguir a adesão desse público: “Numa reunião de pais de alunos, o pai comparece muito menos que a mãe e numa reunião de mães, o pai nem chega perto!” (p. 28 – grifo nosso). É um enunciador astuto, na medida em que cria um efeito de discurso de um psiquiatra tolerante e não-machista. A moral da história que o enunciador quer transmitir, em resumo, é a de que o homem é egoísta, irracional, sexual, enquanto a mulher é comprometida, sentimental, amorosa.

Como típicos discursos de auto-ajuda, que dialogam com crenças religiosas, os textos Não faça tempestade em copo d’água, de Carlson (1998) e Minutos de sabedoria, de Pastorino (1997), procuram dialogar com o seu leitor enunciatário de forma bastante direta. Os seus discursos não fazem alusão aos saberes referenciais da ciência, dos mitos, da história, mas à experiência, projetada no texto, dos próprios atores da enunciação. Apenas querem motivar o seu enunciatário, com frases ou capítulos simples, que trazem mensagens positivas:

Não se esqueça de que somos o reflexo daquilo que pensamos. [...]. Plante em torno de você as sementes de otimismo e bondade, para que possa colher amanhã os frutos do amor e da felicidade. Se somos escravos do ontem, somos donos de nosso amanhã (PASTORINO, 1997, p. 159 – grifos meus).

Produzem, dessa maneira, de novo, o ethos de um enunciador solidário. Em suma, há uma tendência em produzir um discurso de tom apaziguador, em que a competência é

apresentada ao leitor em doses homeopáticas. Isso é comum nos discursos examinados. Nesse caso, o destinador é alguém “bonzinho”, que procura unir pontos de vista diferentes (ciência com religião, auto-ajuda com misticismo, etc.). Pasteurizando as diversas formas de ver o mundo e homogeneizando os pontos de vista, o enunciador consegue a adesão do maior número de leitores possível, pois aumenta o seu público-alvo.

No caso de Ninguém é de niguém (GASPARETTO, 2001), nota-se que é o único texto do corpus, que, por ser um romance, não recorre a marcas lingüísticas relativas à projeção do autor em diálogo com o leitor. Nesse livro, o narrador projeta interlocutores que discutem os princípios do espiritismo. Suscitam termos, como “reencarnação”, “macumba”, “seres do mal”, “espiritualidade”, “Allan Kardec”, “vidente”, “energias cósmicas”, etc., para explicar como se organiza o mundo espiritual.

Mesmo sendo textos ficcionais, O monge e o executivo (HUNTER, 2004) e Quem mexeu no meu queijo? (JOHNSON, 2002), dialogam com o leitor em determinados momentos. Neste, o prefácio e os depoimentos marcam a presença do enunciador, apesar de a fábula estender-se por grande parte do livro. Com O monge e o executivo, ocorre o mesmo. Nos momentos de suspensão da narrativa, o sujeito da enunciação assume a conversa e tece dicas de liderança, com gráficos e esquemas que explicam como ser um líder servidor.

Dessa forma, os discursos incidem sobre as marcas deixadas pelo sujeito da enunciação, por meio de pronomes inclusivos e verbos no imperativo, por exemplo. Apenas Gasparetto (2001) não deixa marcas da projeção desse diálogo com o leitor.

No documento Abordagem semiótica dos textos de auto-ajuda (páginas 109-112)